Adriano Machado/Crusoé

A prova

Uma investigação do Facebook comprova o que uma reportagem publicada por Crusoé há nove meses mostrava: o gabinete do presidente da República está ligado a uma azeitada rede de difamação e fake news
10.07.20

Há nove meses, uma reportagem de capa de Crusoé expôs as entranhas de uma azeitada rede virtual composta por militantes de crachá cuja missão era disseminar fake news e moer reputações daqueles que ousassem se opor ao governo na internet ou fora dela. A investigação puxava o fio de um novelo capaz de enredar o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e parlamentares aliados nesse engenho de ódio, que começou a funcionar ainda na campanha eleitoral de 2018, mas continuou a operar depois da posse.

É exatamente o que revela agora um relatório do Facebook baseado em um levantamento produzido pelo Digital Forensic Research Lab, o DRFLab, ligado ao Atlantic Council, grupo financiado pela rede social do bilionário Mark Zuckerberg e integrado por pesquisadores especializados em combate à desinformação nas plataformas virtuais.

Ao remover na quarta-feira, 8, uma rede de 88 contas ligadas a integrantes do gabinete presidencial, aos filhos do presidente e a aliados que promovia a desinformação e articulava pesados ataques políticos no ambiente virtual, o Facebook confirmou que a teia de perfis falsos de apoio a Bolsonaro está de pé pelo menos desde o período eleitoral. E concluiu que, depois que o presidente ascendeu ao Planalto, em vez de reduzir a intensidade dos ataques aos alvos preferenciais dos bolsonaristas, a rede ganhou “legitimidade institucional”.

“Bolsonaro já havia sido acusado de manter operações de divulgação de informação, mas esta é a primeira vez que assessores seus estão diretamente ligados a perfis inautênticos”, atesta o relatório. Ao chegarem a essa conclusão, as investigações do Facebook conferem materialidade ao que Crusoé antecipou com exclusividade em outubro do ano passado: a existência de uma inequívoca associação do presidente da República com a quintessência das falanges que o defendem nas redes.

O assessor especial de Bolsonaro identificado pelo Facebook como braço operacional do gabinete do ódio no Planalto atende pelo nome de Tércio Arnaud Tomaz. Tutelado por Carlos Bolsonaro, filho 02 do presidente da República e responsável pela estratégia digital do governo, Arnaud despacha no terceiro andar do Planalto, a poucos metros do gabinete presidencial. Seus vencimentos somam 13,6 mil reais.

ReproduçãoReproduçãoO prestígio de Tércio: assessor acompanha Bolsonaro em viagens pelo país
Conforme apurou Crusoé, Arnaud, que já trabalhou com Carlos na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, onde ganhava 3 mil reais por mês, chegou a ser nomeado no dia 24 de abril de 2017 para o próprio gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro, onde bateu ponto até o dia 6 de dezembro daquele ano, segundo registros do Diário Oficial da União.

Em 2018, ele passou a assessorar informalmente o então candidato à Presidência. Seu cargo atual denota prestígio entre os servidores comissionados do Planalto: é assessor especial do principal gabinete da República. Tércio ainda acompanha Bolsonaro em viagens e goza de influência na primeira-família da República.

Ao assessor especial de Bolsonaro, o Facebook atribui a autoria da página “Bolsonaro Opressor 2.0”, que contava com 1 milhão de seguidores até ser derrubada. A investigação também associou a ele o perfil do Instagram @bolsonaronewsss, uma página anônima que chegou a ter 492 mil seguidores e realizava, por exemplo, campanhas de desinformação sobre o uso da cloroquina no tratamento do coronavírus – expediente tão defendido pelo presidente. Nesse perfil, em especial, as digitais de Arnaud são cristalinas: o e-mail pessoal dele aparece no código-fonte.

De acordo com o relatório, a maioria das postagens da lavra do assessor especial foi publicada durante o horário comercial – o que mostra que elas muito provavelmente foram idealizadas, produzidas e despachadas durante o expediente dele no Planalto. Ou seja, ao que tudo indica, atos de improbidade administrativa foram cometidos debaixo do nariz de Bolsonaro. Literalmente na sala ao lado.

O modus operandi da turma capitaneada por Tércio Arnaud Tomaz é conhecido por quem tem o mínimo de familiaridade com os linchamentos virtuais promovidos nas redes sociais desde a era petista no poder. A diferença é que, agora, no governo Bolsonaro, a tática de destruição de reputações ganhou sofisticação, capilaridade e passou a ser, segundo o Facebook, institucionalizada.

Crusoé antecipou o funcionamento da rede, composta por militantes de crachá
Tércio e sua turma usavam as contas nas redes sociais para lançar petardos contra rivais e difundir narrativas que, invariavelmente, favoreciam Bolsonaro. Para escapar de punições, o grupo usava contas duplicadas e falsas, criava personagens fictícios fingindo ser jornalistas e administrava páginas emulando veículos oficiais de mídia. Também se valia de perfis fakes que postavam em grupos não necessariamente relacionados à política, como se fossem pessoas comuns a fustigar opositores de Bolsonaro e enaltecer os “feitos” do presidente. Um dia após a saída do ex-ministro da Justiça Sergio Moro do governo, a conta @bolsonaronewsss fez questão de espalhar um meme em que exibia o ex-juiz apunhalando Bolsonaro pelas costas, sob a legenda “o traidor silencioso”. A postagem também forçava uma ligação entre Moro, o STF e a Rede Globo. Ao longo da semana, o Jornal Nacional também mostrou que uma das contas clandestinas criadas pelos bolsonaristas foi usada até mesmo para torpedear a estreia de Sergio Moro como colunista de Crusoé.

Se restar caracterizado que Tércio, um servidor pago com dinheiro público, foi mesmo escalado por Carlos Bolsonaro – com o consentimento do mandatário do país – para destilar veneno nas redes sociais contra quem quer que se opusesse aos objetivos muitas vezes nada republicanos do governo, Bolsonaro encalacra-se de vez. Na tarde de quinta-feira, 9, Carluxo acusou o golpe. Em seu perfil no Twitter, provavelmente já orientado pelos bombeiros da crise no Palácio do Planalto, disse que, aos poucos, “vai se retirando” e que pode ter chegado a hora de um novo “movimento pessoal”. O vereador acrescentou que “ninguém é insubstituível”. “Totalmente ciente das consequências e variações. Aos poucos vou me retirando do que sempre explicitamente defendi. Creio que possa ter chegado o momento de um novo movimento pessoal. Ninguém é insubstituível e jamais seria pedante de me colocar nesse patamar”, postou.

Reza a Constituição que um presidente não pode ser processado por atos estranhos ao mandato. Ocorre que, a julgar pelas revelações do Facebook, há fartos indícios de que a usina do ódio que começou na campanha jamais parou de operar, o que joga o problema para dentro do mandato de Bolsonaro. Na verdade, a investigação do Facebook teve o condão de acertar dois flancos de Bolsonaro numa tacada só – e é por isso que ela passou a apavorar o Planalto bem mais do que o diagnóstico positivo do presidente para Covid-19 anunciado na terça-feira, 7.

Ao revelar que um dos expoentes do ódio atua a poucos passos do gabinete presidencial, o Facebook colocou Bolsonaro mais próximo ainda do inquérito que corre no Supremo Tribunal Federal e apura as supostas ameaças a integrantes da corte. Ao mostrar que a engrenagem funciona desde a campanha, acabou por municiar as ações que tramitam no Tribunal Superior Eleitoral contra a chapa Bolsonaro-Hamilton Mourão. Os dois casos se entrelaçam quase que indissoluvelmente e podem compor a tempestade perfeita contra o governo, pois o STF já compartilha com o TSE dados extraídos do inquérito, sob a batuta de Alexandre de Moraes, responsável por levantar o sigilo bancário de empresários bolsonaristas, supostos patrocinadores das fake news.

A corte eleitoral tem se mostrado hostil a Bolsonaro. A ação que representava o menor risco contra a chapa presidencial e tinha grandes chances de ser arquivada não só foi mantida pelos ministros como o caminho para aprofundar as investigações foi pavimentado. Há outras bem mais sensíveis, que acusam a chapa de abuso de poder econômico e uso indevido de meios de comunicação na campanha. O argumento das representações que deram origem aos processos segue exatamente a mesma linha da justificativa usada pelo Facebook para derrubar as contas ligadas a aliados de Bolsonaro.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéCarluxo anunciou “um novo movimento pessoal”: bateu em retirada
Ao todo, o relatório aponta para a participação direta de cinco assessores e ex-servidores de gabinetes alinhados ao governo. Além de Tércio Arnaud Tomaz, dois assessores do deputado federal Eduardo Bolsonaro, o filho 03 do presidente, também tiveram seus perfis derrubados. Um deles, Paulo Eduardo Lopes, o Paulo Chuchu, é tido como um “dos principais operadores” da rede de milícias digitais. Ele é um dos artífices do partido em gestação Aliança pelo Brasil, em São Bernardo do Campo, e dono de uma página cujos posts serviam para atacar rivais e a imprensa. Chuchu foi presidente do diretório municipal do PSL em São Bernardo durante o período em que Eduardo chefiava a legenda na esfera estadual.

Perfis associados a Eduardo Guimarães, outro assessor do 03, também foram cancelados. Ele administrava a página “Bolsofeios”, usada para insultar jornalistas, o Supremo e opositores de Bolsonaro. O elo entre Guimarães e o “Bolsofeios” já havia sido mencionado na CPMI das Fake News, em curso no Congresso. Antes de trabalhar com o filho do presidente, Guimarães foi assistente de Bolsonaro durante as eleições de 2018. Ele atua na Câmara dos Deputados desde 2006, onde ganha 15 mil reais por mês.

Os líderes da falange bolsonarista operavam não só a partir de Brasília e São Bernardo do Campo, como também do Rio de Janeiro. Na capital fluminense, Anderson Moraes, um destacado aliado dos Bolsonaro, emprega uma servidora apontada como ponta de lança das milícias digitais: Vanessa Navarro, assessora com salário de 2 mil reais. Ela é namorada de Leonardo Rodrigues Barros Neto, ex-assessor da deputada estadual Alana Passos, do PSL. Ambos haviam sido apresentados ao público na reportagem de Crusoé de 11 de outubro de 2019. Eles administram 13 perfis criados para gerar conteúdo bolsonarista. Leonardo ainda geria a página “Bolsoneas” e “Jogo Político”, que produziam memes e manchetes com informações falsas e ataques ao Supremo.

A investigação que levou à derrubada das páginas bolsonaristas faz parte de uma investida mais ampla do Facebook, que também alcançou contas no Canadá, Equador, Ucrânia e Estados Unidos. Entre os figurões que tiveram seus perfis confiscados, está o lobista norte-americano Robert J. Stone Jr, amigo do presidente Donald Trump condenado por ameaçar testemunhas nas investigações sobre a interferência russa nas eleições de 2016 – a rede social o acusa de ser ligado a contas de um grupo supremacista branco que atuou durante o pleito.

Os impulsionamentos dessas redes no exterior envolveram cifras milionárias em publicidade. No Brasil, chamou a atenção o fato de a rede bolsonarista ter angariado 2 milhões de seguidores, número bem mais expressivo do que o registrado nos outros países investigados, com o investimento de módicos 1,5 mil dólares em anúncios. A rede, no entanto, frisa que, além dos recursos empregados no impulsionamento, toda a operação destinada a promover o presidente e achincalhar quem se atrevesse a contestá-lo foi irrigada com dinheiro público – e é exatamente aí que mora o perigo para Jair Bolsonaro.

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