O ‘blog’ de Aras
Há exatamente uma semana, o procurador-geral da República, Augusto Aras, subiu algumas vezes o seu tom de voz habitual enquanto comandava uma sessão do Conselho Superior do Ministério Público Federal, a instância máxima da instituição. A reunião do conselho, formado pelo próprio PGR, por seu vice e por mais oito membros do topo da carreira do MP, havia sido convocada para discutir o orçamento à disposição dos procuradores para o ano que vem – ao órgão cabem tarefas diversas, como definir as linhas gerais de atuação da Procuradoria, estabelecer critérios para a distribuição de inquéritos e ordenar a abertura de sindicâncias contra integrantes enredados em deslizes éticos ou administrativos. De repente, o ambiente pesou. Aras se irritou quando um dos conselheiros, Nicolao Dino, pediu a palavra para ler um manifesto contra a mais recente ofensiva do procurador-geral contra a Lava Jato.
“Após a sessão do orçamento vossa excelência terá a palavra e eu irei replicar os pretextos de vossa excelência, e o farei com documentação de que disponho em mãos, para acabar com qualquer dúvida acerca dos fatos”, respondeu o procurador-geral. Dino insistiu, sem sucesso. “Não aceitarei ato político numa sessão de orçamento”, reforçou Aras, de novo insistindo para que o colega deixasse o protesto para depois. O encontro virtual já se encaminhava para a parte final quando a polêmica em torno da Lava Jato voltou à baila e o PGR reagiu distribuindo acusações a Dino e outros conselheiros, os quais acusou de fazer “oposição sistemática” a sua gestão.
“Todas as matérias que saem na imprensa é um procurador ou uma procuradora que passa”, queixou-se Aras, de novo exaltado. “Na voz lânguida de algum colega existe a peçonha da covardia de não mostrar a cara.” Ele se queixava de reportagens críticas à PGR publicadas pela imprensa que, a seu ver, tinham o dedo dos tais opositores. A tensão da reunião refletia o clima reinante no Ministério Público Federal. Uma parcela importante dos procuradores está revoltada com Aras por seu comportamento, digamos, amigável com o establishment político de Brasília e, em especial, com o Palácio do Planalto. A guerra santa deflagrada por ele contra as forças-tarefas da Lava Jato é parte desse contexto, por óbvio. Internamente, o Conselho Superior é o front no qual os procuradores descontentes tentam reagir – hoje a composição está equilibrada entre apoiadores e opositores de Aras, mas no próximo mês algumas cadeiras ganharão novos ocupantes e a oposição passará a ter maioria no colegiado.
Como há tempos não se via, a reunião naquela tarde de sexta-feira seguia inflamada. A certa altura, entre os vários acessos de cólera, quase sempre com o dedo em riste, o procurador-geral disparou: “Enquanto eu estava aqui havia a pergunta de um determinado blog, contaminado por muitos vícios, talvez com medo até de investigações por vir, incursionando sobre a minha família. Quero dizer, doutor Nicolao, que o senhor não vai gostar de nenhuma fake news sobre sua família. E muito menos doutora Luiza, que talvez não tenha família, mas talvez tenha. Doutor Adonis muito menos (referia-se aos subprocuradores Luiza Frischeisen e Adonis Callou de Sá, integrantes do conselho). Mas enquanto estava aqui eu estava recebendo um ataque a minha família”.
A grosseria com a subprocuradora que “talvez não tenha família” e as suspeitas lançadas contra ela e os demais participantes ganharam o noticiário. Mesmo entre os que estavam no centro da confusão, restavam dúvidas quanto ao que Aras se referia ao mencionar os tais ataques a sua família e quanto à investigação “por vir” sobre o “blog contaminado por muitos vícios” que o estava incomodando com perguntas. Enquanto a reunião estava em curso, sem que a iniciativa tivesse qualquer relação com a batalha que ali se travava, Crusoé enviou perguntas ao gabinete de Aras sobre as circunstâncias em que a mulher dele, a também subprocuradora-geral da República Maria das Mercês Aras, ascendeu na burocracia interna da PGR depois que o marido assumiu a cadeira de procurador-geral.
Era uma apuração trivial. Maria das Mercês, que antes atuava perante o Superior Tribunal de Justiça, passou a trabalhar em processos que correm no Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte da Justiça brasileira – uma posição de prestígio na estrutura interna da Procuradoria. Crusoé queria saber em que medida a ascensão representava uma promoção no organograma da PGR e se, no novo posto, a subprocuradora fazia jus a algum tipo de pagamento extra em seu contracheque.
Enquanto participava da reunião virtual do conselho, Aras, evidentemente, foi informado sobre as perguntas. Sentiu-se atingido pessoalmente por elas, como se não tivesse a dimensão de que é absolutamente normal alguém na cadeira que ele ocupa, uma das mais relevantes da República, ter de prestar explicações ao distinto público. E logo tratou de enxergar, nas dúvidas sobre o novo posto de sua mulher, uma tentativa de atacar sua família – algo que ele atribuía, na origem, a um dos subprocuradores com os quais se digladiava na reunião. “Provavelmente saiu daqui, porque tem a digital de que saiu daqui”, bradou, antes de propor um curioso armistício. “Quando tivermos condições de conversar com dignidade, sem fake news, sem a covardia, sem a traição, sem a mentira propiciada por aqueles que estão na casa, eu acho que teremos paz”, disse.
Faltava, ainda, esclarecer a parte do “blog investigado”, o que ele não havia feito até agora. O que Crusoé revela a partir daqui constitui mais uma peça assombrosa da passagem de Aras pela PGR. A suspeita que o procurador lançou ali sobre o veículo que o incomodava naquela tarde – e o incomodava simplesmente por cumprir seu dever – tem relação direta com uma iniciativa adotada por ele próprio, quase cinco meses antes. Os detalhes dessa iniciativa constam de um anexo inédito do famigerado “inquérito do fim do mundo”, aquele mesmo no qual o ministro Alexandre de Moraes, na qualidade de relator, censurou Crusoé no ano passado.
Em 4 de março deste ano, Aras despachou para Alexandre de Moraes uma petição sigilosa de 17 páginas na qual pedia uma investigação sobre comentários postados por leitores nas páginas de Crusoé e de O Antagonista com ofensas a ministros do Supremo. Sim, senhores, o PGR propôs – e Moraes topou – uma curiosa investigação sobre as caixas de comentários dos nossos leitores, como se não houvesse nada mais importante para se investigar no país, e ainda sugeriu, nas entrelinhas, a responsabilização da revista e do site por veicularem as críticas. Escreveu ele: “No decorrer do iter investigativo, a Procuradoria-Geral da República identificou a propagação de volumosas manifestações recentes, veiculadas como ‘comentários’ de terceiros em publicações do sítio virtual ‘O Antagonista’, a configurar os tipos penais dos artigos 138 (calúnia), 139 (difamação) e 140 (injúria) do Código Penal”. “Tais ilícitos foram dirigidos a ministros dessa Corte Suprema”, emendou.
Pode-se dizer que a peça é cuidadosa. Aras se deu ao trabalho de copiar os links de seis notas publicadas pelo Antagonista, com prints de comentários de leitores que miravam ministros, especialmente Gilmar Mendes. “As referidas manifestações”, escreveu o procurador-geral da República, “extrapolam o direito fundamental de liberdade de expressão, atentando contra a honra dos ministros”. E mais: “Em razão do anonimato dos seus responsáveis, hão de ser adotadas diligências investigativas para a elucidação da autoria delitiva, mediante requisição de dados cadastrais e de conexão ao sítio virtual ‘O Antagonista’ e, posteriormente, identificação dos provedores de conexão, para que também informem os dados cadastrais dos respectivos usuários”.
Na sequência, Aras recorre a uma certa “liberdade criativa” ao escrever que a liberdade para a publicação de comentários ofensivos é oferecida como “atrativo comercial” aos assinantes de Crusoé – algo que, desde o lançamento da revista, há pouco mais de dois anos, nunca ocorreu. Anotou Aras na petição: “É relevante registrar que a venda de assinaturas da revista eletrônica ‘Crusoé’, do mesmo grupo empresarial de ‘O Antagonista’, apresenta como atrativo comercial a liberdade para os comentaristas divulgarem opiniões, ainda que muitas delas sejam ofensivas à honra dos ministros dessa Corte”. Pouco antes de concluir a insólita peça, o procurador-geral ainda mistura conceitos e deixa evidente uma certa confusão em relação ao que deseja ver investigado no inquérito de Alexandre de Moraes: “Ademais, o sigilo da fonte se dirige aos jornalistas, no exercício da profissão, não alcançando esta garantia aos comentaristas”.
Para além do absurdo de querer investigar comentários de leitores e de sugerir, ainda que sutilmente, a responsabilização dos dois veículos, o procurador-geral dá uma curiosa guinada na postura da PGR em relação ao polêmico inquérito conduzido em segredo por Alexandre de Moraes desde março do ano passado, a partir de uma decisão do presidente da corte, Dias Toffoli. Antes de Aras tomar posse, sua antecessora, Raquel Dodge, defendeu o arquivamento sumário do inquérito, sob o argumento de que se tratava de uma investigação inconstitucional, conduzida sem a participação do Ministério Público. Um “verdadeiro tribunal de exceção”, chegou a escrever a então procuradora-geral. Aras pensa diferente. E, além de não enxergar problemas na investigação, ainda tem atuado como mais um ponta de lança da apuração secreta conduzida por Moraes.
Não se tem notícias de que o procurador pediu investigação semelhante sobre comentários publicados em outras plataformas da internet. “No mesmo inquérito que havia censurado a Crusoé no ano passado, e sob a alcunha de ‘fatos novos’, o apenso 76 direciona à revista investigação sobre comentários dos seus leitores. A responsabilidade legal desse conteúdo não é do veículo. Parece evidente, portanto, que está em curso uma nova investida sobre o jornalismo da Crusoé”, afirma o advogado da revista, André Marsiglia Santos, especialista em liberdade de expressão e de imprensa.
“Um dos argumentos utilizados pela PGR para a nova investigação é a Crusoé permitir que os leitores manifestem suas opiniões. A manifestação livre é um princípio constitucional, e me parece que cumprir a Constituição ainda não é um ilícito”, segue Marsiglia. “Investigar os leitores é uma forma de tentar constranger o veículo. Permitir a circulação de um conteúdo, mas inibir seu debate e sua repercussão pública, é censura. Trata-se de asfixiar e desidratar o exercício pleno da liberdade de imprensa”, diz o advogado, membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da seccional paulista da OAB e da Comissão de Mídia e Entretenimento do Instituto dos Advogados de São Paulo.
Para o jurista Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça, Aras extrapolou as competências da PGR no pedido endereçado a Alexandre de Moraes. “É uma manifestação indevida, que não parte nem sequer da própria vítima das supostas ofensas. Chamaria isso de uma pescaria do procurador-geral. Ele está tentando pescar algo não sei para qual finalidade. Persegue coisas desnecessárias. São comentários dentro de sites de notícias, claramente uma manifestação livre de pensamento, dentro do limite da liberdade de expressão, sem nenhuma periculosidade, nenhum dano efetivo”, afirma Reale. “Não estamos falando de um conjunto organizado de difusão de notícias falsas, que visam ao ultraje de uma instituição da República. São manifestações isoladas e individuais, sem nenhuma carga de prejuízo e de dano”, emenda o ex-ministro.
Nesta quinta-feira, 6, Crusoé enviou as seguintes perguntas à Procuradoria-Geral da República, na tentativa de obter uma explicação sobre a iniciativa de Aras:
- O que deu origem ao pedido de investigação feito pelo procurador-geral ao ministro Alexandre de Moraes relacionado aos comentaristas de O Antagonista e de Crusoé?
- O procurador-geral afirma no pedido que “identificou a propagação de volumosas manifestações” dirigidas a ministros do STF por comentaristas dos sites “no decorrer do iter investigativo”. Considerando que a PGR não atua diretamente nas investigações realizadas no âmbito do inquérito 4.781, a que o procurador-geral se refere ao dizer que a PGR identificou tais manifestações “no decorrer do iter investigativo”?
- A Procuradoria-Geral da República propôs ao ministro Moraes a abertura de outras frentes de investigação no âmbito do inquérito 4.781? Se sim, quantas e para apurar o quê?
- Comentários semelhantes aos listados pela PGR no pedido de investigação feito ao STF aparecem em várias plataformas da internet, inclusive em perfis mantidos nas redes sociais pelos próprios ministros da corte. A PGR solicitou investigação sobre comentários de leitores dessas outras plataformas? Se sim, quais?
- O procurador-geral entende que comentários de leitores devem ser censurados?
- Na mesma peça, o procurador-geral anotou que a venda de assinaturas de Crusoé apresenta como “atrativo comercial” a “liberdade para os comentaristas divulgarem opiniões”. De onde o PGR tirou essa conclusão?
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