Adriano Machado/Crusoé

O ‘Anjo’ radioativo

Por que o advogado Frederick Wassef, que escondia Fabrício Queiroz, pode ajudar a derrubar o presidente
19.06.20

Quando os policiais arrombaram o portão e acordaram Fabrício Queiroz com um mandado de prisão na manhã de quinta-feira, 18, no interior de São Paulo, o longo mistério sobre o paradeiro do ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro deu lugar a uma trama capaz de implodir o governo de Jair Bolsonaro. O homem acusado de operar o “rachid” no antigo gabinete de Flávio na Assembleia Legislativo do Rio estava escondido em uma casa de veraneio de Frederick Wassef, o advogado da família presidencial. Para o Ministério Público fluminense, trata-se de um típico plano de obstrução de Justiça que coloca o influente defensor bolsonarista, com livre acesso aos palácios do Planalto e da Alvorada, como suspeito de participação na organização criminosa.

Amigo de Bolsonaro há cerca de seis anos, Wassef era conhecido no meio jurídico pela atuação nos bastidores dos tribunais, fora dos autos e longe dos holofotes da mídia. A guinada na carreira do criminalista de 53 anos, bem como sua mudança de postura, ocorreu em junho do ano passado, quando ele assumiu oficialmente a defesa de Flávio Bolsonaro no caso Queiroz. Desde então, Wassef assumiu o protagonismo da situação, apresentando-se como um protetor do clã Bolsonaro no Judiciário, onde dizia ter influência. Levou o caso para o Supremo, onde teve uma vitória parcial com a suspensão temporária do inquérito, e passou a dar entrevistas para defender Flávio e minimizar as movimentações financeiras atípicas do ex-assessor descobertas pelo Coaf. Mas Wassef nunca deixou de atuar nas coxias, onde recebeu de seus protegidos o carinhoso apelido de “Anjo”, usado para batizar a operação deflagrada na quinta.

Mensagens descobertas nos celulares de Queiroz e da mulher dele, Márcia Oliveira de Aguiar, durante uma operação feita pelo MP do Rio em dezembro do ano passado, colocam Wassef como articulador do plano para esconder o ex-assessor de Flávio em sua casa em Atibaia, no interior paulista (leia mais aqui). O caseiro do imóvel disse aos investigadores que Queiroz estava no local havia cerca de um ano, exatamente quando Wassef assumiu a defesa de Flávio no processo em que o senador é investigado por desvio e lavagem de dinheiro. Segundo os promotores do Rio, uma série de diálogos entre Queiroz e a mulher, ocorridos em novembro passado, “indica que o casal estaria obedecendo às instruções do Anjo”.

No dia 24 de novembro, por exemplo, Márcia pergunta se Queiroz estava “na casa do anjo” e o que o advogado havia dito a ele. O ex-assessor de Flávio responde: “Querendo mandar todos para São Paulo se agente não ganhar (sic). Aquela conversa de sempre”. Queiroz se referia ao julgamento no STF que acabaria autorizando o compartilhamento de dados do Coaf em inquéritos criminais e, por tabela, revogando a suspensão da investigação do “rachid” na Alerj. As mensagens indicam que Márcia não queria se mudar do Rio para Atibaia, onde estava o marido, mas abria uma exceção. “Só se estivéssemos com prisão decretada”, escreveu a mulher de Queiroz. “Sabe que isso será impossível né? Mais vamos aguarda (sic)“, completou. Em seguida, Queiroz afirma que a possibilidade de derrota no julgamento do Supremo era grande e que Wassef só não queria que ele voltasse para o Rio. Em entrevistas concedidas nos últimos meses, tanto Wassef quanto Flávio afirmaram desconhecer o paradeiro de Queiroz. Márcia também teve a prisão decretada pela Justiça do Rio, mas até a noite de quinta ainda estava foragida.

Integrante do círculo mais próximo do clã Bolsonaro, Wassef costuma dizer que conheceu o presidente em 2014, quando ele ainda era deputado federal. Diz ter pedido para encontrá-lo em Brasília, após assistir a um discurso de Bolsonaro sobre controle de natalidade no YouTube. Defensores de bandeiras semelhantes, como fim da ideologia de gênero e maior repressão policial, os dois logo viraram amigos do peito. No ano seguinte, Bolsonaro comprou uma Land Rover por 50 mil reais que estava em nome de uma empresa de Cristina Boner, à época mulher de Wassef. Quando era indagado sobre o assunto, o advogado sempre negava qualquer irregularidade na transação. A quem desconfiava de que o carro poderia ter sido um presente para o amigo, ele respondia ter como demonstrar os pagamentos feitos por Bolsonaro.

Denny Cesare/Código 19/FolhapressDenny Cesare/Código 19/FolhapressO muro da casa onde estava Queiroz tem uma placa do escritório de Wassef
Cristina, a ex-mulher de Wassef, ganhou fama em Brasília por representar comercialmente nos negócios com o poder público a gigante americana Microsoft, de Bill Gates. Em 2009, o nome dela foi envolvido no escândalo do mensalão do DEM, no governo José Roberto Arruda. A empresária foi acusada de pagar propina a deputados distritais em troca de contratos com o governo, algo que ela sempre negou.

No meio jurídico, Wassef já defendeu alguns empresários renomados, como Flávio Rocha, das lojas Riachuelo, e os sócios do banco BMG, e contratado da Fecomércio do Rio, na gestão de Orlando Diniz, antes de se dedicar à família Bolsonaro. Preso pela Lava Jato e réu por corrupção, Diniz negocia um acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal no qual o nome de Wassef é citado como um dos advogados que teriam prestado serviço para a Fecomércio. Diniz, porém, não sabe explicar qual serviço foi esse.

Trata-se de uma suspeita que está longe de causar ao advogado o mesmo estrago potencial do caso Queiroz. O fato de o ex-assessor de Flávio Bolsonaro ter sido preso em uma propriedade de Wassef, que, além de advogado formal do senador, apresenta-se em Brasília como defensor do próprio presidente, embute uma pergunta crucial: em que medida a família do presidente está ligada à estratégia de esconder Queiroz para garantir seu silêncio? Outra questão que agora pode ser esclarecida diz respeito ao financiamento da estrutura destinada a manter Queiroz calado e longe dos holofotes: quem estava bancando o ex-assessor?

Nas horas seguintes à operação, interlocutores do presidente Jair Bolsonaro já se moviam para desvinculá-lo de Wassef. Sabiam, na exata medida, da gravidade do fato de Queiroz ter sido descoberto na casa de alguém tão próximo do presidente. E, claro, se preocupavam com a óbvia transferência da crise para o terceiro andar do Palácio do Planalto, onde está situado o gabinete presidencial.

A operação de contenção de danos, porém, é de difícil execução. Desde o início do governo, a figura de Wassef está intimamente ligada não apenas a Flávio, mas também a Jair Bolsonaro. É o próprio Wassef, sempre falante, quem faz questão de, inclusive publicamente, falar em nome do presidente. Na véspera da operação que descobriu Queiroz em uma propriedade sua, ele circulava serelepe pelo salão principal do Planalto durante a posse do deputado Fábio Faria como ministro das Comunicações. Wassef costuma ainda se reunir a sós com o presidente. Por vezes, sem registro na agenda oficial. No ápice da crise na Polícia Federal que levou à saída do ex-juiz Sergio Moro do governo, ele visitou Bolsonaro no Palácio da Alvorada. Era um domingo.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéDepois de um dia inteiro, Bolsonaro criticou operação: “prisão espetaculosa”
A proximidade do “Anjo” com Bolsonaro incomodava figuras importantes do entorno do presidente, que desde o início do governo enxergavam nele uma possível fonte de problemas. Em alguns períodos, convencido pelo alerta dos conselheiros, Bolsonaro até tentou se descolar. Mas o afastamento não durou muito. Wassef é um expert em cavar espaços, e soube aproveitar ao máximo a proximidade que construiu com o presidente. Seu estilo briguento e sua disposição para defender a família a qualquer custo sempre agradaram a Bolsonaro. Ironicamente, são o voluntarismo e a audácia dele que, agora, expõem o presidente a mais uma crise. Se antes conseguia manter alguma distância do rachid do filho, Jair Bolsonaro passou a ser parte da cena. Ele sabia? Autorizou a proteção ao velho amigo de quartel? Para além da possibilidade de Queiroz resolver falar, os próximos passos da investigação e, especialmente, o material coletado na operação desta quinta — incluídos aí dois aparelhos celulares — podem ajudar a trazer as respostas.

A operação que prendeu Queiroz e moveu Wassef da posição de defensor para a de suspeito de articular uma ousada estratégia destinada a obstruir as investigações começou a ser preparada na terça-feira, 16. Foi quando os promotores do Rio de Janeiro entraram em contato com colegas do Ministério Público de São Paulo, para informá-los sobre o local onde o amigo da família Bolsonaro estava residindo. Havia muitos meses, o setor de inteligência do MP fluminense recebia informações sobre o paradeiro de Queiroz, mas desde o pedido de prisão e a autorização pelo juiz Flávio Itabaiana os trabalhos se intensificaram para identificar o local exato onde ele estava. Descoberto o paradeiro, criou-se um grupo de WhatsApp e a Polícia Civil paulista foi acionada para verificar o endereço indicado pelos promotores do Rio.

Na quarta-feira, 17, os investigadores do Rio receberam a informação de que Queiroz estava mesmo em um imóvel em nome de Wassef. A informação foi comemorada porque reforçava ainda mais a tese dos promotores sobre a proximidade entre Queiroz e a família Bolsonaro. Desde o início do caso, em dezembro de 2018, quando foi revelada a movimentação de 1,2 milhão de reais do ex-assessor de Flávio, o senador e seu pai tentavam a todo custo manter uma distância regulamentar do antigo amigo.
Passava pouco das 6 horas da manhã de quinta-feira quando os policiais e promotores de São Paulo bateram à porta da casa de Wassef na paulista Atibaia, ironicamente o mesmo município onde o petista Lula, inimigo político de Bolsonaro, mantinha um sítio bancado por dinheiro de origem suspeita. Ao perceberem que não seriam atendidos, os agentes arrombaram a corrente do portão e entraram no imóvel.

Queiroz recebeu voz de prisão de camiseta e touca vermelhas. Estava dormindo profundamente quando os agentes entraram em seu quarto. Não ofereceu nenhuma resistência, falou que não estava armado e disse que estava doente. “Não sabia que tinha saído minha preventiva”, comentou com os policiais. Os agentes abriram caixas, reviraram colchões e apreenderam dois celulares usados por Queiroz — os aparelhos foram colocados no modo avião, medida usual para manter o preso incomunicável. Também levaram um malote recheado de documentos de Wassef e apreenderam 900 reais em dinheiro na carteira de Queiroz.

A um dos agentes, Queiroz disse que estava “agoniado” de ficar praticamente sozinho no imóvel e que ele mesmo saía para comprar comida, com um carro que pertence ao escritório de Wassef. Contou ainda que sua mulher não ia visitá-lo havia pelo menos dois meses. A vida reclusa, contudo, não impedia o ex-assessor de Flávio Bolsonaro de se divertir. Em uma foto enviada para a mulher no dia 8 de dezembro de 2019, Queiroz aparece fazendo um churrasco nos fundos da casa e tomando cerveja em uma festinha com as amigas de seu filho. “Nós então fizemos um churrasquinho aqui. Umas garotinhas ‘bacaninhas’ e vimos o Cruzeiro ser rebaixado [Queiroz é vascaíno]… o Cruzeiro ser rebaixado tomando uma Corona aqui com limãozinho… Muito bom!”. Ele e Wassef, o dono do pedaço, tinham certeza de que o esconderijo ainda passaria incólume por muito tempo. Os superpoderes do “Anjo” não eram lá tão fantásticos.

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