Carlos Fernandodos santos lima

Dallagnol será punido por suas virtudes

07.08.20

É melhor ter um coração nobre e sofrer metade dos previstos infortúnios que ficar covardemente paralisado pelo medo do que possa acontecer. Heródoto.

Deltan Dallagnol está para ser afastado da Lava Jato! A sanha arbitrária, a perseguição prepotente, a mordaça ilegal ordenada por Renan Calheiros e partidos do Centrão, agora com apoio do próprio chefe do Ministério Público Federal, Augusto Aras: estão próximos de sacrificar Deltan Dallagnol não por seus erros, mas por seus acertos, pois estes, sim, para eles são gravíssimos. Como admitir que um funcionário público concursado queira aplicar a lei comum para a classe política, a profissão mais honesta de todas, nas palavras do autoproclamado “mais honesto dentre os honestos”, o ex-presidente e condenado em três instâncias por corrupção Luiz Inácio Lula da Silva?

Agora, possivelmente no próximo dia 18 de agosto, o carrasco designado de Calheiros, o secretário-geral da mesa do Senado e conselheiro do CNMP Luiz Fernando Bandeira irá propor o afastamento de Dallagnol dos trabalhos da operação Lava Jato, no que será desavergonhadamente seguido por Augusto Aras e outros conselheiros. Ambos, Aras e Bandeira, sequiosos de agradar seus mestres, Bolsonaro e os congressistas atingidos pelas investigações, estão prestes a garrotear a única instituição pública ainda razoavelmente livre de interferências políticas, o Ministério Público.

E não pense que se trata de um falso alarme. Esse interesse é verbalizado livremente entre os interessados, sendo o motivo pelo qual, em setembro de 2019, o Senado rejeitou a recondução de conselheiros do CNMP que eram favoráveis a Deltan Dallagnol. O que temos, portanto, é o aparelhamento daquele Conselho para servir a interesses políticos e não, como seria correto, ao interesse maior da Constituição que é a independência do Ministério Público.

Enfim, o Brasil assiste, novamente bestificado, incapaz de reagir por cansaço e uma polarização político-ideológica que relativiza preceitos ético-morais, a vitória do sistema político corrompido na batalha contra as mudanças, contra o progresso civilizatório, contra uma das causas maiores do nosso subdesenvolvimento e injustiça social: a contínua apropriação dos bens públicos por interesses privados. Estamos vendo aqui a repetição de um enredo que já aconteceu na Itália nos anos 90 com a Operação Mani Pulite.

Tem-se feito muito o paralelo entre as operações Mãos Limpas na Itália e a Lava Jato no Brasil, enfatizando a vinculação da política com a corrupção e a reação do sistema contra as investigações. Talvez dentre os maiores especialistas brasileiros sobre a Operação Mani Pulite, estejam justamente Deltan Dallagnol e Sergio Moro, dois dos responsáveis pelo sucesso da Operação Lava Jato, bem como os dois alvos principais do desejo de vingança dos corruptos. Ambos acreditavam, talvez ingenuamente, mas na esteira do mesmo Heródoto, que, conhecendo o passado, seria possível compreender o presente e idealizar um futuro — ou seja, que seria possível evitar os problemas que aconteceram na Itália e conseguir que o combate à corrupção tivesse êxito.

Infelizmente, é inevitável a avassaladora reação do sistema político, pois ele controla efetivamente o sistema de freios e contrapesos, que na realidade mais parece a velha máxima de que “uma mão lava a outra e as duas lavam a cara”. Assim, vemos mais as instituições protegendo uma à outra que um efetivo controle sobre o exercício do poder. Como exemplo dessa interação, o presidente indica um procurador-geral da República, que deve ser também do gosto dos senadores, e depois lhe oferece publicamente uma cadeira no Supremo Tribunal Federal. Isso é um completo desaforo à Constituição, pois aquele que tem a função de investigar e acusar o presidente e congressistas enreda-se em seus interesses pessoais e passa a agir como um estafeta do sistema.

A eleição de 2018 foi marcante para essa reação contra as mudanças por diversos motivos. O principal deles foi a escolha de Bolsonaro para a presidência da República, bem como a renovação inédita do Congresso Nacional. Bolsonaro e seu grupamento político representavam uma quebra hierárquica no sistema para os legisladores. Não uma quebra real, pois Bolsonaro nada mais é que um político do baixo clero, sem qualquer qualificação, que mentiu para a população sobre seu desejo de combater a corrupção, chegando a enganar o próprio magistrado Sergio Moro. O então juiz aceitou o convite para o Ministério da Justiça, mas foi boicotado sistematicamente nos projetos de mudança.

Dessa forma, na visão dos grandes caciques, Bolsonaro era alguém totalmente ilegítimo para assumir a função. O que se tornava necessário era submeter Bolsonaro ao controle da velha política e tentar impedir que novas mudanças acontecessem. Acendeu-se o sinal vermelho: ou se acabava com a Lava Jato, ou a Lava Jato iria destruir o fundamento implícito da política na Nova República. Assim, foi engendrado um pacto nacional cujos principais protagonistas foram Dias Toffoli na presidência do STF e Rodrigo Maia na presidência da Câmara dos Deputados.

Também muito importante em todo esse processo foi a polarização ideológica resultante das eleições. Bolsonaro deu vazão aos piores preconceitos e mentiras, utilizando-se de não reguladas mídias sociais para disseminar seu discurso divisivo, o que levou à associação indevida do fascismo ao legítimo combate à corrupção. A completa rejeição pela mídia da figura de Bolsonaro resultou num afastamento cada vez maior de boa parte da imprensa de uma análise isenta e crítica dos diversos eventos posteriores.

Hoje se vê, como exemplo dessa postura, muitos jornalistas apoiando um inquérito inconstitucional e abusivo no STF, que inclusive censurou a própria imprensa e vem impondo restrições prévias à liberdade de expressão de cidadãos (não concordo com uma só palavra do que dizem, mas pior é a criação do grande censor na figura de Alexandre de Morais), simplesmente porque essa investigação derivou espertamente para a investigação de grupelhos antidemocráticos.

Esse amortecimento ético, conjugado com o cansaço da população, só tem incentivado a velha política a fazer injustiças e a destruir as instituições. Agora, acontecerá um dos seus atos mais revoltantes — o afastamento de Deltan Dallagnol, promotor natural das investigações da Operação Lava Jato, de suas funções. Está sendo finalmente dado o recado encomendado: calem-se, procuradores e promotores, conheçam o seu papel de servirem a um sistema que só quer nas cadeias negros, pobres e prostitutas. Daqui para a frente, sob o risco de perseguição política, está amordaçada toda uma instituição, está sendo jogado no lixo todo um trabalho sério de mais de 30 anos do Ministério Público. Que se volte ao “natural, bom e velho método de combate à corrupção”, como diz o nefasto Augusto Aras. A impunidade será novamente bem-vinda.

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