Reprodução - Redes SociaisA favela de Rio das Pedras, na zona oeste do Rio: lugares onde o Estado não chega

Milícia S/A

O ‘Escritório do Crime’, braço armada da máfia carioca que apareceu nas investigações sobre Fabrício Queiroz, vai muito além da pistolagem. É uma máquina de lavagem de dinheiro
03.07.20

Uma década atrás, as milícias do Rio de Janeiro eram bandos violentos de policiais com alguns chefes que se elegiam para cargos públicos, normalmente deputados ou vereadores, mas logo iam presos porque deixavam rastros de seus crimes. As investigações mais recentes do Ministério Público mostram que as milícias se sofisticaram ao longo dos anos.

Além de fuzis e metralhadoras, os milicianos contam agora com agentes infiltrados nas instituições, para dominar territórios e estabelecer, nas palavras dos promotores de Justiça, um “poder paralelo ao estado”. Em vez de se lançarem candidatos como faziam antes, os chefes das milícias transformaram seus territórios em currais eleitorais para patrocinar políticos que rezam na sua cartilha e, como esse patrocínio também exige poder financeiro, estruturaram uma verdadeira “empresa do crime”, na definição dos investigadores.

A milícia de Rio das Pedras – uma das mais antigas do Rio, que atua em uma extensa região da zona oeste da cidade – chegou ao ponto de estabelecer laços com gente ligada à cúpula do poder nacional. Chefe do grupo até ser morto em fevereiro passado, Adriano Nóbrega era próximo de Fabrício Queiroz, o ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República. O Ministério Público Estadual afirma que Adriano, Queiroz e o filho do presidente Jair Bolsonaro participaram de um esquema de lavagem de dinheiro na Assembleia Legislativa, quando Flávio era deputado estadual.

Hermes de Paula / Agência O GloboHermes de Paula / Agência O GloboO sucessor de Adriano da Nóbrega no comando do “Escritório” foi preso na terça-feira
A morte de Adriano em uma operação no interior da Bahia, onde ele se escondia, não freou a milícia de Rio das Pedras. Nesta semana, a polícia prendeu o sucessor dele no Escritório do Crime, como é chamado o braço da quadrilha que mata por encomenda. O bando formado por ex-policiais vigiava suas vítimas por meses, às vezes usando até drones, agia com roupas camufladas e armas de guerra e chegava a cobrar 1,5 milhão de reais por homicídio. Um ex-integrante delatou o grupo e há novas operações no horizonte. Os crimes de sangue representam uma frente de negócios. Os milicianos também exploram moradores da região, cobrando por gás de cozinha, internet, TV a cabo, transporte alternativo e taxas de segurança.

Documentos de diferentes investigações obtidos por Crusoé ajudam a compreender o gigantismo das atividades da milícia. Os chefões não moram na favela, mas em condomínios luxuosos. Eles operam uma gama de negócios: compra e venda de imóveis, limpeza e manutenção de prédios, estacionamento de veículos, segurança privada, empréstimos de dinheiro, transações com carros de luxo, lojas de materiais de construção e diversos restaurantes e estabelecimentos comerciais, que servem para a lavagem de dinheiro por meio de uma rede de laranjas.

A milícia contaria ainda com um núcleo infiltrado na Polícia Civil do Rio para se precaver de investigações, principalmente sobre o jogo do bicho e o mercado de máquinas caça-níqueis. A sofisticação dos negócios inclui outras transações sórdidas que ainda surpreendem investigadores. Uma quebra de sigilo telefônico autorizada pela Justiça mostra um dos chefões do bando providenciando um aborto. Em troca, o pai da criança arranjaria, em órgãos públicos, a licença que faltava para uma obra em um terreno da quadrilha.

Reprodução/Redes SociaisReprodução/Redes SociaisQueiroz na cadeia: transações financeiras com o núcleo da milícia
A polícia ainda investiga o tamanho do patrimônio do ex-capitão Adriano da Nóbrega, que criava cavalos e procurava fazendas para comprar na Bahia quando foi morto a tiros pela polícia. Os investigadores sabem que  Adriano e sua mãe tinham restaurantes. Um deles funcionava no mesmo local de outro aberto em nome de milicianos. A pedido de Fabrício Queiroz, o então deputado Flavio Bolsonaro empregou a ex-mulher e a mãe de Adriano no seu gabinete. O Ministério Público diz que Adriano repassou 400 mil reais a Fabrício Queiroz no esquema de rachid em que funcionários de Flávio na Assembleia Legislativa devolviam parte dos salários.

Queiroz também recebeu 69 mil reais de restaurantes ligados a Adriano. Procurada por Crusoé, uma sócia do estabelecimento não soube explicar o motivo do pagamento feito pelo que ela chamou de “departamento financeiro”, com o qual diz não ter contato. Surgem, assim, indícios de que Adriano repassou dinheiro da milícia para Queiroz e – num esquema de lavagem – recebeu dinheiro da Assembleia por meio da ex-mulher e da mãe, empregadas no gabinete de Flávio.

Até aqui, Adriano é o personagem mais conhecido da quadrilha de milicianos, mas os documentos da investigação apresentam outros chefes de alto cacife. Capitão aposentado da PM, Epaminondas de Queiroz foi preso no começo deste ano num desdobramento da investigação contra Adriano. Segundo o MP, ele é um dos pioneiros da quadrilha na época em que os chefões ainda disputavam eleições.

Atualmente filiado ao Democratas, Capitão Queiroz (não há, ao menos aparentemente, relação de parentesco entre ele e Fabrício Queiroz, o ex-assessor de Flávio Bolsonaro) se candidatou a deputado estadual pelo PDT em 2006. Declarou bens de 16 mil reais. Não se elegeu porque lhe faltaram votos para superar um integrante de outra milícia, conhecido pelo sugestivo apelido de “Mata Rindo”. Pouco depois, em 2009, a investigações levaram o Capitão Queiroz à cadeia pela primeira vez, mas ele acabou absolvido e, segundo os papéis do MP, tornou-se um empresário da milícia que age nos bastidores, com empresas abertas em nome de laranjas.

Reprodução/Redes SociaisReprodução/Redes SociaisAté pouco antes de ser morto, Adriano da Nóbrega mantinha contato com Queiroz
Em uma conversa por telefone, captada pelo MP, um segurança do Capitão Queiroz diz que o patrão “ostenta viagens para Nova York, lancha e uma casa em Miami, mas deixa de depositar o FGTS dos funcionários de sua empresa”. O guarda-costas se referia, possivelmente, a uma empresa que atua no ramo de limpeza de prédios e estava em nome da secretária do capitão. A firma tem dívida de 30 milhões de reais com União.

Após o rombo, o esquema transferiu a empresa para o município baiano de Luís Eduardo Magalhães. A secretária continuou operando. Uma escuta telefônica mostra que ela pediu ao gerente do banco aumento no seu limite de crédito, pois precisava movimentar 100 mil reais por dia em transferências para diversas contas. Segundo o Ministério Público, o grupo também atua no ramo de segurança privada. Presta serviços a shoppings, condomínios e hotéis.

Com dinheiro na mão, os chefes da milícia fazem empréstimos a juros abusivos para comerciantes. Na operação contra o ex-capitão Adriano, o MP apreendeu uma planilha com uma lista de empréstimos que totalizavam 1,62 milhão de reais entre janeiro e julho de 2019. O credor dessa soma expressiva é um ex-PM que também integra o comando da quadrilha e criou uma empresa para lotear imóveis.

O esquema conta ainda com empresários do ramo imobiliário interessados em lucro fácil, que compram lojas e terrenos clandestinos na favela e em outras comunidades da região. Em contrapartida, pagam “taxas de segurança” aos milicianos que passam de 200 mil reais. Como revelou uma reportagem de Crusoé, um desses empreendedores, que também é do ramo de locação de veículos, alugava carros para o gabinete do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, do Republicanos. Ele foi preso.

CrusoéCrusoéRestaurante ligado à milícia repassou dinheiro ao ex-assessor
Os empresários tratam com os chefes da milícia por meio de intermediários que geralmente vivem na favela. Um deles, conhecido pelo apelido de Vagner Love, representa bem a classe de milicianos que ostenta poder pelas ruas da comunidade. Em depoimento ao MP, a ex-mulher de Love contou que, após entrar para milícia, o ex-marido passou a frequentar bons restaurantes, usar roupas caras e ampliou uma loja de materiais de construção. Love também andava em carros de luxo que ele dizia vender em Pernambuco, para onde eram transportados dentro de caminhões que, ao menos oficialmente, deveriam estar carregados com gesso. A lista de veículos incluía exemplares de marcas como Mercedes Bens, BMW, Camaro, Audi e Land Rover. Os carros não tinham documentação. Quando eram parados em alguma blitz, a milícia subornava os policiais.

Quem tem ligações com os chefes da quadrilha leva vantagem sempre. O acesso facilitado é motivo de status. O outro Queiroz – não o capitão que usa a secretária como laranja, mas o ex-assessor de Flávio Bolsonaro – podia se orgulhar disso antes de ser preso. Em dezembro de 2019, um rapaz mandou uma mensagem de voz para a mulher dele. Queria ajuda em uma desavença com um comerciante. Pedia que Queiroz intercedesse em seu favor junto a milicianos porque se sentia ameaçado pelos “meninos” que dominam a área. O ex-assessor e amigo do presidente da República prometeu socorrê-lo, mas só quando estivesse de volta ao Rio – àquela altura ele estava em Atibaia, na casa do advogado Frederick Wassef.

Outros dois negócios rentáveis da milícia são o jogo do bicho e as máquinas caça-níqueis. A disputa pelo controle dessas atividades costuma resultar em homicídios. Segundo um documento do MP, o ex-sargento da PM Ronnie Lessa, preso pelo assassinato da vereadora Marielle Franco, operava o jogo ilegal, fazia parte do Escritório do Crime e ainda contava com a proteção da polícia. Em julho de 2018, quatro meses após o assassinato de Marielle, a PM apreendeu 80 máquinas caça-níqueis em um bingo clandestino na Barra da Tijuca que seriam de Lessa. O caso foi parar em uma delegacia onde, segundo o MP, a milícia tinha o chefe de investigação na lista de pagamento de propinas. Procurada, a Polícia Civil informou, sem dar detalhes, que o inquérito sobre o caso foi encaminhado à Justiça.

O avanço do poder paralelo dos milicianos, à base de dinheiro e das armas, tem despertado preocupação nas autoridades encarregadas de tocar as eleições deste ano. O temor é que, nas áreas de domínio da quadrilha, o direito de votar e ser votado seja suprimido pela força dos chefes, que sempre têm os seus candidatos preferidos e exigem fidelidade da população local. “A Justiça Eleitoral não tem uma ferramenta para enfrentar a milícia”, diz a procuradora regional eleitoral do Rio, Silvana Batini.

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