O histórico dos ases do Centrão não recomenda aliança sem restrições, mas Bolsonaro se apoia neles pela sobrevivência

O DNA da corrupção

A lógica, o modus operandi histórico e os chefões do Centrão são a garantia de que o governo contratou novas crises ao se aliar ao grupo mais fisiológico do Congresso
24.07.20

Dono de vocação fisiológica, o Centrão, bloco informal de deputados do Progressistas (antigo PP), PL, PSD, PTB, Republicanos e Solidariedade, é a representação atual de uma geleia política que está há mais de duas décadas ao lado de quem ocupa o Palácio do Planalto. Pouco importam a cor partidária ou o pendor ideológico do inquilino da vez: o objetivo prioritário dessas agremiações partidárias é se refestelar nas benesses do poder. Foram aliados de primeira hora dos governos Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer. Com seus principais líderes envolvidos na Lava Jato, o bloco virou símbolo de tudo o que não presta na política – e por isso foi rotulado pejorativamente pelo grupo que ascendeu ao poder como representante máximo da velha política. Durante as eleições de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro fazia de tudo para manter distância regulamentar dessa turma. Na convenção do PSL, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, chegou a parodiar um samba eternizado na voz de Bezerra da Silva. “Se gritar pega centrão, não fica um meu irmão”, cantou o general, substituindo a palavra “ladrão” da letra original por Centrão.

O distanciamento não durou muito. Desde que se viu engolfado pelas múltiplas crises que enfrenta, incluindo a decorrente dos inquéritos em curso no Supremo Tribunal Federal, e passou a mover-se quase que exclusivamente pela sobrevivência política, o presidente deixou os pudores de lado e escancarou as portas do governo para o Centrão. A prisão de Fabrício Queiroz na casa de seu advogado Frederick Wassef serviu para sacramentar a relação e aumentar o valor da fatura cobrada pelos neoaliados. Atualmente, as legendas do bloco estão acomodadas – muito bem acomodadas, por sinal – em postos estratégicos do governo, aqueles dotados do que os políticos fisiológicos costumam chamar de santíssima trindade da Esplanada: “caneta, verba e tinta”. São cargos em ministério, estatais, autarquias e bancos públicos cujos orçamentos somam cerca de 86 bilhões de reais.

O modo de operar do grupo é conhecido desde o mensalão. Em troca de votos em favor do governo nos painéis eletrônicos do Congresso, lideranças do bloco indicam “afilhados políticos” para ocupar órgãos públicos que acabam sendo usados como escoadouro de recursos para sustentar partidos, políticos filiados a essas mesmas legendas e suas respectivas campanhas eleitorais. Uma parte da bolada vai pelas vias oficiais. Outra, como demonstram dezenas de investigações, é produto do desvio de verbas de polpudos contratos cuja assinatura depende desses apadrinhados estrategicamente abrigados em postos chaves da máquina governamental. Era o que Roberto Jefferson chamava à época do mensalão de “fabriquinhas de propina”. O problema é que a linha de produção, como bem sabemos, jamais foi desmontada. Degenerou no petrolão e agora encontra uma engrenagem azeitada para voltar a funcionar.

O próprio Jefferson, condenado e preso em razão do escândalo que ele mesmo denunciou, é um dos novos mercadores do Centrão. Recém-convertido ao bolsonarismo, ele é hoje um dos mais apaixonados defensores da figura do presidente nas redes sociais. Atualmente, basta estar na trincheira oposta à de Bolsonaro para “despertar os instintos mais primitivos” do todo poderoso do PTB, para usar uma expressão que ele próprio consagrou na CPI dos Correios. Na última semana, em seu perfil no Twitter, onde se define como “atalaia do lar cristão”, ele chegou a escrever: “Messias Bolsonaro é nosso líder. Devemos poupá-lo e lutar por ele. Nós brigamos, ele governa. Trindade; ele é o líder, nós os liderados. O céu nosso teto”. Por trás de toda essa cantilena messiânica está o interesse em ocupar espaços no governo – e quem sabe até filiar Bolsonaro ao PTB para disputar a reeleição em 2022. Por ora, Jefferson se contenta em assinar a ficha de filiação ao PTB de bolsonaristas expulsos do PSL, como o deputado estadual Douglas Garcia, de São Paulo. O mensaleiro de outrora jura que o PTB ainda não tem cargo no governo, mas se for oferecido, claro, ele já disse que aceita.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisBolsonaro com Arthur Lira, um dos líderes do Centrão: “malvado favorito”
Além de Roberto Jefferson, compõem a linha de frente do Centrão os notórios Valdemar Costa Neto, do PL, Gilberto Kassab, do PSD, e Ciro Nogueira e Arthur Lira, do Progressistas. A ficha corrida dessa turma é extensa. A aliança com proverbiais malfeitores deveria ao menos corar a face de quem até outro dia dizia abominar o que convencionou chamar de “velha política”. Bolsonaro, no entanto, abandonou qualquer tipo de prurido em nome da sustentação parlamentar no Congresso, até que um eventual escândalo os separe. Ou nem tanto, como expôs a votação durante a semana do Fundeb, fundo que financia a educação básica. A derrota do governo – que depois a narrativa oficial quis transformar em vitória – mostrou que ou a fidelidade dos expoentes do Centrão pode ir até a página dois ou eles não têm tanto poderio assim no Congresso para entregar o que prometem nos bastidores. A se consumar qualquer um dos dois casos, o custo do enlace governo-Centrão ficaria ainda maior.

Entregar postos importantes a quem opera com a desenvoltura e desprendimento dos ases do Centrão é como acionar uma bomba relógio. Pode até não se saber quando, mas uma hora ela vai estourar. Durante a era petista, as áreas comandadas pelo Centrão geraram pelo menos 3 bilhões de reais em desvios e danos causados aos cofres públicos, a se considerar apenas as investigações do Ministério Público Federal e da PF que conseguiram chegar a bom termo. Pesam sobre os ombros dos membros do bloco fisiológico dezenas de processos, nas esferas cível e penal. Dos 174 deputados que integram o Centrão, 46 deles respondem a ações criminais ou são investigados.

O campeão de processos é o Progressistas, de Arthur Lira e Ciro Nogueira: dos 40 deputados, 14 são alvo da Justiça e de órgãos de fiscalização. O partido nunca foi flor que se cheire. Vale lembrar que a investigação na Petrobras começou, justamente, nas peripécias do falecido líder do então PP José Janene e de seu fiel escudeiro, o doleiro Alberto Yousseff. Janene e o PP eram os padrinhos políticos de Paulo Roberto Costa, o conhecido ex-diretor de Abastecimento e primeiro delator do petrolão.

Além de líder do Progressistas na Câmara, Lira é um dos pontas de lança do Centrão. O malvado favorito de Bolsonaro – é assim que o presidente se refere a ele – age sem parcimônia no vale-tudo por cargos e verbas. Neste ano, ele já emplacou nomes de sua confiança no Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, o Dnocs. Já seu parceiro de legenda Ciro Nogueira, conhecido por saber operar como poucos com parlamentares do chamado baixo clero, conseguiu indicar o ex-chefe de gabinete para um cargo executivo no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE, que administra um orçamento de 55 bilhões de reais, e ainda levou a diretoria da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, a Codevasf. Alojou no órgão Davidson Tolentino, novo diretor da Área de Revitalização de Bacias Hidrográficas.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressCosta Neto, do PL, ri à toa: já emplacou aliados na Saúde e no FNDE
Os danos colaterais – e, sobretudo, ao erário – surgem na mesma proporção da insaciável busca por postos nos governos, qualquer um deles. O próprio Tolentino, que desde 2012 ocupa cargos de relevo no governo federal, é investigado pela Lava Jato. Em 2018, um ex-assessor do senador Ciro Nogueira relatou à Polícia Federal que, algumas vezes, chegou a arrecadar dinheiro com Tolentino por determinação do senador do então PP. No apartamento do novo diretor da Codevasf, o assessor de Nogueira teria recolhido 100 mil reais entre 2013 e 2015. Quando o Progressistas esteve à frente do Ministério da Saúde no governo de Michel Temer, lá estava Tolentino de novo. E, de novo, como mostrou uma reportagem da edição inaugural de Crusoé, foi acusado novamente de passar a sacolinha em nome do partido. Nada disso, porém, o impediu de ganhar mais um cargo, agora no governo Bolsonaro.

Ciro Nogueira com Davidson Tolentino, apontado como o “homem da mala” do antigo PP
O mesmo Ciro Nogueira é réu, ao lado de Arthur Lira, no processo que mira o chamado “quadrilhão do PP”, que reúne informações sobre a atuação deles na Petrobras, na Caixa e no Ministério das Cidades em troca de vultosas quantias em dinheiro para campanhas eleitorais e propinas. Só na Petrobras, segundo o MPF, os prejuízos foram de 2,3 bilhões de reais. Ciro Nogueira também foi denunciado por receber 7,3 milhões da Odebrecht em troca de ajuda na Petrobras, onde tinha ingerência devido às suas indicações políticas. Além de enrolado no quadrilhão pepista, por ter recebido 2,6 milhões em doações eleitorais, Lira é alvo de uma ação de improbidade por desvios na refinaria de Abreu e Lima, réu em uma ação por supostamente ter recebido propina relacionada à indicação do presidente da Companhia Brasileira de Trens Urbanos, a CBTU, e acusado pela PGR de receber 1,6 milhão de reais da Queiroz Galvão para apoiar a permanência de Paulo Roberto Costa na Petrobras.

Para além dos seus contratos, a CBTU costuma ser cobiçada também em razão do bilionário fundo de pensão dos funcionários da rede ferroviária federal. Quem comanda a companhia ganha o poder de indicar seus apadrinhados para a Fundação Rede Ferroviária de Seguridade Social, a Refer, que administra um patrimônio estimado em 6,2 bilhões. Crusoé teve acesso a um anexo inédito da delação do operador financeiro Ricardo Siqueira em que ele mostra como o grupo político de Benedito Lira, pai de Arthur Lira, se valia durante os governos do PT da indicação do presidente da companhia para interferir no fundo de pensão e, evidentemente, lucrar com ele – um clássico exemplo do modelo de atuar do Centrão. Dividida entre dois partidos do Centrão, o Progresistas de Lira e o PL, do mensaleiro Valdemar da Costa Neto, desde o governo Lula a Refer rendeu altas quantias em propina, de acordo com o delator. No PL, diz a mesma testemunha, o dinheiro ficava com o ex-senador João Ribeiro. Os 50% do PP eram divididos entre a família Lira e integrantes do partido do Rio de Janeiro. Segundo a delação, o operador financeiro dos Lira era o presidente da CBTU, Francisco Colombo, o mesmo que o fez virar réu no Supremo – ele morreu logo no início da Lava Jato.

Costa Neto, que dividia o butim na CBTU com o Progressistas, é useiro e vezeiro na prática de malfeitos com dinheiro público. Uma das cabeças coroadas do Centrão, ele chegou a ser preso em 2012, após ser condenado pelo esquema do mensalão. Conhecido por cultivar verdadeiros feudos no Ministério dos Transportes durante a era PT, Costa Neto foi padrinho, por exemplo, de Luiz Antônio Pagot, o ex-diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte, o Dnit, e de José Francisco das Neves, o Juquinha da Valec, ambos envolvidos em grandes escândalos por desvios em obras públicas e recebimentos de propina. Somente na Valec, as investigações revelaram prejuízos de 600 milhões de reais.

Avener Prado/FolhapressAvener Prado/FolhapressAlvo da Lava Jato, Kassab virou um dos conselheiros de Bolsonaro
Hoje Costa Neto comanda um partido – era PL, virou PR e voltou a ser PL – que tem ao menos oito dos 41 parlamentares com algum tipo de processo. No governo Bolsonaro, os liderados pelo mensaleiro indicaram nomes para o Ministério da Saúde e para o FNDE, onde o homem de confiança de Costa Neto, Garigham Amarante Pinto, assumiu o cargo de diretor de Ações Educacionais. Antes de ir para o FNDE, ele era assessor de um dos principais líderes do Centrão, o deputado Wellington Roberto, da Paraíba. Outro auxiliar de Roberto, Israel Nunes, foi alvo em dezembro de 2019 da Operação Pés de Barro. Nunes foi filmado recebendo dinheiro em nome de outro integrante do Centrão, o deputado Wilson Santiago, do PTB, um dos quatro parlamentares da legenda que tem pendências com a Justiça.

Bolsonaro, porém, parece não se importar com o tamanho da capivara – jargão policial para folha corrida – de seus neoaliados. Quando a coisa aperta, ele chama os profissionais do ramo. Foi o critério que utilizou na hora de incorporar ao seu time de conselheiros o presidente do PSD, Gilberto Kassab, outro peso pesado do Centrão. Nos bastidores do poder, diz-se que foi Kassab quem mais aconselhou o presidente a falar menos para evitar novos embates com o Congresso e STF. Ou seja, ele é um dos responsáveis pela aparente metamorfose de Bolsonaro, depois que se viu na iminência de ser tragado por investigações no Supremo e no Ministério Público do Rio, a envolver o seu filho 01, Flávio Bolsonaro.

Claro que Kassab não sairia da empreitada de mãos vazias. Não interessa para o governo se o PSD tem oito dos 36 parlamentares encalacrados com a Justiça, nem se o próprio Kassab é alvo de inquérito na Lava Jato no caso Odebrecht – segundo delatores da empreiteira, o ministro teria recebido 20 milhões de reais entre 2008 e 2014 e parte do dinheiro teria sido destinada à criação do próprio PSD. O ex-ministro de Dilma e Temer apadrinhou o ministro das Comunicações, Fábio Faria, e chancelou uma indicação para a presidência da Telebrás.

Não é difícil supor o que poderá acontecer mais adiante, como resultado da leva de indicações patrocinadas pelas agremiações do Centrão, cujos propósitos, na maioria das vezes, não são nada republicanos. A história serve de alerta. Apesar dos percalços recentes na relação, como o episódio da aprovação do Fundeb, e dos riscos em potencial que corre pelo histórico do bloco, tudo leva a crer que é no Centrão que Bolsonaro continuará se apoiando para manter-se vivo na arena do Congresso. Com todos os seus defeitos, de uma coisa o presidente, que um dia foi do PP, sabe bem: a captura do Congresso é o caminho mais seguro para a preservação do próprio mandato. Mesmo que para isso tenha que mandar às favas a retórica entoada na campanha eleitoral.

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