SergioMoro

O Senhor das Moscas

17.07.20

Durante a Operação Lava Jato, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente alguns magistrados italianos que se destacaram na Operação Mani Pulite (Mãos Limpas). 

Um deles, Piercamillo Davigo, era procurador da República em Milão, na época da investigação, e depois seguiu carreira como magistrado até a Corte de Cassação Italiana. Escreveu vários livros sobre a Mãos Limpas e igualmente sobre a corrupção sistêmica descoberta nas investigações.

Sobre a reação política que se seguiu à Operação Mãos Limpas e que frustrou várias expectativas por maior integridade na política, Davigo tinha uma anedota para ilustrar o ocorrido. Contava ele que a Itália, em certo período do fascismo, passava por uma infestação de moscas. Foi então ordenada uma mobilização contra as moscas na qual todos deveriam se empenhar com os máximos esforços. Um representante do governo foi checar tais esforços em uma visita a uma cidade do interior. Ao chegar no vilarejo, desceu do seu carro e foi imediatamente cercado por um enxame de moscas. Contrariado, o representante interpelou a autoridade local e perguntou a ela “se não estavam engajados na guerra contra as moscas”. A resposta foi imediata: “sim, fizemos a guerra, mas o problema é que as moscas venceram”.

Já que falamos em moscas, passo para O Senhor das Moscas, livro de William Golding que conta a história de um grupo de meninos que, após um acidente aéreo, fica preso em uma ilha. Descreve a progressiva degradação moral do grupo e a perda da inocência decorrentes da escalada de disputas de poder entre eles, que inclui assassinato. Com o passar dos dias, os meninos passam a acreditar na existência de uma “besta-fera”, uma espécie de monstro da ilha, e a guiar suas ações com base nessa crença, inicialmente para destruir a besta, depois para adorá-la e em seu nome realizar sacrifícios. Em trecho perturbador, uma representação da besta, uma cabeça de porco empalada e cercada de moscas, revela a um dos meninos, em diálogo imaginário, que a besta não existiria como entidade real, que não seria algo que poderiam “caçar ou matar”, mas que eles – os meninos – seriam a besta, ela existiria dentro de cada um deles.  

Neste período no qual a Operação Lava Jato aparenta estar sob ataque, assim como a agenda anticorrupção, lembrei-me dessas duas estórias que, embora dissociadas, permitem algumas reflexões.

Não, aqui, as moscas ainda não venceram, apesar da agenda anticorrupção ter sofrido alguns reveses desde 2018, o que não deixa de ser surpreendente em vista das promessas eleitorais do novo governo. Algumas decisões judiciais desfavoráveis, como a revisão da execução da condenação em segunda instância, algumas medidas legislativas inconvenientes – que poderiam ter sido vetadas pelo Executivo – e interferências em órgãos de controle geraram um ambiente de frustração e desestímulo no combate à corrupção.

O lado positivo é que a agenda não é de difícil recuperação, havendo boas oportunidades em 2020 e 2021. 

Em agosto, o Congresso poderá aprovar a emenda constitucional que restabelece a execução da condenação criminal em segunda instância. Será um teste moral para o país e será importante olhar os detalhes, especialmente se a regra vai valer ou não para processos pendentes, o que é essencial para evitar a impunidade de crimes pretéritos, como desvios identificados na Lava Jato e mesmo no financiamento de ações contra a pandemia do Covid-19. A partir da aprovação, o capital político obtido pode ser utilizado em outras pautas legislativas — por exemplo, na eliminação do foro privilegiado e em medidas que protejam os órgãos de controle de interferências arbitrárias, como o estabelecimento de mandato para o diretor-geral da Polícia Federal.

Neste e no próximo ano, surgirão duas vagas para nomeação no Supremo Tribunal Federal. Espera-se que, coerente com as promessas de campanha, o presidente da República indique juristas com histórico de luta contra a corrupção e de atuação independente. Não falo, evidentemente, em causa própria, pois sei que não sou, após a saída do governo, uma escolha possível. Há muitos juristas que honrariam a nomeação ao STF e, em qualquer cenário, errará o presidente se a escolha for motivada por critérios de proximidade e lealdade pessoal.

Ainda poderemos ver durante o mandato presidencial se a Polícia Federal, apesar das interferências sofridas, manterá ou não a sua autonomia e os esforços contra a corrupção, sem seletividade. Haverá oportunidades nas quais a instituição será posta à prova e eu torço para que ela seja elogiada pelo trabalho a serviço do estado e não do governo. O mesmo pode ser dito em relação à Procuradoria-Geral da República: que se destaque como um órgão fundamental no combate à corrupção, sem a interferência de interesses políticos ou pessoais, e que garanta a atuação independente do Ministério Público Federal em todas as instâncias, deixando animosidades de lado.

Todos, Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público, terão chances de se empenhar na agenda anticorrupção e de reafirmar o quão valorosa é a independência entre os poderes. Pode haver divergências quanto aos detalhes dessa agenda, mas a aspiração por um país mais íntegro e pela redução da impunidade da grande corrupção está tão arraigada nos corações e nas mentes dos brasileiros que, na minha opinião, nenhum dos poderes ou de suas lideranças irá desejar ser identificada, no presente ou pela história, como alguma espécie de Senhor das Moscas, ou seja, como aquele responsável por sepultar a agenda anticorrupção e a Operação Lava Jato. Aos que se aventurarem em prol da impunidade da grande corrupção, é bom lembrar que, na ilha, a besta-fera só existia no imaginário dos meninos, mas aqui será possível identificá-la por muito tempo. Que as moscas tenham, como na natureza, vida breve e sejam passageiras!

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