Não era por amor
Apesar de a história apresentar uma fartura de exemplos de que o coração das classes mais carentes do país sempre bateu em favor dos governos de turno, sobretudo os que colocaram a engrenagem assistencialista para girar, como foi o caso de Collor com os seus “descamisados”, havia uma espécie de consenso segundo o qual o Nordeste teria virado um reduto eminentemente lulista – talvez embalado pelo predomínio do PT na região nas eleições presidenciais de 2002 para cá. O governo Jair Bolsonaro está aí para provar que essa é uma certeza em franca erosão.
Depois que decidiu abrir o cofre e injetar dinheiro na base da pirâmide social, a partir da criação do auxílio emergencial de 600 reais, Bolsonaro viu crescer sua aprovação na região. No início do mês, tornou-se cinco pontos mais popular nos estados nordestinos entre as classes D e E, resultado que fez com que se estagnassem os números nacionais que vinham apontando para a deterioração de sua popularidade em razão da revolta de parte da população com a condução do combate ao coronavírus.
O aparentemente consistente aumento nos índices de aprovação do presidente na região, cujos primeiros sinais apareceram ainda em dezembro, quando o governo liberou o 13º do Bolsa Família, foi suficiente para acender a luz verde no Palácio do Planalto. O presidente e seus auxiliares mais próximos entenderam, a partir de então, que se tratava de uma oportunidade de ouro não só para preservar a popularidade do governo como para aumentá-la, transformando o afago aos nordestinos numa catapulta para o projeto de reeleição de Bolsonaro em 2022. Daí a decisão de intensificar as viagens presidenciais ao Nordeste.
Nas últimas semanas, Bolsonaro experimentou uma espécie de “banho de povo” na região. O Piauí, onde iniciou a caravana antes de seguir para a Bahia, abriu a sequência. Em clima de campanha, Bolsonaro vestiu um chapéu de vaqueiro, desfilou montado no lombo de uma égua, retirou a máscara de proteção e saiu a cumprimentar uma animada claque com apertos de mãos. Ali, a estratégia para 2022 estava mais do que evidente: o presidente pretende se reeleger com uma retórica que se assemelha à adotada por Lula em passado recente — e por meio da injeção de assistencialismo na veia.
Bolsonaro, por ora, faz jogo duplo. Enquanto estimula internamente as discussões no sentido de pisar fundo nos gastos públicos, publicamente – provavelmente para acalmar o mercado – diz que “não dá pra continuar muito” com o pagamento do auxílio emergencial por causa do alto custo do benefício. “Não dá para continuar muito porque a economia tem que funcionar”, afirmou Bolsonaro na quarta-feira, 5, no Palácio da Alvorada. No mesmo dia, porém, em entrevista ao jornal O Globo, o filho 01 do presidente, senador Flávio Bolsonaro, não poderia ter sido mais claro sobre as reais intenções do governo. “O Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas ações que têm impacto social e na infraestrutura”, disse.
Em reuniões no Ministério da Economia, Paulo Guedes tem dito que não vai aceitar uma aventura no populismo fiscal nos moldes do petismo. Afirma que está fora de questão a possibilidade de romper com o teto de gastos, que bem ou mal vinha possibilitando ao governo o enxugamento da máquina pública e a redução das taxas de juros, juntamente com a inflação. Ocorre que, embora integrantes da pasta mencionem preocupação com o impacto sobre as contas públicas, há o entendimento de que pressões políticas podem acabar levando à explosão nos gastos. O primeiro passo nessa direção é garantir a prorrogação até dezembro do auxílio emergencial. O programa, cujo custo mensal é de 50 bilhões de reais, havia sido criado para durar apenas três meses.
A ideia é juntar o Bolsa Família, que hoje custa 29,5 bilhões de reais por ano, com o dinheiro do Abono Salarial e do Seguro Defeso, elevando o gasto para 50,5 bilhões. Técnicos da Economia vêm repetindo em diversas reuniões que a pasta não vê problemas em remanejar recursos para incrementar investimentos no orçamento do ano que vem. “Se estivermos falando em 2 ou 3 bilhões por ano, é possível”, analisa um secretário da pasta.
O pessoal de Guedes insiste internamente que a retomada do investimento tem de vir pela revisão de marcos legais, como o do saneamento, e com a desburocratização das regulações brasileiras para facilitar investimentos estrangeiros. A questão é saber se o discurso será aplicado realmente na prática e se Guedes irá resistir à tentação bolsonarista de ampliar os investimentos à custa do aumento ou até criação de novos impostos – projeto que vem sendo articulado desde que auxiliares do Planalto, Rogério Marinho incluído, levaram ao presidente a proposta do Pró-Brasil, uma espécie de PAC de Lula e Dilma com nova roupagem e um incremento substancial de investimentos públicos em obras, fora do teto de gastos, de mais de 180 bilhões.
Consumada a inclinação do governo para o desenvolvimentismo, será a maior guinada econômica de um presidente desde que Dilma Rousseff convidou o liberal Joaquim Levy para assumir o Ministério da Fazenda e promover um até então impensável ajuste fiscal – no que foi boicotado pelo próprio PT. Só que, desta vez, de maneira contrária: um governo eleito sob a bandeira liberal afrouxando o torniquete para a gastança desenfreada. Tudo para conquistar de vez o eleitorado do Nordeste, aquele mesmo que amava Lula, e aplainar o terreno para as eleições de 2022. Qualquer semelhança com governos anteriores não é mera coincidência.
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