RuyGoiaba

Querem cassar seu direito de lamber ratos

24.07.20

Quando eu era adolescente e li pela primeira vez, em algum dos livros de história do colégio, sobre a Revolta da Vacina, lembro de ter pensado “como é possível que esse pessoal fosse tão idiota?”. O livro, se a memória não me engana (e ela me engana cada vez mais), falava muito por alto do episódio, ocorrido em 1904, e não dava ideia da violência da coisa: tiros, bondes queimados, prédios depredados, 110 feridos e 30 mortos em duas semanas de conflitos no Rio. Tudo porque Oswaldo Cruz havia convencido o governo —que depois voltaria atrás— a tornar obrigatória no país a vacinação contra a varíola.

Eu, jovem goiaba de 15 anos, achava que era um completo absurdo os revoltosos serem a favor da varíola e contra o Oswaldo Cruz —mas, ufa, “ainda bem que hoje não é mais assim, todo mundo sabe que vacinas salvam vidas, que bom”. Ah, as ilusões da juventude! Fast-forward para 35 anos depois: não só o “movimento antivacinação” é uma realidade como há pessoas contrárias ao distanciamento social e ao uso de máscaras e favoráveis ao coronavírus. Às vezes, elas são a favor de remedinhos milagrosos, porque a ciência ou “demora demais” para achar vacina ou enche o saco com esse negócio de máscara. É só misturar cloroquina com ivermectina e dois dentes de alho: pronto, resolvido.

Nem vou me estender no fato de que, em 1904, Oswaldo Cruz tinha apoio do governo, enquanto hoje os negacionistas SÃO o governo. Como já disseram por aí, se a Peste Negra acontecesse hoje e os especialistas em saúde dessem orientações do tipo “evitem ao máximo o contato com ratos”, teríamos bolsominions histéricos dizendo que isso é fake news e atacando as autoridades malvadonas (“quem são esses caras para cassar meu direito de lamber rato? Tiranos!”), vídeos nas redes sociais com ratinhos sendo lambidos e insinuações de que quem tem medo de pegar “essa pestezinha aí” só pode ser bicha.

E não adianta sentar ao lado desses sujeitos e explicar com toda a paciência do mundo: “Você pode lamber o que quiser e morrer de Peste Negra depois —sou 100% a favor, inclusive. Mas não tem o direito de transmitir a doença a pessoas que jamais lamberiam um rato voluntariamente”. Para esses cidadãos de bem, não existe o conceito “pessoas”. Existem “coisas de macho” e “coisas de bicha”: usar máscara e ter medo de um vírus que já matou mais de 600 mil no mundo cai nessa segunda categoria, assim como fazer qualquer tipo de tarefa doméstica, como lavar louça, passar roupa ou preparar um almoço.

De onde se conclui que, para o glorioso conservadorismo brasileiro, morrer de uma doença horrível, ou ver amigos e familiares morrendo, é muito melhor do que apenas parecer gay —que dirá ser. Macho que é macho lambe o rato da Peste Negra, sai sem máscara e se aglomera porque não tem medinho de coronavírus, transa sem camisinha porque também não tem medinho de HIV: é um homem com H, pronto para ir à guerra e levar tiro, ainda que muito em tese e só na internet. Agora, Deus o livre de lavar uma louça: vai que ele sente aquela vontade irresistível de soltar sua porção mulher e ser o Freddie Mercury naquele vídeo de “I Want to Break Free”, de saia e bigodinho. Melhor não arriscar.

(Moral da história, se é que há uma: a burrice vem em ondas, como o mar, e está para nascer o Oswaldo Cruz capaz de erradicá-la. Aliás, não deve nascer nunca.)

***

A GOIABICE DA SEMANA

Noticia-se que Mário Frias, ex-galã da Malhação e secretário da Cultura, deve convidar para sua Secretaria de Direitos Autorais o cantor Zé Henrique, da banda Yahoo. O leitor de menos de 40 anos tem o direito de perguntar “quem diabos é esse cara?”. E em verdade vos digo que Zé Henrique tem não um, mas dois momentos de glória em seu currículo: emplacar sua “Mordida de Amor” (aquela do imortal refrão “eu não quero tôcar em você, oh baby”) na novela “Bebê a Bordo” e casar com a irmã de Marlene Mattos, empresária da Xuxa.

Acho que já dá pra fazer uma edição de A Fazenda, aquele reality show de subcelebridades, só com indicados para a Secretaria da Cultura. Ou mudar de uma vez o nome da pasta para “Ministério do Morreu ou foi pra Record?”.

Reproduçao/redes sociaisReproduçao/redes sociaisMário Frias (à esq.) e Zé Henrique; a foto na parede é de um ex-astro do Superpop

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