Divulgação/Atlantic Council"Precisamos inspirar um movimento no qual o público se contraponha à desinformação como um dever cívico que abraçamos ativamente"

O detetive das redes

Graham Brookie, diretor do laboratório responsável por apontar a ligação do Planalto com contas do Facebook destinadas a difamar adversários do governo, explica por que as fake news ameaçam a democracia
31.07.20

Das ações de uma empresa sediada na Tunísia para influenciar eleições presidenciais africanas nas redes sociais a perfis falsos criados por funcionários públicos de Porto Rico para atacar opositores do governo local, o americano Graham Brookie se dedica há mais de três anos à inesgotável missão de combater a desinformação ao redor do mundo. No início de julho, uma investigação feita pelo Laboratório de Pesquisa Forense Digital, que ele comanda a partir de Washington, cruzou o caminho da milícia digital bolsonarista no Brasil. Foi uma apuração do DFRLab, a sigla do laboratório em inglês, que serviu de base para o Facebook remover 88 contas ligadas a integrantes do Palácio do Planalto, aos filhos do presidente Jair Bolsonaro e a parlamentares aliados — todas elas acusadas de disseminar fake news e promover ataques coordenados, no ambiente virtual, a pessoas vistas como inimigas do governo.

O DRFLab é um braço do Atlantic Council, uma organização apartidária americana que tem entre suas missões o debate e a promoção de políticas públicas e faz parceria com a rede social do bilionário Mark Zuckerberg, para evitar que a plataforma seja utilizada para manipular eleições. No mesmo dia em que o Facebook excluiu os perfis falsos usados pelos bolsonaristas e a equipe de Brookie divulgou seu relatório detalhando o comportamento da rede, uma pesquisadora brasileira que fez a investigação foi alvo de ataques nas redes sociais. “O assédio é uma infeliz indicação de que nosso trabalho é urgente e necessário”, diz Brookie, que atuou como consultor de comunicações estratégicas e assessor da Casa Branca para assuntos de cibersegurança e inteligência durante o governo de Barack Obama.

A Crusoé, o americano falou dos desafios de desmontar as redes de desinformação, explicou que o método de usar contas falsas para espalhar conteúdos fraudulentos é usado por partidos e políticos dos dois extremos do espectro ideológico e defendeu que as fake news estão entre as principais ameaças à democracia. “A desinformação é uma ameaça que se multiplica. Se não pudermos resolver a desinformação, então não seremos capazes de construir um consenso em torno de outros desafios importantes porque o debate será corrompido.” A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como funciona a parceria do DFRLab com o Facebook e qual a participação de vocês na remoção de contas ligadas ao gabinete e a familiares do presidente Jair Bolsonaro?
O DFRLab trabalha para promover transparência e responsabilidade online em todo o mundo. Parte da nossa missão é identificar, expor e explicar a desinformação, quando e onde ela ocorre, usando fontes abertas de pesquisa. O DFRLab tem um histórico desse tipo de análise independente no Brasil que vem desde as eleições de 2018. Já produzimos análises sobre uma série de temas no país, incluindo desinformação em torno das eleições e da Covid-19. Neste caso, o Facebook notificou nossa equipe sobre essa rede, e nós analisamos o comportamento dela tanto no Facebook quanto em outras plataformas de mídia social. Fizemos nossa própria avaliação do que vimos sobre a rede ligada a aliados do presidente Bolsonaro. A rede espalhou conteúdo malicioso e se envolveu em comportamentos inautênticos coordenados. No entanto, a decisão de “derrubar” o material ou tomar medidas na plataforma do Facebook é apenas do próprio Facebook.

Quando e como começou a investigação sobre a rede ligada ao gabinete do presidente?
Nesse caso específico, o DFRLab não teve mais do que alguns dias para fazer as análises independentes. Como o próprio Facebook anunciou, foram encontradas suspeitas de comportamento inautêntico, como a própria imprensa já havia reportado e como apontavam recentes depoimentos no Congresso brasileiro.

Qual a importância dessa luta contra a desinformação para as democracias ao redor do mundo?
É existencial. Os fatos são a base para sociedades livres e abertas. A democracia depende de um cidadão informado que compartilhe um conjunto comum de fatos. As pessoas precisam de fatos para tomar decisões coletivas, como nas eleições. A desinformação afasta as pessoas dos fatos e afasta umas das outras. Desinformação e democracia não são compatíveis.

Qual a gravidade do envolvimento de pessoas lotadas no governo ou empregadas por parlamentares nesta rede de desinformação?
Definimos a desinformação como a disseminação de informações falsas ou enganosas espalhadas intencionalmente. É importante não se perder em uma linguagem muito complicada sobre este assunto. Comportamento inautêntico coordenado, neste caso, significa que pessoas eleitas e seus funcionários usaram contas na rede social para enganar os cidadãos. Alguns parlamentares e assessores estaduais do PSL se engajaram na gestão de uma rede que trabalhou para enganar sistematicamente o público, ocultando a identidade de seus operadores. A rede incluía contas duplicadas e falsas que foram usadas para fugir das sanções dos termos de uso das plataformas de rede social que proíbem tal ação. Elas também foram usadas para criar pessoas fictícias posando como repórteres, postar conteúdo e gerenciar páginas disfarçadas de veículos de notícias.

Como vocês agem durante as campanhas eleitorais para fiscalizar todas as redes e evitar que uma ação parcial possa impactar de forma injusta na eleição?
Nosso trabalho não envolve analisar cada caso de desinformação, mas compreender o ambiente de informação em rápida evolução nas eleições. Não somos partidários, e não temos como alvo especificamente atores políticos. Não apoiamos nenhum lado. Trabalhamos baseados em evidências. Nosso foco está nas instituições, na infraestrutura, nas tendências de desinformação e na compreensão de um conjunto compartilhado de fatos necessários à promoção e defesa da democracia.

DivulgaçãoDivulgação“A desinformação direcionada e o assédio são feitos para nos fazer sentir sozinhos e intimidados”
Nas demais investigações que fizeram pelo mundo, vocês também encontraram conexões entre redes de notícias falsas e governos ou políticos?
Campanhas de desinformação política ligadas a funcionários públicos e atores políticos domésticos não são novidade. O DFRLab estudou casos no México, Geórgia, Tunísia, Porto Rico e outros países. Geralmente, vemos dois modelos operacionais empregados nessas campanhas. O primeiro envolve o uso de uma empresa de relações públicas intermediária ou de marketing digital que fornece desinformação como serviço, com fins lucrativos. Vimos esse modelo ser empregado na Geórgia, em relação a contas do Facebook que eram gerenciados por uma empresa de relações públicas ligada ao partido Dream. Em maio de 2019, também acompanhamos uma operação de influência ligada à empresa israelense de marketing político Archimedes Group, que impulsionou e atacou certos candidatos políticos na América Latina e na África. O segundo modelo operacional envolve diretamente as equipes ligadas aos políticos na operação e coordenação da campanha de informação. Este é o modelo empregado no Brasil — o DFRLab conseguiu confirmar o envolvimento de políticos eleitos e funcionários estreitamente alinhados com o presidente Bolsonaro. Embora esse modelo pareça ser mais raro, provavelmente porque é mais fácil ligar esses operadores às figuras políticas envolvidas, é um esquema que também vimos em Porto Rico, onde nossa investigação apontou que os funcionários porto-riquenhos desempenharam um papel ativo no incentivo a contas destinadas a atingir seus adversários políticos no Twitter.

Vocês farão algum trabalho específico nas eleições deste ano?
Sim. Monitoramos eleições em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos. Monitoramos ativamente a desinformação antes das eleições presidenciais americanas e continuaremos nosso trabalho no Brasil.

A desinformação será um dos principais assuntos das próximas eleições?
A desinformação é uma ameaça que se multiplica. Se não pudermos resolver a desinformação, não seremos capazes de construir um consenso em torno de outros desafios importantes, porque o debate estará corrompido. Nesse sentido, sim, acho que a desinformação será uma questão fundamental na eleição presidencial nos Estados Unidos.

Quais são as conexões entre as redes de fake news e os abusos de direitos humanos, que é outro alvo de investigação de vocês?
Muitas vezes vemos uma conexão direta entre falsidades, desinformação e abusos de direitos humanos em exemplos que vão de zonas de conflito a democracias em funcionamento. Na maioria das vezes, aqueles que cometem abusos de direitos humanos usam desinformação para encobrir suas ações. Em zonas de conflito, reportamos desinformação sobre assuntos como armas químicas usadas contra civis na Síria. Nas democracias, vimos desinformação usada para atingir jornalistas. As situações e abusos variam, mas a estratégia é a mesma. A boa notícia é que está se tornando mais difícil esconder as evidências de abuso. Acontece diante de nossos olhos na internet, e cabe a todos fazer algo.

Como construir essa resiliência digital que vocês pregam e ensinar os usuários comuns a não disseminarem desinformação?
Este é um momento fascinante na história humana. Estamos mais conectados e temos mais acesso à informação do que em qualquer momento do passado. Em geral, isso é uma coisa boa. Mas ambas as tendências criam novas vulnerabilidades que devemos abordar. A desinformação é adaptativa, e provavelmente nunca desaparecerá completamente. Mas precisamos de estratégias para limitá-la. É aí que entra a resiliência digital: precisamos garantir que todos nós tenhamos as habilidades técnicas e críticas de pensamento para resistir à desinformação, juntamente com o senso de urgência para trabalharmos contra ela. O combate à desinformação não pode mais ser visto como uma atividade realizada exclusivamente por jornalistas, pesquisadores e o setor privado. Precisamos inspirar um movimento no qual o público se contraponha à desinformação como um dever cívico que abraçamos ativamente, encorajando suas famílias, amigos e comunidades a fazer o mesmo. Precisamos de mais pessoas e mais padrões comprometidos com os fatos.

Vocês foram alvos de ataques nas redes sociais logo após a remoção das contas de aliados do presidente Bolsonaro no Facebook. Isso é comum?
Após a divulgação do nosso relatório, uma integrante brasileira do laboratório foi alvo de assédio consistente na internet, embora não tenham questionado a veracidade das nossas conclusões. Infelizmente, essa é uma experiência comum para os nossos integrantes, que trabalham para identificar, expor e explicar esse fenômeno. A desinformação direcionada e o assédio são feitos para nos fazer sentir sozinhos e intimidados. A segurança de nossa equipe e a capacidade de nossa organização global de continuar todo o seu trabalho no Brasil continua sendo prioridade máxima. Nosso trabalho permanecerá independente, apartidário e baseado em evidências, e seguirá. O assédio é uma infeliz indicação de que o que fazemos é urgente e necessário.

DivulgaçãoDivulgaçãoNão somos partidários, e não temos como alvo especificamente atores políticos
Como evitar que o seu trabalho no governo do ex-presidente Barack Obama seja usado para desqualificar as ações do DFRLab?
O DFRLab não é guiado pelas crenças pessoais de um integrante ou de outro. Nosso trabalho é pautado pelos princípios da transparência e da responsabilidade com os princípios éticos. Nossa análise técnica em fontes abertas inclui apenas evidências que podem ser apresentadas e acessadas pelo público externo. O objetivo não é que as pessoas se fiem em nossa credibilidade, mas prová-la continuamente com as evidências reunidas em cada relatório que publicamos. Nós descrevemos nossa metodologia e dizemos exatamente como chegamos a uma determinada conclusão, assim como os alunos de matemática devem mostrar sua equação, além de ter a resposta correta. Também temos uma equipe diversificada e um processo de revisão minucioso. Nossa equipe inclui uma variedade de perspectivas e conhecimentos com formações diversas, em governos, no jornalismo ou na sociedade civil. O objetivo é colaborar, ter padrões rigorosos e garantir que permaneçamos objetivos e focados nos fatos.

Quem financia o trabalho do laboratório?
O Atlantic Council é uma organização apartidária e sem fins lucrativos composta por catorze centros e programas diferentes que operam em todo o mundo. A instituição, como um todo, assim como cada um de seus centros e programas, possui uma base diversificada de doadores, o que ajuda a garantir nossa credibilidade, integridade e sustentabilidade. O Atlantic Council também divulga suas finanças publicamente e mantém estrita independência intelectual para todos os seus projetos e publicações. Cumprindo nossa missão de identificar, expor e explicar a desinformação e pesquisar o papel das mídias sociais na democracia, o DFRLab opera no mais alto grau de autonomia.

Com base nas investigações já realizadas, é possível afirmar que as redes de notícias falsas são mais usadas por uma determinada corrente política, mais à direita ou mais à esquerda?
A resposta depende inteiramente do país e do ambiente de informação local. No mesmo dia em que o DFRLab publicou nosso relatório sobre manipulação online por familiares e funcionários próximos do presidente Bolsonaro, que tem sido colocado à direita no espectro político, nós também publicamos outro relatório sobre uma rede envolvida em táticas semelhantes de desinformação que espalha material e promove candidatos de esquerda em outros países da América Latina, como Equador e Argentina.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO