Reprodução/redes sociais

Um governo doente

A doença de Bolsonaro amplia a exposição dos tropeços do Brasil no combate à pandemia. Mas o problema vai além: em diferentes áreas, o governo está débil e encontra dificuldades para reagir
10.07.20

Desde o início da pandemia, Jair Bolsonaro tentava mostrar-se inexpugnável a um vírus de natureza devastadora, responsável hoje pela contaminação de 1,7 milhão de brasileiros e pela morte, até agora, de mais de 70 mil. Movido por um incorrigível espírito negacionista, como quem declarasse guerra à ciência, o presidente adotou como política o menosprezo aos efeitos da Covid-19, fazendo ouvidos moucos a regras triviais de prevenção e pouco caso do distanciamento social. Ao colocar a política acima das questões sanitárias, estimulou aglomerações desnecessárias e chegou a colocar em risco a saúde da população. No dia a dia do governo, não apenas desestimulava o uso de máscaras como fazia piadas homofóbicas com quem as utilizava como forma de prevenção de contágio, observando tão somente a orientação das autoridades sanitárias.

Na terça-feira, 7, a confirmação do diagnóstico positivo de Bolsonaro para o coronavírus fez com que o mundo voltasse ainda mais os olhos para o desastre em que se transformou o combate à epidemia no Brasil. Um integrante do primeiro escalão do governo experimentou, em pleno Palácio do Planalto, a falta de estrutura e o despreparo para lidar com um problema que assola o planeta há seis meses. Ao receber a notícia de que o chefe estava infectado, o ministro, que havia tido contato direto com ele, quis se submeter a um teste, mas ouviu de auxiliares que, se quisesse um diagnóstico rápido, deveria fazer o exame “no particular” porque o serviço médico palaciano é demorado e burocrático. O ministro resolveu fazer o teste por conta própria, tirando dinheiro do próprio bolso.

O conselho para fazer o exame “no particular” poderia soar prosaico em condições normais de temperatura e pressão, mas ante a eclosão de uma pandemia sem precedentes na história recente do Brasil e do mundo é sintomático da falta de direção – se nem no núcleo do governo central é possível confiar no encaminhamento rápido e eficaz de um simples diagnóstico, não é difícil imaginar a situação das dezenas de milhões de brasileiros dependentes dos serviços públicos de saúde.

Não bastasse a tentativa de transformar o anúncio de que está com Covid-19 num espetáculo político, com ode a um remédio sem eficácia comprovada, embalado por uma entrevista presencial em que de novo menosprezou cuidados consigo mesmo e com terceiros, o presidente nem sequer tem cumprido a receita básica como gestor de um país abalado por múltiplas crises.

No comando da Saúde, uma área crucial do governo em qualquer circunstância, ainda mais na atual, Bolsonaro mantém um interino, o general de brigada Eduardo Pazuello, há mais de dois meses. Dois ministros técnicos saíram por se recusarem a admitir tentativas de intervenção ideológica e anticientífica. Mesmo assim, o presidente ainda se regozija publicamente do feito. Hoje, no lugar de especialistas, há quase três dezenas de militares no Ministério da Saúde prestando continência a uma política negacionista só adotada no Brasil – até o presidente americano, Donald Trump, que Bolsonaro gosta de emular, já abandonou ideias carentes de sustentação científica praticadas por aqui, como o uso da cloroquina.

Falta bússola também ao Ministério da Educação, às voltas com uma briga de foice entre as alas militar, a olavista e a fisiológica, encarnada pelo notório Centrão; a pasta do Meio Ambiente segue sem rumo ao adotar políticas controversas, tendo à frente um ministro que pode ser afastado por ordem judicial; e o Itamaraty permanece imerso numa guerra ideológica, que só contribui para compor o quadro do fosso em que está o país.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéPresidente muda rotina pessoal, mas não a do governo: áreas seguem à deriva
A interlocutores, Bolsonaro tem dito que na Saúde até aceita tirar Pazuello, um especialista em logística, mas ainda não encontrou um substituto. “Fora o protocolo da cloroquina, não me lembro de nenhuma política pública relevante para enfrentar a Covid desde maio”, desabafa uma fonte do corpo técnico do ministério, próxima ao gabinete do ministro. A avaliação interna é que a pasta demora a responder aos eventos da pandemia e não tem embasamento para tomar decisões.

Nos bastidores do Ministério da Saúde, disputas internas travam um dos principais projetos do governo, o “Médicos pelo Brasil”, que, se estivesse funcionando, poderia reforçar a atenção básica para o enfrentamento da pandemia. O projeto tem mais de 700 milhões de reais à disposição no orçamento, mas não saiu do papel.

No final de junho, Pazuello indicou seu braço direito, Élcio Franco, aquele que costuma aparecer em entrevistas coletivas ostentando um broche de caveira, e a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, como presidente e vice-presidente, respectivamente, do conselho da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde, criada especificamente para gerir a nova versão do “Mais Médicos” de Bolsonaro. Só que a dupla, tão logo foi nomeada, iniciou uma cruzada para destituir três servidores de carreira da diretoria executiva do órgão.

Em meio à querela interna, importantes decisões da área técnica do programa ficaram pendentes. Por exemplo, o impasse fez com que a agência estourasse o prazo legal para ter seu estatuto aprovado. Também não foi assinado até agora o contrato de gestão com o ministério, necessário para que o Médicos Pelo Brasil seja colocado para funcionar.

Técnicos temem que a disputa política acabe aparelhando o programa, que nasceu baseado em metas e experiências de sucesso adotadas no Canadá e no Reino Unido. Fontes ouvidas por Crusoé relatam que o mérito da proposta é a criação de uma carreira médica sem extrapolar o orçamento que já era destinado ao Mais Médicos.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéPazuello pode ser substituído na Saúde: disputas travam projetos relevantes
A pasta ainda convive com problemas de execução orçamentária. Enquanto o país acumula mais de 70 mil mortos pela Covid-19, o ministro da Saúde interino está sentado em cima de 723,1 milhões de reais, segundo dados do Ministério da Economia. Até agora, a Saúde já recebeu 39,3 bilhões em razão da pandemia, mas menos de 30% desses recursos foram efetivamente desembolsados até o momento.

Quando a política fala mais alto, quem paga a conta é a gestão. Na administração Pazuello, Mayra Pinheiro assumiu o protagonismo no Ministério ao abraçar sem qualquer pudor as demandas do bolsonarismo. Presença constante em coletivas de imprensa, ela chegou a dizer que o órgão atendeu a um “clamor” popular quando editou um protocolo de tratamento para a Covid-19 baseado na hidroxicloroquina. Nos corredores da pasta, ela é chamada à boca pequena de “Mayra Cloroquina”.

A doença do governo, conhecida como “paralisia decisória” na ciência política, não contagiou apenas o Planalto e a Saúde. O MEC, sem ministro desde que Abraham Weintraub se demitiu e fugiu do país, há mais de 20 dias, continua patinando. Governos estaduais reclamam da falta de políticas públicas destinadas principalmente ao ensino básico durante a pandemia. Até o parecer do Conselho Nacional de Educação que autorizou a equivalência entre aulas online e aulas presenciais para cumprimento da carga horária letiva demorou um mês para ser homologado por Weintraub.

O Comitê de Emergência do MEC, criado por Weintraub em março, é visto como pouco útil por gestores da educação básica. A secretária de Educação Básica, Ilona Becskehazy, recentemente bateu boca pelo WhatsApp com secretários estaduais, que se ressentem da falta de diálogo com Brasília. Ilona chegou a ser cotada para assumir o comando da Educação, mas a balbúrdia em que se transformaram os casos de Carlos Alberto Decotelli e do empresário Renato Feder fez o governo colocar um pé no freio.

A exemplo da Saúde, a Educação está acéfala. Indicação da ala militar, Decotelli ostentava experiência, títulos e interlocução com o setor. O perfil parecia perfeito, mas se revelou uma estrepitosa fraude. Sucessor natural, o empresário Renato Feder, duas vezes favorito, antes e depois de Decotelli, achou mais conveniente pular fora. Antes mesmo de ser anunciado, ele já havia virado alvo dos olavistas, a quem Bolsonaro ainda costuma dar ouvidos – eles querem ver no posto um dos seus.

Jorge Oliveira pode emplacar um pastor no Ministério da Educação
Durante a semana, fora da agenda oficial, Bolsonaro sondou para a cadeira deixada para trás por Weintraub o professor Anderson Ribeiro Correia, reitor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA. Nos últimos dias, porém, o nome favorito para chefiar a pasta passou a ser o de Milton Ribeiro, ex-vice-reitor da Universidade Mackenzie em São Paulo. Ele é pastor da Igreja Presbiteriana de Santos, no litoral paulista, e foi indicado por Jorge Oliveira, ministro da Secretaria-Geral da Presidência e um dos mais prestigiados conselheiros de Bolsonaro. Enquanto permanece sem comando, o MEC até tem assinado cheques para engrossar o orçamento das escolas durante a pandemia, mas apenas 23,6% dos 822,9 milhões de reais destinados à pasta para financiar suas ações em tempos de pandemia foram de fato gastos até agora. Em média, os ministérios despenderam cerca de 35% dos recursos emergenciais que receberam – é pouco, e o número mostra a dificuldade do governo para fazer a máquina andar. (Atualização: na tarde desta sexta-feira, 10, o presidente anunciou Milton Ribeiro como o escolhido para o cargo.)

Em outra frente importante, o Itamaraty segue submerso em suas questiúnculas nada pragmáticas. Pressionado no cargo, o chanceler Ernesto Araújo respirou aliviado depois dos tapinhas nas costas que recebeu publicamente de Jair Bolsonaro, no almoço de 4 de julho, a data da independência americana, na residência do embaixador dos Estados Unidos. Araújo é alvo de um processo de fritura dentro do governo por alas incomodadas com o “bunker ideológico” montado no seio do Itamaraty. Aliados do ministro ouvidos por Crusoé, porém, ponderam que o presidente nutre afeição pelo chanceler e sinalizam que ele é capaz de se ajustar, se for o caso, ao discurso mais ameno do mandatário em sua nova versão “paz e amor”. Nos corredores do Itamaraty, os rumores em torno de uma possível demissão não cessaram, mas esfriaram nos últimos dias.

Também sob fogo cerrado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tenta exibir força após uma série de questionamentos do setor privado à política ambiental do governo brasileiro. A sua desastrosa declaração sobre “passar a boiada” na legislação ambiental teve impacto na imagem do Brasil no exterior. Salles, no entanto, tem recebido apoio ostensivo do ministro da Secretaria-Geral, general Luiz Eduardo Ramos, articulador político do governo, um dos representantes da ala militar no Palácio do Planalto.

Para conter os danos, o vice-presidente Hamilton Mourão vem assumindo aos poucos o comando da pauta ambiental e tenta convencer o público externo, especialmente o empresariado estrangeiro, da seriedade das medidas de combate ao desmatamento ilegal na Amazônia. Em paralelo, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, trabalha para desvincular o agronegócio de exportação da grilagem de terras. Em carta, um grupo de 40 grandes empresas de diversos setores, incluindo o agronegócio e a mineração, instou o vice-presidente a endurecer as ações contra o desmatamento e cobrou políticas para o desenvolvimento sustentável.

No curto prazo, no entanto, interlocutores de governos europeus acham pouco provável que o “banho de loja” da pauta ambiental consiga desbloquear recursos do Fundo Amazônia, por exemplo. Isso vai depender dos resultados da intervenção de Mourão, escalado como paramédico de um governo que, nas mais diversas frentes, só faz agravar o quadro do país, um paciente que há décadas lida com comorbidades graves e que, quando mais precisava recuperar seus sinais vitais, foi atingido pelo vírus da confusão.

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