RuyGoiaba

Cancela-te a ti mesmo

07.08.20

No domingo passado (2), a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz escreveu na Folha sobre “Black Is King”, o “álbum visual” de Beyoncé inspirado em “O Rei Leão” —que, por sua vez, é uma versão Disney de “Hamlet”. O fato de Lilia ter chamado de “vitoriana” a peça clássica de Shakespeare, errando por uns dois séculos e meio, passou batido diante da repercussão de outros trechos: ela criticou Beyoncé por usar “imagens estereotipadas” e por criar “uma África caricata e perdida no tempo das savanas isoladas”. Também sugeriu que “quem sabe seja hora de [a cantora] sair um pouco de sua sala de jantar”.

Deu-se nas redes sociais aquilo que os Originais do Samba de Mussum chamavam de “bacubufo no caterefofo”: Lilia passou os dias seguintes apanhando por ser, segundo seus detratores, a mulher branca dizendo como a popstar negra deveria se comportar artisticamente e ensinando a ela como é a “verdadeira África”. De fato, é espantoso que a intelectual conceituada não tenha suspeitado que soaria assim. E, além de se tornar alvo de acusações de racismo, a historiadora ainda foi mexer com “fã-clube de diva pop”, um dos grupos humanos mais CHATOS que habitam a internet desde sempre —o que vale para qualquer objeto de adoração fanática no pop, de Beyoncé a Taylor Swift.

Dois dias depois da publicação do artigo, Lilia pediu desculpas “aos feminismos negros e aos movimentos negros” e se disse “aliada” deles na causa antirracista. Mas é precisamente esse o problema: é o fato de invocar sua condição de aliada, de pessoa que quer estar do lado do Bem e precisa da aprovação dos canceladores, que faz a historiadora vítima preferencial deles. “Cultura do cancelamento”, expressão já tão repisada que dá vontade de cancelar, é o oposto de debate: é decretar o ostracismo de quem tem opiniões erradas (wrongthink). Ninguém que a exerce está a fim de conversa, e sim de cair matando em quem pisa fora da linha. É como querer “dialogar” com grupos de linchadores.

E, como destacou o professor Wilson Gomes no melhor texto sobre o assunto publicado nas redes sociais, cancelamento, por definição, só atinge aliados. Não faz o menor efeito entre racistas reais, na direita bolsonarista ou em gente como um Sérgio Camargo, que provavelmente poria numa moldura na parede esse tipo de ataque. Lembra bastante o modus operandi de um Stálin se livrando de seus partidários, porque é mesmo de neostalinismo (ou neomacarthismo) 2.0 que se trata: denunciar aliado como traidor e expô-lo à execração pública. O objetivo dos nano-Stálins das redes também é parecido: consolidar poder eliminando a concorrência. Lacrar e linchar com eficiência rende notoriedade, livros, palestras, posições no governo e na academia, emprego na mídia: como observou Gomes, é um mercado como qualquer outro, e o mercado é cruel.

E não adianta a editora que Lilia fundou, a Companhia das Letras, anunciar a criação de um cargo de “editor de diversidade” e a publicação de obras com foco em minorias. Tampouco adianta a historiadora se dizer a favor da destruição de “obras muito perversas”, como afirmou em entrevista antes do “affair Beyoncé”. Muito menos se ajoelhar e pedir perdão no altar do identitarismo, para o qual ela está errada não por seus argumentos equivocados, mas por ser branca e não ter “lugar de fala”. O ponto deste texto é um só: quem apoia a cultura do cancelamento em algum momento será comido por ela. É apenas, em versão reloaded, o tradicional provérbio espanhol “cría cuervos y te sacarán los ojos”.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Hoje temos nesta barraca de feira duas goiabices absolutamente sensacionais  —duas histórias que provam que, no Bananão, direita e esquerda estão além da paródia (vou poupá-los da minha enésima reclamação de concorrência desleal, só por hoje). A primeira é o prefeito de Itajaí, Volnei Morastoni, defendendo o “ozônio por via retal” como tratamento contra a Covid-19; Eduardo Pazuello, o interino eterno da Saúde, chegou a receber em seu gabinete um grupo de defensores dessa terapia, ahn, heterodoxa. TODAS as piadas possíveis com “ozônio” e “buraco” já foram feitas, então me limito a destacar o prefeito assegurando que a aplicação é por “um cateter fininho” —ufa, pelo menos não é tubo de PVC de 5 polegadas. Resta saber se o Mito demonstrará os benefícios dessa técnica em alguma das suas lives, como faz com a cloroquina, talquei?

A segunda é um evento feminista em Jacobina, na Bahia, que normalmente seria chamado de “seminário” —mas, por ter apenas mulheres na mesa, as organizadoras decidiram batizar como OVULÁRIO. Não estou brincando. Deve ser o mesmo tipo de gente que escreve “vamos escurecer as coisas” por achar que “esclarecer” é um verbo racista: continuem assim, que vocês vão pavimentar o caminho para mil anos de Reich bolsonarista. Com ozônio no reto.

Eduardo Guedes de Oliveira/Agência ALEduardo Guedes de Oliveira/Agência ALO prefeito de Itajaí, Volnei Morastoni, defensor da camada de ozônio no buraco

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  1. 😂🤣😂🤣😂🤣😂muito bommmmmm 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼éguaaa paid’égua !👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

  2. Sei q tô lendo meio atrasada.. mas não posso deixar de comentar: MARAVILHOSO.. Inteligente, além de divertidíssimo, é quase como ter demais, nestes tempos de ignorância q se orgulha de si mesma. Rindo ainda, mto bom.

  3. >>> Sugiro a leitura (a quem não leu!!) de uma entrevista em páginas amarelas de Veja com o professor Walter William, da George Mason University, da Virgínia. >> Na dita, ele diz que a expressão afro-americano é simplesmente uma IDIOTICE. >>> Uma entrevista que fala sobre muitas ... idiotices ...

    1. Vou procurar ler. Acho mais idiotice ainda é falar em "Latin", colocando no mesmo saco todo mundo ao sul do Rio Grande. Misturam cor de pele com origem geográfica. Então não existe Black Latin, White Latin, Yellow Latin? A classificação em cor de pele tinha função no tempo em que os documentos não traziam foto (e traziam descrição se a pessoa usava barba!). Hoje pode ser de interesse médico, demográfico etc.

  4. Agradeço ao César a importante correção histórica. Aprendi em matéria do Globo Ciência, na internet, que o sábio esteve sim na América do Sul. Pelos comentários que fez sobre os assistentes das suas conferências no Brasil e Argentina , imagino ter sido por aqui o seu despertar sobre a estupidez humana.

  5. O ridículo é o novo normal. “Destruir obras”...? Por que não começamos por destruir a Bíblia, e seu texto absurdamente incorreto politicamente? Podemos depois destruir Roma, daqueles “safados” que escravizaram meio mundo. Continuemos, para quê insistir com a lembrança de Auschwitz se Genghis Khan, Stálin e Mao Tse Tung mataram muito mais pessoas? Estou farto do cinismo dos canalhas que querem implantar a Nova Era.

    1. “A verdadeira África”? Meus queridos, o guru de tantos, o “mais honesto entre os honestos”, aquele que “não sabia de nada” definiu, em visita oficial, o que é “a verdadeira África”; em viagem à Namíbia, o então presidente Lulla não se intimidou com a presença de autoridades namibianas e disparou, convicto: “Quem chega a Windhoek não parece que está em um país africano. Poucas cidades do mundo são tão limpas, tão bonitas...”. Pano rápido. Algum comentário, uma queixa de racismo?

  6. Einstein mais uma vez eternizado ao explicitar suas dúvidas sobre as infinitudes do universo e da estupidez humana. E o gênio nunca esteve no Brasil. Imagina se aqui tivesse estado.

    1. Pequena correção histórica: Einstein esteve no Brasil. ;-)

  7. De chorar a situação vivida por Lilia Schwarcz: quanto mais explica, mais apanha. Já nas duas Goiabices, chorei, realmente, de tanto rir. Zizuis! Precisava desse desafogo. Obrigada.

  8. Muito bom, se superou nessa coluna. As goiabices dessa semana ajudaram, também. A idiocracia é a norma, não só no Bananão como no mundo todo...

  9. Muito bom! Mostra o quanto tem gente por aí sem um serviço útil pra fazer e procurando um sentido qualquer pra suas vidas. Qualquer sentido, mesmo sem sentido.

  10. Eu quero que esses neo stalinistas se expldam... quem abaixa cabeça para black lives matter e esses i d i otas lacraqdores merece profundo desprezo. E que vergonha hein...criar um "editor de diversidade" para ficar bem com essa galerinha extremista...francamente. é o seguinte, cambada, all lives matter e ponto final. Ninguem aqui , no século XXI tem nada a ver com o que aconteceu la atras, deixem de se vitimizar, de se entrinchirar em rotuylos de minorias. Vivam a vida com dignidade. Otarios.

    1. Daqui a pouco vão perceber que ovulario também é discriminatório. Eta mundo sem sentido.

  11. Esse dois parágrafos finais fecharam com chave de ouro. Toda informação sobre cancelamento, também foi muito esclarecedora. Abriu meus olhos.

  12. A história do OVULARIO me lembra a ex-presidentA, aquela que mentiu no seu CV de estudantA....minha profissão??? ah , eu sou motoristO!!!

  13. Goiaba, adoro seus textos, que me fazem começar as sextas com risadas (um pouco perturbadoras, é claro). Tá aqui um livro fresquinho, que parece interessante, sobre o tema: https://andrewsullivan.substack.com/p/the-roots-of-wokeness. Uma das bases teóricas dessa ladainha toda é a tal corrente “teoria crítica”. Abs

  14. Os negros ao partirem para o comportamento de cancelar, xingar e acusar de racismo mesmo quem quer ajudá-los, acabam por afastar aliados e aumentar o problema. Quem vai contratar uma pessoa que pode ameaçá-lo ou até prejudicá-lo?

  15. Concordo plenamente com sua opinião em relação a cultura do linchamento. Está cada vez mais difícil discutir qualquer coisa. Raul Seixas era sábio, já dizia lá atrás, PARA O MUNDO QUE EU QUERO DESCER.

  16. O tratamento com ozônio retal pode parecer piada pronta, mas de acordo a ABOZ é pesquisado na Itália, Espanha, Alemanha e China, com relativo sucesso. Por isso esse tipo de piadinha fica melhor nos grupos de Whatsapp e não em uma coluna para disseminar preconceito.

    1. Mas porquê todo bozogado que se preza começa dizendo que as curas mágicas são usadas ou testadas na Itália? Sou italiano e moro na Lombardia e aqui não tem corokina grátis nem abuso do buraco de ozônio. Por favor nos deixem em paz!

  17. Ozônio retal, para desinflamar e melhorar a imunidade após 4 tentativas frustradas com antibióticos, foi o que me livrou de uma infecção urinária aqui em Santos. Mas é heterodoxo! Já escritora, carece de personalidade. Quanto mais abaixa...

  18. O único cancelamento que importa é o de CPF, o resto é frescura. Sobre quem foi viver de rede social, vale a lição: “quem está na chuva acaba se queimando.”

  19. O ovulário pavimenta o caminho para bolsonaristas e para cancelatistas... É tão óbvio qie chega a ser triste, tanta estupidez... Texto ótimo!!

  20. Eu acho que vou abrir um orfanato. Para acolher os autoproclamados integrantes da “classe artística brasileira “ e/ou LGBT’s+^%#, saudosistas que são do patrocínio público. Nada contra as minorias. Ou maiorias. Apenas somos todos iguais. Cada um faz de sua vida o que bem entender. Agora, dinheiro público para o que é preciso e para quem realmente precisa.

    1. Goiaba, não sou especialista, mas na minha opinião, você está ampliando cada vez mais, sua criatividade para escrever textos que proporcionam aos leitores momentos extremamente agradáveis. Parabéns.

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