MarioSabino

Tirem a choldra das nossas vidas

19.06.20

Eu havia planejado escrever sobre o artigo 78, de Alexander Hamilton, que consta de O Federalista e trata do papel do Judiciário no sistema republicano. Minha intenção era comentar a fala de Ricardo Lewandowski no julgamento do STF que constitucionalizou o inquérito sigiloso aberto por Dias Toffoli e conduzido por Alexandre de Moraes, para apurar ataques ao tribunal — o mesmo que censurou a Crusoé e O Antagonista. Ao proferir o seu voto favorável à legalidade do inquérito, Lewandowski citou James Madison, outro fundador da democracia americana, igualmente autor de O Federalista.

O ministro afirmou que James Madison admite uma “mistura parcial de poderes” nas funções de órgãos do Executivo, Judiciário e Legislativo.

“É por isso e com base no pensamento de um dos federalistas, que existem no nosso ordenamento jurídico institutos e mecanismos que não se amoldam a uma rigorosa separação das atribuições que integram o sistema processual penal, mitigando a rigidez da separação de funções inerentes ao sistema acusatório”, disse Lewandowski, para argumentar que o direito de investigação do STF seria semelhante ao da polícia legislativa do Congresso ou ao de comissões parlamentares de inquérito instaladas na Câmara e no Senado.

Já que devo ter lido O Federalista tão detidamente quanto Lewandowski, achei que tinha o direito de abrir investigação própria a partir do artigo 78, de Alexander Hamilton. O autor escreveu que, como o Judiciário era o mais fraco dos poderes, ao contrário do Executivo, que tem a espada, e o Legislativo, que tem o cofre, era preciso habilitá-lo a defender-se dos outros dois, mas por meio de juízes de bom comportamento que não pudessem ser destituídos — e acrescentou que o Judiciário só se tornava perigoso quando se unia a Executivo ou Legislativo. Nada de “mistura parcial”, portanto. Eu ia discorrer sobre como o Brasil estaria correndo risco com a mistureba do STF, quando fui brutalmente interrompido.

A choldra, a súcia, a malta, a escumalha, a patuleia de Jair Bolsonaro, muito bem representada por Fabrício Queiroz, adentrou o meu escritório. A prisão do meliante da rachadinha envolvido com milicianos que estava escondido numa casa em Atibaia pertencente ao caviloso Frederick Wassef, advogado do presidente da República, fez com que Alexander Hamilton voltasse a repousar em paz no século XVIII (vi agora que ele apareceu na coluna de estreia de Sergio Moro, lugar infinitamente mais apropriado). A única coisa que interessa agora para mim é saber se teremos de conviver até 2022 com o sujeito que ocupa o Palácio do Planalto e continua a chefiar a choldra, a súcia, a malta, a escumalha, a patuleia, o rebotalho.

Como já disse neste espaço, tentei entender os motivos que levaram tantos brasileiros a votar em Jair Bolsonaro. Era preciso, antes de tudo, evitar que o condenado Lula voltasse a dar as cartas, uma ameaça e tanto à democracia. Defendi a legitimidade do ex-capitão como candidato, ousei dar-lhe conselhos em artigos e até aventei que, uma vez no poder, ele teria como aglutinar forças políticas capazes de dar um bom rumo ao país. Afinal de contas, existem os que crescem em cargos importantes e haveria a moderação de militares conscenciosos. Fui convidado por um diplomata estrangeiro a transmitir as minhas impressões sobre o então presidente recém-eleito a um ministro do seu país em visita ao Brasil. Repisei o que havia escrito, mas fiz a ponderação: “Bolsonaro é um imbecil, a esperança é que o controlem”. O ministro expressou algum ceticismo em relação ao meu diagnóstico. Pois aí está.

O presidente é um descontrolado com largos sintomas de narcisismo sociopático, como se vê pela sua reação frente à pandemia, e completa imoralidade administrativa, caso da lambança no Ministério da Justiça. As suas ligações são mais perigosas do que se imaginava, como fica evidente pelo esquema que começou a ser desenrolado depois que os assessores de Flávio Bolsonaro foram alcançados. O Brasil trocou sindicalistas corruptos, que ao chegar ao poder engordaram os seus nós de gravata e passaram a embebedar-se de Château Margaux, por milicianos que continuaram a fazer churrascão e tomar cerveja nos seus muquifos. O paninho caiu com a prisão de Fabrício Queiroz. O país vem descobrindo que não há nada de esquerda ou direita nisso tudo; não há nada de progressismo ou conservadorismo: há somente cretinice fundamental, ignorância, indecência e crimes de diferentes tipos. Atibaia e Atibaia.

Jair Bolsonaro não tem partido ou ideologia. Revelou-se um oportunista instintivo que preencheu o vácuo deixado por PT, PSDB, PMDB, DEM e outros bandos que assaltaram o Brasil. É um extremista de si mesmo. Depois de um ano e meio, a esperança de boa parte dos 57 milhões de resignados que votaram nele, apesar do seu currículo ordinário, derreteu. Tudo o que está sendo feito de certo no governo é apesar dele, não por causa dele. A sua imagem fundiu-se completamente às de 01, 02, 03 e respectivas associações, militares instalados no Planalto que perderam a noção de realidade, brutamontes digitais e o rebotalho que vai às ruas para pedir um autogolpe — todos agora em marcha unida para tentar colar a historieta de que Jair Bolsonaro não sabia que o seu próprio advogado escondia Fabrício Queiroz.

Até o início desta semana, o rebotalho assombrava o país. Ele tem o seu melhor espelho na tal Sara Winter, que foi engaiolada. Escrevi em O Antagonista:

Sara Winter é uma figura ridícula, mas perigosa. Sim, perigosa. Não que o grupo de 30 patetas, com seu acampamento cretino, suas coreografias mambembes e demais molecagens na Praça dos Três Poderes, como invadir áreas restritas do Congresso ou disparar fogos de artifício contra a sede do STF, fossem em si próprios ameaças às instituições. Sara Winter é perigosa como símbolo.

Ela simboliza o lado mais obscuro de Jair Bolsonaro. Eis, portanto, porque o presidente da República não a condenou — e, se o fizer, será porque se sentiu compelido pelas circunstâncias, jamais por convicção. Sara Winter concretiza, ao seu modo fuleiro, os desejos nem tão inconscientes assim de Bolsonaro. Ela executa de forma farsesca, teatral, o que ele gostaria de fazer na realidade: invadir o Congresso, fechar o STF, submeter o sistema democrático representativo ao que julga ser a verdadeira democracia — os apetites do rebotalho social.

Lula também sonhava fazer algo semelhante quanto ao sistema democrático representativo, só que de maneira mais cínica: por meio do seu partido, embora também recorresse ao rebotalho que lhe é fiel para executar determinados serviços sujos. Historicamente, é dessa maneira que a esquerda funciona: coloca o rebotalho a serviço de um partido que enxerga a democracia como valor estratégico, não universal. No caso de certa direita, é o próprio rebotalho que se faz partido, como a história mostra igualmente. Aliás, não deixa de ser ilustrativo que Bolsonaro, ao ascender à Presidência, permaneça sem partido e tenha dificuldade em montar uma agremiação dentro dos limites impostos pelo ordenamento eleitoral.

O perigo de Sara Winter está no seu potencial de símbolo, enfatize-se. As forças inconscientes mais deletérias começam operando no campo simbólico, mas podem extravasar para a realidade se encontrarem condições para tanto. É preciso interditá-las com a arma de que a civilização dispõe: a letra da lei. Senão, será a barbárie. A munição de verdade poderia substituir a de artifício. A pólvora é a mesma, não esqueçamos.

Sara Winter é a Valquíria de Bolsonaro.

A Valquíria saiu de cena. No seu lugar, entrou o nibelungo Fabrício Queiroz, que sempre esteve nas coxias da ópera vagabunda.

Não vai ter golpe, deveria ter impeachment. Tirem a choldra, a súcia, a malta, a escumalha, a patuleia, o rebotalho de Jair Bolsonaro das nossas vidas.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO