SergioMoro

Fatos teimosos

31.07.20

“Fatos são coisas teimosas e quaisquer que sejam os seus desejos ou inclinações ou os ditames de sua paixão, eles não podem alterar o estado dos fatos e da evidência”, disse John Adams, o segundo presidente dos Estados Unidos, em defesa bem-sucedida que foi apresentada, quando era advogado, em favor de soldados britânicos envolvidos no denominado Massacre de Boston.

A citação nos permite falar de um tema intenso e polêmico do momento, as fake news, ou as notícias falsas.

Pessoas mentem. Algumas às vezes, outras frequentemente. Essa é uma questão moral, por vezes pode ser criminal, mas, em geral, a mentira veiculada individualmente, embora reprovável, não é algo que possa ser totalmente controlada e nem é desejável um controle completo sobre esse tipo de conduta, sob pena de engessamento de nossas relações sociais.

A imprensa pode, eventualmente, incorrer em erros e faltar com a verdade. Se isso ocorre, os prejudicados podem pedir direito de resposta, retificação ou indenização. Mas há de se reconhecer que a imprensa, apesar de suas falhas, pelo menos age sob o princípio de que sua missão é o de veicular notícias verdadeiras, com uma pretensão de correção. Ela pode falhar, mas há uma premissa de buscar a verdade.

Governos – não trato aqui especificamente do atual – mentem, por vezes corriqueiramente. Na versão mais positiva, mentem para “dourar a pílula”, ocultando fatos negativos e exagerando nas boas notícias quanto a sua performance e expectativas para o país. Na versão mais negativa, já beirando a perversidade, governos mentem como política oficial, como nos regimes totalitaristas do comunismo ou do nazismo.

Nos tempos atuais, o problema das mentiras ou das notícias falsas agrava-se com o advento das redes sociais e de aplicativos de mensagens que passaram a ser utilizados como meios de comunicação em massa. Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp têm servido de instrumentos de desinformação em massa.

Claro que é necessário ressalvar que a internet e as redes sociais têm um valor essencialmente positivo. O simples apertar de uma tecla nos habilita a mandar mensagens e informações para qualquer pessoa, e em qualquer lugar do mundo. As facilidades do mundo virtual empoderaram os cidadãos, que passaram a enviar, sem a intermediação da imprensa, comunicações a milhares ou milhões de pessoas.

O poder da comunicação de massa na palma de uma mão constitui, em certa medida, o ápice, até o momento, da globalização. Nenhum lugar está longe o bastante, embora paradoxalmente os que estão fisicamente próximos se encontrem, por vezes, distantes no mundo virtual.

Mas o lado negativo tem preocupado. Sem o filtro da pretensão de correção por parte da imprensa, as redes sociais têm servido como vertedouros de notícias falsas, não raramente envolvendo interesses espúrios e político-partidários para manipulação do debate público e distorção da realidade.

Nada mais importante para a dignidade da pessoa humana e para o adequado funcionamento da democracia do que a liberdade de expressão, inclusive nas redes. Constituições, leis e decisões judiciais contundentes no mundo inteiro a protegem. “O Congresso não deve fazer leis restringindo a liberdade de expressão” e “Cala boca já morreu” são frases célebres que ilustram a proteção a esse direito.

É a liberdade de expressão a condição necessária para a existência de uma esfera de debate público que permite, entre outras coisas, o desenvolvimento científico, a crítica dos governados sobre os governantes e a elaboração de políticas públicas consistentes para a resolução de nossos problemas.

A disseminação em massa de notícias falsas, no entanto, é deletéria para essa esfera de debate público. Desinforma em vez de informar. Cria realidades alternativas e não raramente agride o bom senso, apelando ao sensacionalismo. Mentiras, em muitos casos, são mais apetitosas do que a verdade.

Nesse aspecto, leis e decisões judiciais que reprimam a disseminação de notícias falsas não necessariamente violam a liberdade de expressão, já que o objetivo é proteger o debate público da influência viciada.

O diabo mora, porém, nos detalhes. Como acertar a justa medida? Como evitar os danos colaterais de medidas inibidoras da liberdade de expressão nas redes sociais? Como evitar que verdades inconvenientes – inclusive aos governantes de plantão – sejam tratadas como notícias falsas.

No terreno das incertezas, a melhor abordagem é a minimalista.

Devem ser reprimidas a posteriori notícias falsas que configurem crimes de ameaça ou contra a honra. Ninguém jamais defendeu que esses crimes se encontram no âmbito de proteção da liberdade de expressão e as redes sociais não são como Midas que transformam o chumbo em ouro, ou o ilícito no legal.

Mecanismos adredemente preparados para manipular as redes sociais ou o debate público, como contas ou perfis falsos ou disseminadores artificiais não rotulados, os ditos robôs, devem ser suprimidos. Avançamos muito, aliás, no reconhecimento de direitos para maiorias ou minorias, mas, por ora, robôs ainda não têm direitos ou liberdades. Talvez chegue esse dia, a depender da evolução tecnológica, mas, por ora, os robôs de disseminação de notícias falsas nas redes sociais nada mais são do que uma versão suavizada ou não tão suavizada de exterminadores do futuro – ou, pelo menos, da democracia.

Facilitar igualmente a identificação dos responsáveis por cada conta e perfil parece ser também medida que se impõe para viabilizar a transparência e a responsabilidade de quem eventualmente utilizar a rede para distribuir massivamente ameaças, calúnias e notícias falsas. A Constituição brasileira, aliás, protege a liberdade de expressão, mas veda o anonimato. Não impressiona tanto aqui o risco de defensores da liberdade, em regimes autoritários, serem perseguidos indevidamente.

A identificação e a responsabilização devem ser motivadas em uma causa legal e cabe às plataformas e provedores realizar a necessária distinção entre uma investigação legítima, própria de um Estado de Direito, de uma investigação para fins arbitrários ou político-partidários.

O controle do conteúdo de postagens ou de mensagens é uma questão mais complexa. Não pode haver censura, mas por vezes o conteúdo pode ser, à primeira vista, identificado como carente de qualquer respaldo na realidade, como, citando um exemplo que aconteceu aqui no Brasil, o caso em que se tentou imputar falsamente a um magistrado a contratação de um sniper para assassinar um presidente.

O que cabe nesses casos é a supressão da mensagem e a responsabilização a posteriori pela conduta. Abusos reiterados de contas ou perfis talvez mereçam uma abordagem diferenciada. É ou não válido bani-los como se fossem hooligans proibidos de frequentar estádios de futebol por causa de violências pretéritas? É uma questão sobre a qual o Supremo Tribunal Federal brasileiro irá aparentemente se pronunciar em breve.

As plataformas ou provedores de mensagens devem assumir a responsabilidade em prevenir e evitar que as redes sejam utilizadas para a prática de crimes. A responsabilidade é primária deles e não do poder público. Com cautela, sim, a neutralidade da internet é um princípio soberano para garantir o debate público a todos. Mas há condições de coibir esses instrumentos de fraude do debate público ou, no mínimo de, com transparência, identificá-los.

As respostas para essas questões não são simples. Muitos países do mundo procuram soluções para os mesmos problemas relativos à desinformação. Eu mesmo tenho mais dúvidas do que certezas nesse assunto. Mas é preciso fazer algo. O projeto de lei 2.630/2020, em trâmite no Congresso, e casos judiciais recentes oferecem um momento propício para o debate sobre o tema.

Em tempo, esclareço que a frase destacada inicialmente não é, aparentemente, uma citação original de John Adams. Um homem de nome Tobias Smollett, em tradução de um texto do francês Alain-René Lesage, já a havia utilizado antes. Mas foi John Adams quem a celebrizou e, então, merece crédito. A mensagem é válida e pertinente atualmente. A correção da informação, ao final deste texto, foi proposital. A verdade deve prevalecer, mesmo que robôs insistam em estimular e disseminar redes de mentiras. A ética bem que poderia servir como medida suficiente de restrição e contenção de fake news, mas infelizmente não tem sido assim.

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