Os rastros desde Atibaia
Os documentos amealhados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro ao longo de dois anos não deixam dúvida de que os promotores já têm elementos claros sobre dois dos crimes pelos quais o senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente da República, é investigado: peculato, o nome técnico usado no Código Penal para designar o velho desvio de dinheiro público, e organização criminosa. Para além disso, a descoberta do advogado Frederick Wassef como anfitrião de Fabrício de Queiroz em Atibaia reforçou a suspeita de que estava em marcha um outro tipo penal, obstrução de Justiça, e pôs o círculo íntimo do presidente Jair Bolsonaro no centro da estratégia para manter o ex-assessor longe dos holofotes. Até dias atrás, os investigadores ainda avaliavam se essa parte da apuração, que revelou a operação destinada a esconder Queiroz, integrará a primeira denúncia do caso, em fase final de elaboração.
Dois personagens, além do conhecido Fabrício de Queiroz, levam a investigação sobre o rachid no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro e a posterior tentativa de obstrução de Justiça para muito próximo da família presidencial: os advogados Frederick Wassef e Luis Gustavo Botto Maia. Wassef, como ele mesmo assumiu em diversas entrevistas, era conselheiro do presidente e se apresentava como seu advogado. Foi recebido diversas vezes no Palácio da Alvorada e, na véspera da prisão de Queiroz, estava na posse do ministro das Comunicação, Fabio Faria. De acordo com os investigadores, ele era tratado pelo entorno de Queiroz como “Anjo”. Apreendido, o aparelho celular de Botto Maia pode ser decisivo para a tentativa de descobrir se a família presidencial era informada sobre as providências que estavam em curso, incluindo a própria iniciativa de colocar o ex-assessor na casa de Wassef em Atibaia.
Doente, Queiroz vivia em Atibaia à base de remédios para controlar a ansiedade e a depressão. No dia da prisão, só acordou com os policiais já dentro de seu quarto porque havia tomado doses pesadas de medicamentos na noite anterior. A caçada à mulher do ex-assessor e a possibilidade de a filha dele, a personal trainer Nathália Queiroz, também virar alvo de um mandado de prisão, ajudam a aumentar a pressão. Um investigador lembra que, depois do mensalão, ninguém quer ter o mesmo destino de Marcos Valério, o operador do petismo que não contou o que sabia e foi um dos poucos a ir para a cadeia. Além de esclarecer como atuava no esquema de rachid, Queiroz poderia detalhar o histórico de sua relação com a família Bolsonaro desde que conheceu o hoje presidente, há mais de 30 anos. Se no Planalto a possibilidade de ele falar causa calafrios, entre os investigadores não há muita esperança – até por ser um ex-militar, acredita-se que dificilmente ele quebrará o compromisso de lealdade. Márcia Aguiar, a mulher dele, é vista como alguém que, se for presa, pode ser mais suscetível à ideia de delação. O mesmo vale para Botto Maia, a depender do que for encontrado no celular dele.
A triangulação era cercada de cuidados para evitar que as autoridades rastreassem os contatos. A mãe e a mulher do miliciano, de um lado, e a mulher de Queiroz, de outro, faziam a ponte entre os dois. Logo após a morte de Adriano da Nóbrega, durante uma operação para prendê-lo no interior da Bahia, em fevereiro, Flávio Bolsonaro veio a público para apontar “excessos” na ação policial. O filho do presidente postou imagens do corpo e insinuou que Adriano foi torturado. Àquela altura, ficou no ar uma questão: por que Flávio se expôs publicamente em favor de um criminoso? Queria prestar solidariedade à família e aos amigos? Por quê? O advogado de Adriano, como mostrou Crusoé, é o mesmo que, dias atrás, passou a defender Queiroz. Ele também trabalha para a companheira de Frederick Wassef. Coincidência? A descoberta de que Queiroz continuava em contato estreito com o submundo do crime no Rio enquanto era protegido pelo advogado do senador e do próprio Bolsonaro abre mais uma frente espinhosa para a família presidencial.
A decisão foi comemorada pela defesa de Flávio Bolsonaro, que sustentou o recurso no argumento de que à época dos fatos investigados tinha foro do TJ e, por isso, o caso deveria correr na corte. Ainda que não haja disposição dos novos protagonistas em proteger o senador, confusões processuais costumam ser benéficas aos investigados. O simples desvio na trajetória da apuração, por si, já ajuda. Além disso, há outro dado a justificar a festa dos defensores do filho do presidente: investigações em segunda instância são naturalmente mais lentas e mais expostas a interferências políticas. Para se ter uma ideia do que isso significa, antes de ganhar a luz, o relatório do Coaf que deu origem ao caso ficou parado – sim, parado – por cerca de um ano no mesmo lugar para onde volta agora. Até por se chocar com a jurisprudência, a decisão deverá ser questionada em breve nos tribunais superiores, com grandes chances de ser devolvida para a primeira instância. Enquanto isso, os Bolsonaro ganham um tempo precioso. Não é pouca coisa em um momento, para eles, tão dramático.
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