Alan Santos/PR

Cheques em xeque

O Ministério Público do Rio teme investigar desde já os repasses de Fabrício Queiroz para Michelle Bolsonaro por uma razão simples: não quer que a apuração suba para Brasília e se perca nos escaninhos da corte
14.08.20

Os 27 cheques de Fabrício Queiroz e de sua mulher, Márcia Aguiar, para a primeira-dama Michelle Bolsonaro, revelados com exclusividade por Crusoé na última semana, aproximam ainda mais o Palácio do Planalto da investigação sobre o suposto esquema de rachid no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ao expor as fissuras na versão inicial do presidente Jair Bolsonaro para os repasses do ex-assessor de seu filho 01 para Michelle, a revelação amplia o foco sobre mais uma transação feita pelo homem apontado como operador financeiro de Flávio. Os 89 mil reais depositados na conta de Michelle – 72 mil de Queiroz e 17 mil de Márcia — transformam o caso numa trama ainda mais delicada e ameaçadora por envolver diretamente o casal presidencial.

Por que os repasses de Queiroz para a primeira-dama ainda não foram incluídos na investigação, uma vez que a existência do primeiro cheque veio a público no fim de 2018, naquele famoso relatório do Coaf? A resposta pode ser sintetizada em duas palavras: foro privilegiado. Desde o início, a estratégia dos promotores do Ministério Público do Rio é evitar avançar sobre qualquer detalhe com potencial para resvalar no presidente Jair Bolsonaro. O motivo é óbvio. Em caso de surgimento de algum fato relacionado ao presidente, mesmo de quando ele era deputado federal, corre-se o risco de o procurador-geral da República, Augusto Aras, decidir puxar a investigação para Brasília. Desde a nova revelação feita por Crusoé, os temores aumentaram. Reside aí a explicação para a nota divulgada pelo MP fluminense, logo após a reportagem, para negar que a primeira-dama seja alvo da investigação.

Nos bastidores, já há quem diga que Aras, escolhido por Bolsonaro para a PGR (ou mesmo um ministro do Supremo Tribunal Federal), possa avocar o caso, por causa da prerrogativa que todo presidente da República tem: a de ser investigado ou processado apenas no STF. Embora a leitura dos investigadores seja a de que mesmo nesse caso não haveria como o presidente ser alvo de investigação, uma vez que o esquema é anterior a sua chegada ao Palácio do Planalto, a ordem é evitar qualquer linha de apuração que possa fazer com o que os autos subam para Brasília – algo que representaria um grande risco de atravancar a investigação. Essa tarefa, porém, não tem sido fácil, já que os desdobramentos do caso aproximam as suspeitas de desvios no gabinete do filho 01 do gabinete do próprio presidente e de antigos assessores dele na época de Câmara dos Deputados.

Para a infelicidade do clã Bolsonaro, a quebra de sigilo bancário dos assessores de Flávio na Alerj levantou a suspeita de que o mesmo esquema de desvio de salário de servidores da Alerj tenha se repetido no gabinete do pai em Brasília. A filha de Queiroz, Nathalia, foi uma das assessoras que esteve lotada nos dois gabinetes. Como mostrou Crusoé, os mesmos extratos bancários que revelam os cheques para Michelle indicam que ela era funcionária fantasma – embora contratada pelo legislativo federal, entre dezembro de 2016 e outubro de 2018, ela trabalhava mesmo era como personal trainer em academias do Rio de Janeiro e para atores globais.

No mesmo período em que recebia os vencimentos para supostamente assessorar Jair Bolsonaro em Brasília, Nathalia Queiroz recebia salários de três academias. Caso decidam investigar as possíveis irregularidades no gabinete do presidente, os interessados verão que, logo após serem creditados pela Câmara na conta de Nathalia no Banco do Brasil, o salários eram enviados no mesmo dia para outra conta no Itaú e depois seguiam para a conta do pai dela, Queiroz, amigo do presidente desde os tempos de Exército na década de 1980. No Congresso, parlamentares já colheram assinaturas para tentar instalar uma CPI para investigar as suspeitas envolvendo o antigo gabinete de Bolsonaro e as transações de Queiroz com a primeira-dama.

ReproduçãoReproduçãoQueiroz em prisão domiciliar, no Rio: Felix Fischer, do STJ, decidiu que ele deve voltar para a cadeia
A versão apresentada pela defesa de Queiroz para os repasses mensais da filha é que ele centralizava em sua conta toda a renda familiar. Um ponto chama a atenção sobre essa versão. Nathalia foi exonerada do gabinete de Jair Bolsonaro em outubro de 2018, mesma data em que seu pai saiu do gabinete de Flávio na Alerj. Segundo o empresário Paulo Marinho, isso se deu logo após o filho 01 do presidente receber informações sobre a existência do relatório do Coaf que depois complicou a sua vida. Aí está o detalhe. Não se sabe por que o salário de outubro e o valor da rescisão pago em novembro, recebidos quando, segundo Marinho, eles já sabiam da suspeita das autoridades sobre o esquema de rachid, não foram devolvidos para Queiroz, como ocorria religiosamente em todos os meses anteriores. Temor de serem fisgados?

Também sem explicação convincente e com potencial para resvalar em Bolsonaro está a relação do seu advogado Frederick Wassef com a “hospedagem” de Queiroz em Atibaia e a tentativa de obstrução de Justiça investigada pelos promotores do Rio. Desaparecido desde que foi afastado da defesa de Flávio Bolsonaro, o espalhafatoso advogado – e isso não é novidade para ninguém – faz questão de lembrar para quem quer que seja da sua proximidade com o presidente. Os investigadores estão debruçados sobre o material amealhado na busca no imóvel de Wassef e analisam todas as mensagens encontradas nos aparelhos celulares de Queiroz. Desse material, mais até do que novas provas sobre o esquema de rachid, podem sair informações sobre quem mais sabia da ajuda dada pelo advogado ao amigo do presidente. Além disso, a memória dos celulares contém as conversas de todos os interlocutores de Queiroz, desde o momento em que ele entrou na mira do MP até a sua prisão no último mês de junho. Essas evidências podem mostrar qual era o papel de Wassef – que há semanas anda sumido, bem distante dos holofotos — e a quem mais ele se reportava.

Se para Jair Bolsonaro as dúvidas a serem explicadas no caso Queiroz são uma ameaça, para seu filho Flávio elas podem tornar uma realidade difícil em uma situação incontornável. Os investigadores já têm nas milhares de páginas dos autos principais, anexos e apensos do procedimento investigatório criminal, o PIC, provas de sua participação em ao menos dois crimes: peculato, pelo desvios de dinheiro da Alerj por meio do rachid operado por Queiroz, e de organização criminosa. Falta a comprovação da possível lavagem de dinheiro feita via compra de imóveis e da sua participação na obstrução de Justiça para evitar depoimentos de assessores e para manter o ex-assessor e parentes do falecido miliciano Adriano da Nóbrega longe dos promotores do MP.

Nesse cenário, como já mostrou Crusoé, um personagem importante, além de Wassef, é outro advogado de Flávio, Luís Gustavo Botto Maia. Segundo os investigadores, ele tinha conhecimento do plano para esconder Queiroz e era o contato do grupo do senador com a família do miliciano morto em fevereiro na Bahia. “Ele extrapolou todos os limites do exercício da advocacia e passou a atuar de forma criminosa”, afirmam os promotores no pedido de prisão de Queiroz e buscas em endereços de Botto Maia. A ação foi batizada de Operação Anjo. Mensagens encontradas no celular da mulher de Fabrício Queiroz mostram que Botto Maia se reuniu com Wassef e com o próprio Queiroz para organizar um encontro com familiares do miliciano. O objetivo seria traçar um plano de fuga para o amigo da família Bolsonaro. O advogado de Flávio teve os celulares e computadores apreendidos.

A depender do que estava armazenado nesses equipamentos, a situação do 01, por incrível que pareça, pode piorar ainda mais ao trazer respostas para outro item da extensa lista de suspeitas a rondar a família Bolsonaro: até onde iam as relações de Flávio com o miliciano? Se para Jair Bolsonaro as interrogações ainda existentes no caso Queiroz podem gerar dores de cabeça no futuro próximo, para seu filho senador elas podem consolidar um cenário devastador. O único caminho, ao que tudo indica, é mesmo se apoiar nos novos aliados do Centrão para evitar derrotas ao menos na seara política, porque no campo jurídico, se tudo caminhar como deve, só haverá saída como a ajuda de ministros dispostos a salvar os poderosos da vez. Em tempo: nesta quinta-feira, 13, o ministro Felix Fischer revogou a prisão domiciliar de Queiroz e de Márcia Aguiar, a mulher dele, e ordenou que os dois sejam recolhidos à cadeia.

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