MarioSabino

Próximo, por favor

07.08.20

Machado de Assis fingia não ser negro. Baudelaire contaminou uma prostituta com sífilis. Thomas Mann escondia sua inclinações homossexuais. Leonardo da Vinci também. Lewis Carroll tinha tendências pedófilas. Chaplin preferia as adolescentes. Gauguin transava com as meninas que retratou no Taiti. Picasso era um sátiro. Tolstoi era sexualmente insaciável. Byron contabilizava o número de amantes num caderno. Edmund Wilson descrevia suas relações sexuais num diário. Dante jamais dedicou uma linha a sua mulher. Machiavelli manteve uma cantora como amante. Newton, quando jovem, ameaçou queimar a casa da própria mãe. Rousseau abandonou os filhos. Evelyn Waugh desprezava os seus. Eça de Queiroz nutria desejos matricidas.

Freud colocou o cristão Jung como presidente da Associação Psicanalítica para livrar a psicanálise do estigma de “ciência judia”. Jung era antissemita e admirador de Hitler. Ezra Pound era fascista. Heidegger era nazista. Wagner foi a trilha sonora do nazismo. Yeats admirava Mussolini e chegou a escrever cantos marciais para os nazistas irlandeses. Lillian Hellman admirava Stálin, ficou histérica quando Hitler invadiu a União Soviética (“a Mãe Pátria foi invadida!”) e roubou os direitos da obra de Dashiell Hammett das filhas do escritor. Pablo Neruda era estuprador e stalinista (“Há que aprender de Stálin a sua clareza concreta/Stálin é o meio-dia”). Churchill era imperialista, racista e alcoólatra. Monteiro Lobato sofria de racismo estrutural, como provam Emília e Tia Nastácia. Brecht sujava as unhas para parecer um trabalhador e assinava obras escritas pela amante Elizabeth Hauptmann. Sartre escreveu para uma publicação colaboracionista na Paris invadida pelos alemães, elogiou a total liberdade de expressão na União Soviética, era um entusiasta de Che Guevara (“não apenas um intelectual, mas o mais completo ser humano da nossa era”) e deixou toda a sua herança para a jovem amante. A feminista Simone de Beauvoir submetia-se aos caprichos de Sartre, apresentando-lhe estudantes do segundo sexo. Elizabeth Bishop aplaudiu o golpe de 1964 (“foi uma revolução rápida e bonita”). Proust investiu num bordel masculino para poder espiar o que se passava nos quartos. 

A cultura ocidental é um nojo. A cultura ocidental deve ser jogada na lata de lixo da história — que é outro lixo porque escrita por seres humanos imperfeitos, e a imperfeição não tem gradação, não tem contexto, é sempre absoluta como a perfeição. Só se é humano quando se é perfeitamente perfeito. Desculpas não serão aceitas, próximo, por favor.

Vamos além, além da conta, porque já não há conta, medida, proporção. Vamos queimar tudo, vamos derrubar tudo, vamos cancelar tudo. Vamos arar com sal todos os terrenos já pisados. Viva a pureza moral, Heil, viva a censura correta, Heil, viva a morte dos culpados em eternos julgamentos finais, Heil.

Vamos esquecer que o vício muitas vezes é o estrume da virtude (Machado de Assis, que fingia não ser negro).

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