Gil Ferreira/STFA estátua da Justiça, na Praça dos Três Poderes: a benevolência vale apenas para alguns

Privilégio supremo

Crusoé analisou os pedidos de habeas corpus que chegam para os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli no Supremo Tribunal Federal. O resultado: o que vale para os presos famosos da Lava Jato não vale para os comuns mortais
20.07.18

“Nobres ministros, não é possível que a justiça do Brasil conceda este tipo de cumprimento de pena somente a pessoas como Abidel Massi (sic) e Paulo Maluf.” A carta, manuscrita, foi enviada ao Supremo Tribunal Federal por Arthur Rocha. Cego, ele está preso há cinco anos no presídio de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. Acusado de homicídio, alegou legítima defesa, mas ainda assim acabou condenado. Por razões humanitárias, ele queria que os ministros da mais alta corte do país analisassem a possibilidade de libertá-lo. As sucessivas notícias de habeas corpus concedidos a presos estrelados, aqueles que são notícia na televisão do presídio, o animaram. Em vão. Arthur Rocha faz parte de um grupo de réus e condenados que, à diferença dos investigados famosos, não teve a sorte de conseguir uma vitória no Supremo. Mais do que isso: seu processo nem sequer andou.

Enquanto isso, maio e junho foram meses magníficos para investigados da Lava Jato do Rio e de Curitiba que recorreram ao Supremo antes do recesso forense. Graças a decisões dos ministros Gilmar Mendes e José Antonio Dias Toffoli, a porta da cela se abriu para muitos deles. Sozinho, Mendes foi responsável por soltar mais de 20 presos do braço fluminense da Lava Jato. Toffoli, por sua vez, foi o relator da decisão de libertar seu ex-chefe José Dirceu, num caso atípico, para dizer o mínimo: de condenado a 30 anos de prisão, ele foi libertado a partir de uma decisão de ofício.

De maio para cá, entraram cerca de 230 habeas corpus no gabinete de Gilmar Mendes, mas pelo menos 40 estão simplesmente parados desde então. Não houve nem citação do Ministério Público, para manifestação a favor ou contra os pedidos. Também não houve qualquer despacho requisitando informações às partes envolvidas. Nada. Os pedidos estão parados como se tivessem chegado ontem. No caso de Dias Toffoli, há seis reclamações envolvendo processos criminais semelhantes àquela que resultou na soltura de José Dirceu. Todas entraram em seu gabinete a partir da segunda quinzena de abril. O único caso em que a reclamação foi convertida em alvará de soltura no período foi o de Dirceu.

Arthur Rocha, o preso cego de Presidente Venceslau, é um exemplo da lentidão que marca os processos de réus desconhecidos que chegam ao gabinete de Gilmar Mendes. Ele ingressou com o pedido em 22 de maio. O ofício chegou para o relator e lá ficou, sem qualquer andamento.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO ministro Gilmar Mendes: prioridade para os réus da Lava Jato no Rio
Enquanto uns amargam a lentidão no Supremo, há uma parcela de processos que corre a toque de caixa. No mesmo período, cerca de 40 pedidos de liberdade foram levados a Gilmar Mendes por investigados da Lava Jato do Rio. Todos tiveram andamento. E ao menos 22 dos presos cujos advogados subscreviam esses pedidos conseguiram ser soltos. O caso do já notório Orlando Diniz é simbólico. Ex-presidente da Fecomércio do Rio, ele apresentou a petição em 30 de maio e, no dia seguinte, já tinha uma decisão favorável. De tão gritante, o despacho a jato originou um embaraço para Gilmar: como a Fecomércio figurou por anos como patrocinadora do IDP, o instituto do ministro, os investigadores levantaram suspeita sobre a decisão e pediram que ele fosse declarado impedido de julgar casos envolvendo Orlando Diniz.

Diogo Abreu, 20 anos, não teve o mesmo êxito do velho patrocinador do instituto de Gilmar. Em fevereiro, ele estava em um bar do Brás, em São Paulo, quando foi abordado pela polícia. Acabou preso em flagrante, após ser acusado de participar, com outras duas pessoas, do roubo de um celular e uma carteira. Ele segue na cadeia desde então. No gabinete de Gilmar Mendes, o seu pedido de habeas corpus chegou quinze dias antes do de Orlando Diniz. E lá ficou, congelado.

Auxiliar de serviços gerais em Tupã, interior paulista, Lucas Nunes é outro que integra a estatística dos processos parados. O jovem de 21 anos está preso há um ano, sem julgamento. Ele confessou que participou de um assalto a uma loja, onde roubou 110 reais, duas garrafas de vinho e chocolates. Outros dois acusados aguardam o processo em liberdade. Ao Supremo, a defesa dele alega excesso de prazo na prisão, um argumento recorrente em casos da Lava Jato. A propósito desse assunto, aliás, não é de hoje que Gilmar Mendes, referindo-se às prisões ordenadas pelo juiz Sergio Moro, repete que o Supremo tem “encontro marcado” com as “alongadas prisões de Curitiba”. O pedido de Lucas Nunes, que não é de Curitiba, chegou ao gabinete do ministro em 12 de junho. E nada aconteceu até hoje.

Wilson Dias/Agência BrasilWilson Dias/Agência BrasilO caso de José Dirceu é único no gabinete de Dias Toffoli: pedidos similares de réus desconhecidos nem sequer andaram
“Às vezes, tem cinco ou dez habeas corpus e não são apreciados. E às vezes caem outros habeas corpus, como os da Lava Jato, e esses são apreciados no mesmo dia. Mas o princípio da isonomia é de que todos são iguais perante a lei. Então todos merecem a mesma celeridade. Deveria haver uma ordem para apreciação, para que não pulassem alguns e nem selecionassem outros”, disse a Crusoé o advogado Fábio Donadon, defensor de Lucas Nunes.

No gabinete de Dias Toffoli, houve um caso muito parecido com o de José Dirceu. O ex-ministro, triplamente condenado, conseguiu um habeas corpus de ofício, que é quando a defesa não pede diretamente, mas os ministros decidem mesmo assim conceder a liberdade. Ele tinha uma pena de 30 anos a cumprir e, graças à iniciativa de Toffoli, cujo voto na Segunda Turma do STF foi acompanhado por Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, conseguiu deixar o presídio da Papuda, em Brasília.

O mesmo instrumento, chamado “reclamação”, foi usado por Felipe Gonçalves. Aos 20 anos, ele foi condenado a três anos de prisão e acabou indo para o regime fechado — o comum é isso acontecer quando as penas passam de oito anos. No local onde foi preso, havia 26 porções de maconha, 70 porções de crack e 47 de cocaína, situação em que normalmente os envolvidos são enquadrados como pequenos traficantes. Na primeira instância, o juiz reconheceu que Felipe era réu primário e não integrava organização criminosa. Mesmo assim, considerou a conduta reprovável e ordenou que a pena fosse cumprida em regime fechado. Felipe está preso desde fevereiro. Ele admite ser usuário de drogas e diz que estava no local para comprar maconha, e não para vender drogas. Embora sua pena tenha sido equivalente a um décimo da de José Dirceu, Felipe não teve o mesmo sucesso do petista pilhado no mensalão e no petrolão. Ele começou a cumprir a sentença antes mesmo de o veredicto ser confirmado em segunda instância.

“Esse negócio de cumprir pena em segunda instância não é para réu sem relevância. Réu sem relevância é primeira instância”, diz o advogado de Felipe, Wagner Tasca. A defesa pleiteava que o jovem pudesse cumprir os três anos em regime mais leve que o fechado. “Quem não tem o nome reconhecido no país tem muito mais obstáculos na Justiça. É extremamente difícil ter um habeas corpus de ofício, como o concedido a José Dirceu. Eu não vejo isso quando o nome não é de relevância. Digo com toda a honestidade. Nem prescrição, que é matemático, se consegue de ofício”, afirma o advogado. A reclamação de Felipe, claro, foi negada por Dias Toffoli. Há réus e réus no Brasil.

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