Pedro França/Agência Senado

Guerra total

O procurador-geral da República avança ainda mais contra a Lava Jato e anima as alas da política interessadas em torpedear a operação
31.07.20

Em sua edição 114, que foi ao ar na sexta-feira, 3 de julho, Crusoé revelava a ofensiva do procurador-geral da República, Augusto Aras, contra a Lava Jato. A reportagem de capa mostrava como Aras e sua fiel escudeira, a subprocuradora Lindôra Araújo, atuavam no sentido de controlar as forças-tarefas anticorrupção ao determinar o compartilhamento com a PGR de todos os dados sigilosos amealhados pela operação ao longo de seis anos de investigação. Como se observou nos últimos dias, aquele foi apenas um aperitivo do que viria pela frente.

Durante a semana, Aras, pela primeira vez, disse com todas as letras o que pensava desde que foi nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro, fora da lista tríplice, para a cadeira de procurador-geral da União. Em uma live organizada por advogados notórios críticos da Lava Jato, na noite de terça-feira, 28, o procurador-geral deixou de lado os últimos resquícios de pudor e partiu para o ataque aberto e escancarado. Em meio a uma sequência de termos vagos, indiretas e ilações, disse que é preciso “corrigir rumos” e acusou a força-tarefa de “bisbilhotar” a vida de 38 mil pessoas. Afirmou ainda que o trabalho encabeçado pela equipe de Curitiba, o “lavajatismo”, seria uma “caixa de segredos”.

O discurso contra a Lava Jato parecia sair não da cúpula da PGR, mas de um carro-de som de militantes petistas habituados a bradar contra a operação que levou Lula à prisão. Como era de se esperar, próceres do partido declararam na sequência do pronunciamento de Aras estar “de alma lavada” após o que chamaram de “live histórica” do procurador-geral da República. O episódio representou o ápice do alinhamento de posições entre a PGR bolsonarista e a esquerda anti-Lava Jato e expôs um acordão suprapartidário, com o Centrão incluído, na tentativa de implodir de vez o trabalho dos procuradores e policiais federais.

As investidas de Aras contra a força-tarefa tiveram um desfecho que se encaixa com perfeição nos planos eleitorais de Jair Bolsonaro. O acirramento do clima anti-Lava Jato em Brasília insuflou os petistas que, desde o ano passado, brigam para abrir uma CPI contra a operação. O partido, sempre crítico à operação que expôs as entranhas de escândalos de suas gestões, agora ganhou aliados em outros partidos e espera ampliar o espectro de apoio à abertura da comissão. “A Câmara precisa instalar esta CPI para que o Brasil conheça a verdade sobre uma operação que tanto prejuízo causou ao Brasil”, disse a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, após a live de Aras. Ressuscitar o fantasma do PT é perfeito para impulsionar Bolsonaro, em 2022.

A webconferência com a participação do PGR foi organizada pelo Grupo Prerrogativas, uma associação de advogados formada por adversários da Lava Jato. Coordenado por Marco Aurélio de Carvalho, que já advogou para o PT e chegou a ser cotado para disputar a Prefeitura de São Paulo pela sigla, o grupo esgrime, em seu manifesto de fundação, a falácia de que o ex-presidente Lula foi condenado “sem provas”. A convergência dos petistas com o convescote jurídico e suas causas é tamanha que a live com o procurador-geral escolhido por Bolsonaro foi transmitida ao vivo pela TVPT, o canal do partido no YouTube. Na presença de antigos e duros críticos da Lava Jato, o PGR sentiu-se à vontade para desfiar impropérios contra o trabalho da força-tarefa de Curitiba.

Reprodução/YoutubeReprodução/YoutubeEm live organizada por adversários da Lava Jato, o PGR atacou a força-tarefa
“Em primeira mão, digo a todos que nos veem e nos escutam: todo o Ministério Público Federal tem 40 terabytes em todo o Brasil para o funcionamento do seu sistema. A força-tarefa de Curitiba tem 350 terabytes e 38 mil pessoas com seus dados depositados”, afirmou Aras. Diante de interferências no fone de ouvido do procurador, Marco Aurélio de Carvalho interrompeu o chefe do Ministério Público e fez questão de explorar os números apresentados com ares de escândalos. “Tem milhares de pessoas nos acompanhando e o senhor tem uma informação muito importante”, justificou o coordenador do Grupo Prerrogativas, ao pedir que o convidado ajustasse o áudio e repetisse sua “denúncia”.

No dia seguinte à live, a força-tarefa divulgou uma nota de repúdio às acusações de Aras e explicou o grande volume de dados à disposição dos investigadores. “A extensão da base de dados só revela a amplitude do trabalho até hoje realizado na Operação Lava Jato e a necessidade de uma estrutura compatível. Ao longo de mais de 70 fases e seis anos de investigação foi colhida grande quantidade de mídias de dados”, argumentaram os procuradores de Curitiba. “Para que se tenha ideia, por vezes apenas um computador pessoal apreendido possui mais de 1 terabyte de informações.” Em reunião virtual com senadores já na quarta-feira, 29, instado a fornecer explicações sobre as denúncias, o procurador-geral da República reafirmou as acusações. “República não combina com heróis”, afirmou. Na noite desta quinta-feira, a Lava Jato do Rio pediu ao STF que suspenda o compartilhamento dos dados da operação recolhidos pela PGR, alegando, entre outras coisas, que Augusto Aras é apenas o chefe administrativo do Ministério Público e que o acesso dele a informações sobre investigações criminais punham em risco as operações em curso e atentavam contra as prerrogativas dos procuradores previstas pela Constituição. De fato, cada procurador tem autonomia justamente para evitar interferências indevidas de um chefe indicado por um político, o Presidente da República.

No íntimo, o que querem Aras, Bolsonaro, o Centrão, petistas e companhia é que o combate à corrupção no Brasil à moda antiga volte a vigorar. É aquele modelo que sempre blindou autoridades, excelências e grandes empresários, evitando que eles fossem mandados para trás das grades. O que se pratica agora no país não é uma especialidade nacional. Na Itália, depois de a Operação Mãos Limpas colocar na cadeia o suprassumo do sistema político e empresarial, uma campanha de difamação contra as principais figuras da operação ganhou corpo e, com ela, como ocorre agora por aqui, surgiram acusações várias de abuso de poder nas investigações.

Na última campanha presidencial, o então candidato Jair Bolsonaro surfou na onda da Lava Jato. Em 29 de novembro de 2018, pouco depois de ser eleito e no mesmo dia em que o então governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, foi preso, Bolsonaro teceu loas à operação. “Os que hoje se colocam contra ou relativizam a Lava Jato estão também contra o Brasil e os brasileiros. Todo apoio à operação que está tirando o país das mãos dos que estavam destruindo-o”, declarou à época.

Quando nomeou o ex-juiz Sergio Moro para comandar o Ministério da Justiça, o presidente emitiu sinais de comprometimento com o combate aos desvios e aos malfeitos. Ledo engano. Bastou que as investigações se aproximassem da família presidencial para que Bolsonaro quisesse tomar as rédeas da Polícia Federal e controlar, por meio de Augusto Aras, a Lava Jato, fator preponderante para a saída de Moro do governo. Como o ex-juiz é hoje um potencial adversário de Bolsonaro na corrida pela reeleição, ver a Lava Jato definhar e ser alvo de ultrajes de múltiplos espectros políticos é um triunfo para o presidente e seu entourage. Assim como abandonou a defesa de propostas caras a seu antigo eleitorado, como a PEC da Segunda Instância e o fim do foro privilegiado, Bolsonaro agora celebra o ponto máximo de ebulição da crise com a operação.

Vagner Rosário/CrusoéVagner Rosário/CrusoéDesde 2019 Deltan Dallagnol alertava para os movimentos de Aras
No Congresso, entre parlamentares que foram eleitos graças à bandeira de apoio à Lava Jato e ao combate à corrupção, a reação à guerra contra a Operação é tímida. Delegado de carreira, o senador Alessandro Vieira, do Cidadania de Sergipe, foi um dos poucos a sair publicamente em defesa da operação. “Vamos denunciar a atuação cínica do PGR como porta-voz dos ataques à Lava Jato, tentando esconder sob o manto de um garantismo de araque os reais interesses de quem sempre quis estancar a sangria e zerar o jogo, beneficiando os bandidos que roubam este país desde sempre”, disse. Enquanto os filhos 01, 02, 03 do presidente silenciaram sobre o assunto, os ataques do procurador-geral da República à força-tarefa geraram mais uma saia-justa para parlamentares bolsonaristas. Em um malabarismo retórico, a deputada federal Carla Zambelli, do PSL, declarou que “Aras quer fortalecer a Lava Jato, e, por isso, deseja ‘destucaná-la’”, numa referência aos políticos do PSDB, que, num movimento contrário ao que sugere Zambelli, viraram alvo da operação nas últimas semanas. Aliás, sempre foram alvo. É que os processos foram transferidos para a Justiça Eleitoral, por decisão do STF, o que atrasou tudo. A parlamentar, que em um passado recente nutria admiração quase adolescente por Sergio Moro, tentou justificar o injustificável. “É momento de realinhar para não permitir que a Lava Jato seja um instrumento de poder exposto no currículo para defender outras legendas igualmente corruptas”, argumentou.

Os reveses impostos aos investigadores começaram no ano passado. Algumas das derrotas tiveram como palco o Supremo Tribunal Federal, onde a Lava Jato sempre teve inimigos. Em março de 2019, a corte determinou que crimes comuns, como lavagem de dinheiro e corrupção, relacionados a campanhas políticas deveriam ser julgados pela Justiça Eleitoral, como mencionado. “Começou a se fechar a janela de combate à corrupção”, disse, à época, o coordenador da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol. Em novembro, por 6 votos a 5, o plenário do tribunal reviu o entendimento de que réus condenados em segunda instância deveriam cumprir pena imediatamente. A decisão resultou na soltura imediata do ex-presidente Lula.

Àquela altura, a ofensiva contra a operação no meio político já tinha ressurgido com força. O Congresso aprovou o projeto da Lei de Abuso de Autoridade, posteriormente sancionado por Bolsonaro. No mesmo mês, o presidente da República nomeou Augusto Aras como chefe do Ministério Público, à revelia dos procuradores. Para a Lava Jato, o novo PGR virou uma espécie de matinta pereira – pássaro que, no folclore, representa o mau agouro. A crise chegou ao ápice há poucas semanas, com a ordem do presidente do Supremo que obrigou a Lava Jato a entregar toda a sua base de dados de investigações à PGR.

A situação de penúria imposta à Lava Jato pelos Três Poderes deixou o ministro Dias Toffoli à vontade para fazer coro ao lobby em favor de uma quarentena para juízes e procuradores disputarem eleições. A proposta, com consequências ainda nebulosas, é vista como uma tentativa de impedir que Sergio Moro se viabilize como candidato em 2022. Apesar de parlamentares como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, garantirem que o projeto não afetaria o futuro político do ex-juiz da Lava Jato, a articulação é mais um torpedo contra os protagonistas da operação. Sempre há jurisprudências de ocasião para fazer retroagir decisões, quando isso é do interesse geral em Brasília.

O presidente do STF propôs que integrantes do Judiciário e do Ministério Público fiquem inelegíveis por oito anos após deixarem as carreiras. A Lei da Ficha Limpa, aprovada em 2010, não previa a retroatividade dos efeitos. Foi apenas em 2017, cinco anos depois da sanção, que o Supremo se posicionou a favor da aplicação da pena de inelegibilidade àqueles que foram condenados por abuso do poder econômico ou político antes da edição da lei. Ou seja: a depender da composição da corte, o STF pode posteriormente usar a quarentena de juízes para barrar eventuais pretensões eleitorais de Moro ou mesmo de procuradores da operação, como Deltan Dallagnol. O meio político, incluídos aí Bolsonaro, PT e Centrão, agradeceria penhoradamente.

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