Adriano Machado/CrusoéO Congresso brasileiro: suprimido em nome da democracia, sob a justificativa de torná-la mais eficiente

A coalizão pró-impunidade

De petistas a bolsonaristas, forças normalmente antagônicas no Congresso estão juntas nas articulações para barrar a proposta que autoriza prisões a partir da condenação em segunda instância
17.07.20

A discussão sobre a possibilidade de prisão de réus após condenação em segunda instância no Brasil é aquela que traça uma espécie de risco no chão, a distinguir os que transigem com a impunidade dos que não admitem o abuso de chicanas jurídicas até o trânsito em julgado – que pode nunca chegar, especialmente para os poderosos investigados. Na história do Brasil, na maioria das vezes, políticos capazes de contratar bancas advocatícias a peso de ouro conseguiram escapar da condenação. O cenário, aterrador, foi alterado com o surgimento da Lava Jato, responsável não só por ampliar o cerco aos corruptos, como também por criar o ambiente político necessário para que responsáveis por malfeitos com dinheiro público fossem punidos e mandados, finalmente, para trás das grades. Os esforços da operação se refletiram no entendimento do Supremo Tribunal Federal, firmado em 2016, de que um réu condenado em segunda instância poderia cumprir imediatamente a pena.

Em novembro de 2019, no entanto, graças ao voto decisivo do presidente da corte, Dias Toffoli, o dispositivo caiu por terra. Por seis votos a cinco, o tribunal entendeu que um condenado tem o direito de aguardar em liberdade a decisão definitiva da Justiça até o fim de todos os recursos e o resto já é história – a decisão abriu caminho, por exemplo, para a soltura de Lula. Desde então, há tentativas de resgatar a prisão em segunda instância pela via do Parlamento, uma iniciativa que, ao menos até agora, também não deve ter futuro promissor. O motivo: aqueles que exibem os brancos dos colarinhos e têm a exata noção do que fizeram no passado, o que fazem no presente e o que ousarão fazer no futuro, temem pelos seus destinos.

Nas últimas semanas, uma nova operação foi desencadeada nos bastidores do Congresso com o objetivo de enterrar ou, ao menos, desfigurar a proposta. Há uma novidade – não mais espantosa – na articulação: ela ganhou o apoio de cabeças coroadas do governo Bolsonaro e a iniciativa perdeu o ímpeto entre os parlamentares que, num passado recente, fizeram do apoio à prisão após condenação em segunda instância seu estandarte eleitoral, como é o caso de Daniel Silveira, Carla Zambelli e Bia Kicis, hoje pontas de lança do bolsonarismo na Câmara.

O presidente da República, seus familiares e os neoaliados do Centrão querem evitar a retomada da discussão a qualquer custo por questões políticas, eleitorais, e, sobretudo, por instinto de autoproteção. Somam-se ao grupo governista parlamentares de esquerda e do PT que já estavam enrolados com a Justiça. Aí se configura um curioso encontro entre bolsonaristas e petistas. Nunca o fenômeno já conhecido como “bolsopetismo” foi tão forte. Na batalha contra o resgate da prisão em segunda instância, a convergência assume ares de aliança. Do lado oposto, como alvos de ambos, estão a Lava Jato e os órgãos anticorrupção.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, promete colocar o tema em votação em agosto. Na terça-feira, 14, o presidente da comissão especial da PEC da Segunda Instância, Marcelo Ramos, do PL, procurou Maia com a ideia de antecipar a leitura e o debate do relatório do deputado Fábio Trad, do PSD, em sessão virtual. Para Ramos, é possível fazer a proposta tramitar por meio de reuniões à distância, deixando somente a votação do texto para o momento da retomada das atividades presenciais. Ainda não há, contudo, uma decisão final sobre o tema.

Lula Marques/Agência PTLula Marques/Agência PTGleisi Hoffmann conta com o apoio de bolsonaristas na cruzada contra a PEC
Apresentada pelo deputado Alex Manente, do Cidadania, em novembro de 2019, a proposta permite a prisão de condenados após o julgamento em segunda instância ao definir que o trânsito em julgado de uma ação penal deve ocorrer exatamente nessa etapa do processo. No entanto, o parecer de Trad, construído a partir das audiências públicas, prevê mudanças significativas no texto original. A ideia é estender o alcance da medida a todos os ramos do direito, em vez de restringi-la à execução da prisão em ações penais. Assim, ações tributárias, trabalhistas, previdenciárias, cíveis e até as que correm em cortes militares também passariam a ser executadas logo após o veredicto em segunda instância.

A turma “anti-segunda instância” acalenta o sonho de levar a proposta direto para o arquivo. Ou, ao menos, acabar com sua essência depuradora. O grupo atua em plena pandemia para sepultar a questão de maneira mais sumária possível. Se não for possível, embala um plano “B” de forma não menos descarada, a partir da ideia de que a norma só passe a valer para novos ilícitos, isentando todos aqueles que cometeram crimes até a promulgação da emenda constitucional.

Conforme apurou Crusoé, para que a condenação em segunda instância só seja aplicada a processos novos, uma estratégia está sendo tramada intramuros por um grupo suprapartidário, formado por políticos de esquerda, de direita e de centro, para ser colocada em prática durante a votação do relatório da PEC. O plano é apresentar e aprovar um destaque, por meio de uma emenda aditiva, criada exclusivamente para incluir a ressalva no texto original. Para tentar se antecipar a esse movimento, Marcelo Ramos, o presidente da comissão especial, recorreu a consultores legislativos e chegou à conclusão de que a manobra não encontra respaldo no regimento interno da Câmara.

Os especialistas ouvidos pelo parlamentar sustentam que, como já acabou o prazo para propor emendas à PEC, no momento da votação só será possível a apresentação de emendas supressivas, ou seja, de propostas que resultem na retirada de trechos do relatório, e não no acréscimo, como querem os deputados “anti-segunda instância”. Mas como tudo no Congresso acaba virando uma questão de interpretação do regimento, e ele, não raro, é usado ao sabor dos interesses de quem detém mais força política, convém ficar atento.

Na linha de frente da articulação para enterrar a PEC, está o deputado Arthur Lira, líder do Progressistas na Câmara e recém-declarado bolsonarista. O parlamentar é a personificação do fisiológico Centrão. Age com desenvoltura no vale-tudo por cargos e verbas da União. Nessa nova quadra em favor da impunidade, Lira exerce tripla militância: atua a favor do Planalto, de seus liderados e em causa própria. O “malvado favorito” de Bolsonaro – é assim que o próprio presidente costuma se referir a ele – é alvo de seis inquéritos que correm no Supremo. No processo que mira o chamado “Quadrilhão do PP”, a denúncia contra Lira e outros figurões do partido já foi aceita pela corte. No mês passado, a Procuradoria-Geral da República apresentou uma nova acusação contra o parlamentar.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO deputado Marcelo Ramos tenta encurtar a tramitação da proposta
Lira é acusado de receber propina de 1,6 milhão de reais da empreiteira Queiroz Galvão em troca do apoio do PP, como o Progressistas era chamado à época, à manutenção do então diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. O caso surgiu ainda nos primórdios da Lava Jato, a partir da delação premiada do doleiro Alberto Youssef. Por isso, Lira considera que ressuscitar a prisão em segunda instância é fazer um corte profundo na própria pele.

Desde que Bolsonaro oficializou o casamento com o Centrão, novos escândalos envolvendo representantes do bloco eclodiram. A deputada Iracema Portella, ex-mulher do presidente nacional do Progressistas, Ciro Nogueira, por exemplo, foi denunciada por um esquema de “rachid” similar ao que apanhou o notório Fabrício Queiroz e o senador Flávio Bolsonaro. Dos cerca de 200 deputados que formam o bloco informal na Câmara, ao menos 60 – o equivalente a um quarto – enfrentam acusações e suspeitas que envolvem desde lavagem de dinheiro e corrupção a crimes ambientais.

Nos demais partidos empenhados em derrubar a proposta, também há interesses particulares e coletivos envolvidos. No PT, a presidente do partido, deputada Gleisi Hoffmann, é quem comanda a tropa de processados contrária à ideia. No final do ano passado, orientado por Gleisi, o deputado Paulo Teixeira chegou a entrar com uma ação no Supremo contra a PEC, logo que ela foi aprovada pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara. Hoje, porém, os petistas podem se dar ao luxo de fazer menos barulho contra o projeto por acreditar que o caminho está bem pavimentado pelos bolsonaristas para o seu arquivamento – ou, ao menos, para a sua desidratação.

Para o procurador Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, a confluência de interesses políticos contribui para o arrefecimento do debate em torno da aprovação da proposta, que ele classifica como “a mais importante medida para enfrentar a corrupção” hoje no país. “O reposicionamento do Supremo, no ano passado, foi uma das maiores derrotas recentes nessa luta contra a corrupção. A sociedade e a mídia têm que bater bumbo incessantemente com relação a esse assunto, porque a decisão do Supremo transmite uma percepção da impunidade como regra”, afirma. Livianu aponta um outro efeito colateral gerado pela decisão do STF de só permitir prisões após o trânsito em julgado: o desinteresse de acusados em firmar delação. “Como os processos hoje demoram muito mais, isso desestimula a delação premiada. É um problema que em breve será percebido com mais clareza”, prevê o procurador.

O enfraquecimento da mobilização popular em favor da PEC é fator de alívio para Jair Bolsonaro. O presidente foi eleito empunhando a bandeira de combate à corrupção, mas hoje elenca como prioridade livrar a própria família de embaraços. Com a manutenção do atual entendimento do Supremo de que a pena só pode ser executada após o trânsito em julgado, seu filho Flávio poderá arrastar o caso do rachid na Assembleia do Rio por anos a fio. A julgar pelo empenho com que trabalha para escapar da acusação de peculato, o desfecho tardará de fato: até agora, a defesa do senador já apresentou dez recursos para tentar paralisar as apurações do MP do Rio.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéArthur Lira, do Centrão, quer derrubar a essência depuradora da proposta
Embora não pareça que seja essa a intenção dos autores da proposta, a ideia de expandir para outros ramos do direito a execução da pena pode servir como um subterfúgio para dificultar a aprovação da prisão em segunda instância. Não chega a ser um clássico “jabuti”, termo que na gíria política define as emendas estranhas embutidas nos projetos, mas é um potencial gerador de problemas. “Estão criando um cavalo de batalha inexistente. O que se pretende é dar execução provisória à pena. Em outros ramos do direito, essa previsão já existe”, diz Carlos Velloso, ex-presidente do Supremo. “É desnecessário estender a PEC para outros ramos do direito. O ideal é restringir o alcance onde a medida é realmente necessária, que é no processo penal”, defende o ministro aposentado.

Para além do aparente intuito de embolar o meio de campo, a ampliação da PEC para outros processos que não os criminais poderia ter efeitos colaterais importantes. Inclusive sobre os cofres públicos, em razão da necessidade de antecipação do pagamento de precatórios – como são chamados os títulos decorrentes de condenações de entes públicos. O Conselho Nacional de Justiça estima que estados e municípios devem 141 bilhões de reais decorrentes de condenações. Já o governo federal deve 5,3 bilhões de reais em precatórios de pessoal, 11,5 bilhões de reais do INSS e 33,9 bilhões de terceiros, o que soma mais de 50 bilhões de reais em débitos. O trânsito em julgado após sentença em segunda instância, nesses casos, teria consequências danosas às já combalidas contas públicas. É um poderoso argumento para aqueles que querem que nada mude – e aí se juntam Centrão, governo, PT e todos os demais integrantes da bancada da impunidade no Congresso – deixem tudo como está.

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