Rosinei Coutinho/SCO/STFNo Congresso, o vale-tudo para eleger os presidentes da Câmara e Senado se intensificou durante a semana

O varejão da Covid

O governo usa a bilionária verba emergencial para combater o coronavírus para fazer política com congressistas. Graças a padrinhos bem relacionados, até municípios sem infectados receberam mais dinheiro do que outros que estão em apuros na pandemia
07.08.20

Em meio à busca por apoio no Congresso Nacional, o governo Jair Bolsonaro usou cifras bilionárias reservadas para o combate à Covid-19 como moeda de troca em negociações com senadores e deputados. Trata-se de dinheiro que deveria estar no caixa das cidades mais atingidas pela pandemia, ou daquelas que sofrem com o sufocamento de seus sistemas de saúde, mas acabou escoando, às centenas de milhões de reais, para lugares que nem sequer foram atingidos pela doença – em alguns casos, prefeitos nem usaram a verba, como revela um levantamento feito por Crusoé.

Ao menos na teoria, a portaria do governo que listou cada cidade e seu respectivo repasse traz argumentos técnicos para embasar a distribuição. As regras, porém, foram frouxas o suficiente para agradar a parlamentares com a destinação de verbas para as suas bases em pleno ano de eleições municipais.

As negociações foram capitaneadas por um ministro-general, pivô da articulação política de Bolsonaro. Documentos internos do governo revelam que o Ministério da Saúde escondeu os critérios adotados para as transferências a municípios de sua própria assessoria jurídica até que os repasses fossem publicados no Diário Oficial. Auditores responsáveis por fiscalizar ações do governo em meio à pandemia bem que tentaram, mas não identificaram relação entre a planilha do governo e o mapa dos casos de Covid-19 no país.

Desde o início da pandemia, o governo federal distribuiu 63,4 bilhões de reais para o combate à Covid-19. A mais recente liberação de verbas se deu por meio da portaria 1.666, publicada no início de julho. Foram 13,8 bilhões, dos quais 11,3 bilhões destinados somente às prefeituras. Ao contrário das liberações anteriores, essa foi precedida de uma abordagem do governo federal junto a deputados e senadores para que indicassem livremente as cifras e as cidades destinatárias da verba.

Foram oferecidos 30 milhões de reais para senadores, e 10 milhões de reais aos deputados. À frente da oferta, segundo relataram parlamentares a Crusoé, estava o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos. Os relatos batem com as declarações do senador Major Olímpio, do PSL de São Paulo, que chegou a acusar o governo de promover um toma-lá-dá-cá com a verba da Covid.

Se o governo adotou o critério de incidência da pandemia para os estados, o mesmo não valeu para os municípios, os principais destinatários do esforço dos parlamentares, preocupados em satisfazer o microcosmo de suas bases eleitorais. O levantamento feito por Crusoé explicita o disparate: 448 cidades que não tinham sequer um caso de coronavírus receberam 200 milhões de reais. Por outro lado, Manaus, a capital do Amazonas, que alcançou 36,6 mil casos e mais de 2 mil mortos pela Covid-19, está entre os municípios que menos receberam verbas per capita por meio da portaria. A Frente Nacional de Prefeitos reclama dos critérios, diz que eles penalizam municípios que estão no auge da crise e que atendem um maior número de pacientes.

No ranking das cidades menos afetadas pela pandemia e que mais receberam, Bambuí, em Minas Gerais, é uma das líderes. Recebeu 1,8 milhão de reais. Com 17 mil habitantes, a cidade não realizou um procedimento hospitalar de alta e média complexidade em 2019 – o que seria fator para receber mais verbas, segundo a própria portaria do governo. O diferencial do município é mesmo a quantidade de padrinhos.

Suamy Beydoun/Agif/FolhapressSuamy Beydoun/Agif/FolhapressO ministro Ramos: parlamentares sustentam que ele foi quem ofereceu a verba
O prefeito, Olívio Vieira, do PSB, lista pelo menos quatro parlamentares, de diversos partidos, que indicaram verbas a Bambuí. “Antônio Anastasia, 500 mil, Marcelo Aro, 500 mil, Eduardo Barbosa, 150 mil”, disse ele. O problema é que a prefeitura, segundo o próprio prefeito, pouco gastou, já que continua com um número ínfimo de infectados: “Gastamos só 85 mil reais. Mas já foi feito empenho 400 mil, para comprar testagem. Vou gastar para o que precisa. E o que não precisar usar eu vou devolver depois”.

O deputado federal Eduardo Barbosa, do PSDB, admite ter apadrinhado a cidade. “Fizemos a indicação à liderança do partido, que repassou ao governo”, afirma. Ele fez mais de 9 milhões em indicações e alega ter adotado como critério dados demográficos das cidades.

Assim como Bambuí, outros municípios tiveram o caixa inflado por indicações de parlamentares. Uma delas é Nerópolis, no interior de Goiás, para a qual o governo disponibilizou 6 milhões de reais. À época da portaria, a cidade de 29 mil habitantes tinha 14 casos de Covid acumulados. Nerópolis recebeu mais do que diversas cidades que a superam em outros critérios previstos pelo próprio governo, além de registrarem mais casos de Covid-19.

Para efeito de comparação, Chapadão do Sul, em Mato Grosso do Sul, que tem indicadores semelhantes aos de Nerópolis e soma 367 casos da doença, levou metade da cifra da cidade goiana. O prefeito de Nerópolis, Gil Tavares, do PRB, tem uma lista de nove parlamentares que, diz, indicaram o município para os repasses. Entre eles está o senador Vanderlan Cardoso, do PSD, que assume ter apontado 30 milhões de reais a diversas cidades. O senador afirma ter sido contatado pelo ministro-general Ramos, para dizer para onde gostaria de destinar a verba.

“Aqueles que não quiserem os 30 milhões da saúde, passem para quem tem demanda! Além dessa pressão que a gente tem de correr atrás, fazer leis, temos de atender nossas bases, porque aí não tem jeito”, diz Vanderlan. O senador ainda justifica seu repasse a Nerópolis: “Uma das maiores UTIs que tem em Goiás é Nerópolis, ela atende gente de outros municípios”. Nerópolis tem 52 leitos hospitalares, segundo o Datasus, a plataforma de dados do Sistema Único de Saúde.

Após a publicação da portaria do governo federal que distribuiu os 13,8 bilhões de reais, houve um vaivém de ofícios de senadores e deputados comunicando prefeitos que conseguiram indicar as verbas para suas cidades. Muitos desses comunicados citam o expediente do Palácio do Planalto como fonte do recurso.

Repasses vultosos normalmente passam por uma minuciosa análise jurídica prévia do próprio governo federal. Até a publicação da portaria que liberou os 13,8 bilhões de reais a estados e municípios, porém, a Advocacia-Geral da União ficou no escuro quanto aos critérios da distribuição da verba. O órgão chegou a reclamar: os dados para a expedição do parecer chegaram de última hora, apenas no fim do dia em que a portaria foi publicada.

Waldemir Barreto/Agência SenadoWaldemir Barreto/Agência SenadoO senador goiano Vanderlan Cardoso: abordagem do Planalto
A queixa ficou registrada: “Na prática, essa situação praticamente inviabiliza uma análise jurídica a contento, especialmente de uma portaria que pretende repassar valores altíssimos, num total de 13,8 bilhões, que merecia toda a cautela em sua análise, para avaliação da objetividade, isonomia e transparência dos critérios de rateio entre os entes federativos”, escreveram os representantes da AGU destacados para atuar no Ministério da Saúde.

O órgão ainda questionou o fato de que o governo não “demonstrou como se chegou aos valores” que seriam repassados aos municípios. Mesmo assim, aprovou o texto em termos jurídicos, ressaltando que não entrou no mérito dos critérios. Já o ministro-general Eduardo Pazuello não quis entrar nas minúcias técnicas que sua equipe não foi capaz de explicar à área jurídica. O especialista em logística apenas transportou o texto para o Diário Oficial da União, com sua assinatura na calada da noite, em edição extra. Um dia depois de a portaria ter sido publicada, a pasta exibiu, como justificativa para os valores, uma fórmula matemática levando em consideração a população e os indicadores de saúde de cada município.

Oito dias depois, curiosamente, o ministério apresentou à AGU uma fórmula corrigida, diferente da anterior. Mesmo assim, a pasta não explicou como essa fórmula foi usada para chegar aos valores listados na portaria. Ao final do processo, o secretário de Atenção Especializada do ministério, coronel Luiz Otávio Franco Duarte, rebateu as críticas. Disse que os consultores da AGU foram constantemente acionados e estiveram presentes nas reuniões para tratar do tema.

Mesmo sem ser questionado sobre a politicagem com a verba, o militar fez questão de se antecipar, como quem estivesse contando com problemas futuros: disse que a “definição dos critérios de rateio são desprovidos de politização, e decorreram da pactuação em grupo técnico”. O coronel ainda ressaltou que a liberação bilionária demandava “urgência”.

Se a AGU não pôde fazer um parecer antes da publicação da portaria, o Tribunal de Contas da União, que acompanha os gastos do governo em meio à pandemia, tem apontado problemas nos critérios de distribuição de verbas do governo. Auditores a serviço da corte bem que tentaram estabelecer relação entre os valores repassados para as diversas regiões e os parâmetros previstos na regra oficial, como a quantidade de leitos, de internações e as taxas de mortalidade pela doença. Até agora, não conseguiram.

A fiscalização, feita desde a primeira liberação de verbas do governo, apontou que os repasses do governo não têm tido relação com esses indicadores. Relator dos processos que envolvem os gastos federais com o combate à pandemia, o ministro Benjamin Zymler já chegou a recomendar que os casos de Covid sejam levados em consideração para realizar os repasses. O TCU quer mais explicações do governo a respeito dos critérios usados para repassar os recursos aos municípios.

Apesar de todas as evidências do apadrinhamento de verbas para combate à Covid, o governo insiste em dizer que vem seguindo critérios técnicos. Jogando o problema para a outra ponta, sustenta que os deputados e senadores é que estão aproveitando a oportunidade para se apresentar, nas suas bases, como responsáveis por conseguir a verba.

Nem o líder do governo, Eduardo Gomes, do MDB, porém, consegue dar uma explicação razoável para os critérios. “Até hoje, não consegui entender. É uma conta meio maluca”, diz. Crusoé pediu ao Ministério da Saúde que exibisse sua base de cálculo com os critérios que levaram aos valores publicados na portaria. Após dois dias, por meio de nota, a pasta se limitou a uma resposta burocrática: “A verba é distribuída seguindo todos os critérios técnicos tais quais curva epidemiológica, parâmetros populacionais, capacidade instalada, e demandas ou necessidades dos estados e municípios”. Ou seja: não saiu do lugar.

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