MarioSabino

A ideologia no hospital

24.07.20

Nesta semana, fui parar no hospital (não é Covid-19). Passei um dia inteiro fazendo exames e o que foi detectado pode ser resumido assim: envelhecimento associado a stress. Contra o primeiro, não há muito o que fazer, além da receita conhecida — que, se não cumpro religiosamente, sigo com aquela assiduidade de agnóstico. Quanto ao segundo, só mesmo se eu mudar de profissão, e nenhuma tentativa feita por mim até agora resultou em sucesso. Acho que ficou tarde demais. Portanto, continuarei nestas redondezas até quando puder.

Abordo a minha ida ao hospital não para me lamuriar (característica, aliás, do envelhecimento, embora bastante evidente em certas juventudes), mas para contar que, por mais que tenha passado muitas horas lá, não fui informado se os enfermeiros, técnicos e médicos que me atenderam eram de esquerda ou direita. Alguns eram mais simpáticos e falantes, outros se limitavam à cordialidade própria das suas funções, isso foi tudo. Até o momento, pelo menos, não se exige que profissionais da saúde exibam crachá ideológico no exercício das suas atividades. Essa normalidade de hospital, aliada à injeção de contraste, empurrou-me para a seguinte pergunta: por que tanta gente hoje se sente compelida a declarar aos berros, não importa a situação, o seu lado na política e arrumar encrenca desnecessária com quem reza por cartilha oposta?

Nesta minha profissão cada vez mais odiada e necessária, até entendo que as pessoas queiram saber quem é de direita ou esquerda, porque quase todo mundo acha que quase toda notícia tem viés político. É verdade e não é. Apesar de a total imparcialidade no jornalismo ser mito, as notícias podem ser enxugadas do seu molho e, ainda assim, Sua Excelência, o Fato, permanecerá teimosamente na nossa frente. Não adianta negar o fato, apesar de a prática de rotular notícia verdadeira de fake news estar mais generalizada do que nunca por causa de ideologização extrema e da esperteza que corre no seu vácuo. Se fulano roubou, e o roubo está documentado, pode-se até tentar atenuar a gatunagem ou carregar nas tintas na hora de relatá-la, mas o roubo continuará lá, do mesmo tamanho. Se um desembargador cretino foi filmado humilhando um guarda municipal, coitado, porque não queria obedecer ao decreto que obriga o uso de máscara, e o episódio foi filmado, não adianta procurar desviar o assunto para uma discussão sobre se a obrigatoriedade do acessório fere ou não as liberdades fundamentais — o que interessa é a atitude abjeta do desembargador. Se um ministro do STF está citado no e-mail de um corrupto, não adianta censurar a reportagem, porque ela é indelével na memória dos leitores. Se você noticia que a ciência comprovou que a hidroxicloroquina é ineficiente contra a Covid-19, isso não o torna um comunista perverso que deseja a morte dos doentes e o fim da civilização ocidental. Estou dizendo obviedades? Sim, o problema é que nunca tão poucos cidadãos estão dispostos a ouvi-las. Chamo o escritor inglês George Orwell para testemunhar a meu favor: “Mergulhamos num abismo tal que reafirmar o óbvio é o primeiro dever dos homens inteligentes. Se liberdade significa alguma coisa, ela significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir. Em tempo de engano universal, dizer a verdade será um ato revolucionário”.

O meu ponto, no entanto, não é o jornalismo, mas a vida. A sua vida, o seu cotidiano. Se você começar a utilizar os serviços só de gente de direita ou apenas de gente de esquerda, conforme as suas inclinações, descartará a probabilidade de encontrar mais profissionais capazes e talvez mais baratos, aumentando a chance de topar com mais incapazes e quem sabe mais caros. É da ordem da matemática. Para sublinhar o absurdo, imagine se eu tivesse exigido ser atendido apenas por médicos de direita no hospital (ou de esquerda, para quem me considera socialista fabiano). Seria caso de internação em manicômio. Com amigos, é a mesma coisa. Quando eu ainda cultivava vários contatos humanos amigáveis, nunca os restringi a uma ideologia. Há tanto esquerdistas quanto direitistas inteligentes, divertidos e probos. Você pode achar que a ideologia do outro não é intelectualmente honesta, mas isso não significa que ele seja desonesto no seu dia a dia. E há intelectualmente honestos que cometem desonestidades que são caso de polícia. Não discriminar ideologicamente está longe de querer bancar o “isentão”. É ser racional o suficiente para não restringir o seu universo artificialmente. Se você o restringe, perde, inclusive, a oportunidade de buscar convencer civilizadamente quem pensa o contrário de você de que você está certo. É simplesmente estúpido. E se você acha que estou propondo que se perdoe tudo o que fizeram do lado de lá da sua trincheira, melhor não perder mais o seu tempo comigo.

Eu não tenho a resposta para a minha pergunta inicial sobre tantas pessoas se sentirem compelidas a declarar aos berros, não importa a situação, o seu lado na política e arrumar encrenca desnecessária com quem reza por cartilha oposta. Pode ser que sejam levadas por um peculiar espírito gregário que se exacerbou num mundo onde a imprevisibilidade vem aumentando. O rebanho (ou o gado) é sempre um lugar de segurança. O que é possível afirmar é que a ideologização extrema no Brasil democrático é  criação petista que vem sendo aperfeiçoada pelo bolsonarismo. Ela é igualmente empobrecedora, ilusória e inútil na política do varejo, uma vez que obriga que os fatos caibam na moldura das ideias (ou da falta delas). Veja-se o caso da deputada federal Bia Kicis: Bolsonaro a chutou da vice-liderança do governo na Câmara porque ela votou contra a PEC do Fundeb, em sessão na qual o governo foi fragorosamente derrotado, apesar de vender a versão de que foi vitorioso. Bolsonaro acha que Kicis, fidelíssima a ele, expôs ainda mais a fraqueza do presidente no parlamento, um bom pretexto para colocar um nome do Centrão no lugar dela. Para não falar da oportunidade de livrar-se do incômodo de ter alguém implicado no inquérito das fake news em função tão estratégica, em momento de aproximação com o STF. Como espremer a traição de Bolsonaro para que entre no caixilho do puro discurso ideológico? O Twitter não bastará, por mais que se insista, como vem acontecendo em relação à aliança pelo fisiologismo com o Centrão (e a insistência começa a esmorecer). O mesmo vale para a destruição da Lava Jato: o bolsonarismo executa o plano petista, com os suspeitos de sempre como aliados e requintes de crueldade. É a a direita da direita, a esquerda da direita ou a direita da esquerda que está em ação? Não é nada disso, você sabe. A ideologia é tão-somente véu que esconde noivas demasiado feias.

Em 2016, escrevi um artigo intitulado Você não precisa escolher motocicletas. O assunto é justamente a ideologização em todos os aspectos da vida. Quatro anos depois, o quadro agravou-se bastante. Vou reproduzir o artigo, novamente com o perdão da autorreferência. Ele envelheceu bem, ao contrário de mim, graças ao sinal trocado do bolsonarismo. Há uma ideia ali que continua a me agradar como síntese: a de que a ideologia extrema é o exato contrário da politização desejada.

Eis-nos de volta ao passado que não passa:

Um dos malefícios causados pelo PT foi a ideologização de todos os aspectos da vida. Ideologização que transita entre a desonestidade intelectual e a mais absoluta insanidade.

Veja-se o caso do estupro coletivo da adolescente carioca, ainda não totalmente esclarecido. Petistas culparam o governo Temer — ou a direita — pela “cultura do estupro” no Brasil. Seria um dos lados mais perversos da exploração capitalista. Como escrevi em O Antagonista, o argumento não passa de um estupro da razão.

O jornalista Tales Alvarenga, que morreu em 2006, dois anos depois de deixar a direção da Veja, costumava fazer piada com os estereótipos inculcados pela esquerda. Ele dizia que alcançavam até mesmo as motocicletas. “Quem gosta de Harley-Davidson é de esquerda; quem prefere as motos de corrida é de direita”, brincava. Não duvido que haja gente que chegue a esse ponto.

Na década de oitenta, um livrinho de Marilena Chauí antecipava o fenômeno. Intitulava-se O que é Ideologia e integrava a coleção Primeiros Passos, da editora Brasiliense. O opúsculo serviu para doutrinar milhares de estudantes secundaristas e universitários. A professora da USP, petista de primeiríssima hora, afirmava que tudo — absolutamente tudo — era ideologia, numa simplificação grosseira daquela outra banalização bem mais vasta chamada marxismo.

Para os ideólogos da ideologia onipresente, onisciente e onipotente, os valores morais que erigiram a civilização ocidental são instrumentos de manipulação das “classes dominantes”. Uma forma de manter sob o seu jugo a massa trabalhadora. Transgredi-los em prol da causa socialista é, mais do que desculpável, necessário. Só devem ser esgrimidos para ferir quem discorda de você, como demonstra a interpretação maluca, mas com método, do episódio do estupro coletivo. O “moralismo udenista” tem lá utilidade.

Na verdade, a ideologização extrema é o exato contrário da politização. Ela relativiza o certo e o errado, embaça as consciências, inviabiliza o debate e impossibilita os consensos. Está para a política como o fanatismo para a religião. Não existe o “PT light”, o PT sempre foi “xiita”, para ficar na imagem ipanemense de trinta anos atrás.

O que nos salva é a vagabundice. Na Rússia de 1917, a ideologização produziu uma ditadura que terminaria quase setenta anos mais tarde. No Brasil do PT, gerou o maior assalto aos cofres públicos de que se tem notícia. Marilena Chauí não é Marx; Lula não é Lênin.

Lembre-se, portanto: você não precisa escolher motocicletas.

Agora vou tomar o meu remédio sem bula ideológica. São os únicos efetivos.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO