Divulgação"A reforma tributária só apareceu agora. Não há muita clareza até o momento sobre o que seria uma agenda liberal"

‘Gastar muito não é gastar bem’

O economista Marcos Lisboa diz que o Brasil destina muito dinheiro para o social, mas problemas de gestão impedem grandes avanços na educação e no combate à pobreza
14.08.20

O economista Marcos Lisboa, 56 anos, é o atual presidente do Insper, uma das mais prestigiosas escolas de negócios da América Latina, com 6 mil alunos. Nos anos 1990, ele foi professor da Universidade Stanford e da Fundação Getúlio Vargas. Mais tarde, assumiu cargos no setor privado e no setor público. Entre 2003 e 2005, já na era petista, Lisboa atuou como secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Foi um dos idealizadores do Bolsa Família, que ele considera um dos programas sociais mais eficazes do Brasil.

Apesar da passagem pelo governo do PT, Lisboa não traz qualquer traço ideológico. De perfil mais técnico, ele costuma avaliar todos os governos brasileiros com a mesma régua – algo raro nos dias de hoje. Para o economista, desde a Constituição de 1988 o estado tem aumentado perigosamente os gastos obrigatórios e distribuindo privilégios de maneira automática. Uma vez concedidos, tais benefícios são difíceis de ser retirados.

Além de forçar o país a aumentar impostos e a dívida pública, a elevação dos gastos teve pouco impacto real nas últimas três décadas. Na educação, não se registrou uma melhora nos níveis de aprendizado. A redução da pobreza foi mais intensa em outros países. “Temos um estado que é grande e não para de crescer, mas cujas políticas sociais não alteram fundamentalmente a vida da população. O estado cresce muito, mas o país cresce pouco”, diz Lisboa na entrevista que segue.

O Palácio do Planalto tem à disposição 255 bilhões de reais para combater a Covid. Como os brasileiros pagarão essa conta depois?
Honestamente, o que mais me preocupa não são os gastos com a pandemia, pois eles são temporários. Têm começo, meio e fim. Com um ajuste na situação atual, será possível ir pagando essa conta ao longo dos próximos anos. O problema no Brasil é um tema anterior: o crescimento dos gastos obrigatórios. Esses gastos têm aumentado há 30 anos e continuam evoluindo, porque nada está sendo feito para interromper a ascensão deles. Se continuarem subindo na atual velocidade, será preciso aumentar os impostos ou a dívida pública.

Por que esses gastos obrigatórios não param de crescer?
Eles crescem automaticamente e, depois, não há como reduzi-los. Um exemplo são as aposentadorias dos servidores públicos de estados e municípios. Policiais militares e professores também têm direito a uma aposentadoria muito precoce. Há ainda penduricalhos que permitem a diversas carreiras ganhar mais que o teto constitucional, que é o salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Essas coisas não entraram na reforma da Previdência e estão fora da atual agenda de reformas. É uma omissão lamentável. O gasto público no Brasil tem crescido 6 pontos percentuais acima da inflação desde 1991. No entanto, a qualidade das políticas públicas não tem aumentado no mesmo compasso.

Divulgação/Leandro ArrudaDivulgação/Leandro Arruda“As privatizações não aconteceram”
Como se mede a qualidade das políticas públicas?
Olhando atentamente para os indicadores. Os gastos com educação subiram de 3,9% do PIB para 6,5% em vinte anos, mas os dados que avaliam o aprendizado no ensino médio não se alteraram. Também podemos comparar a queda na pobreza do Brasil com a de outros países. Desde 1995, nações que eram parecidas conosco tiveram uma redução mais acentuada. A situação, então, é que temos um estado que é grande e não para de crescer, mas cujas políticas sociais não alteram fundamentalmente a vida da população. O estado cresce muito, mas o país cresce pouco. Gastar muito não é gastar bem.

Até a pandemia chegar, havia uma preocupação por parte do governo atual de cortar gastos e tornar a economia mais liberal?
O que vi foi muita promessa e pouca ação. A reforma tributária só apareceu agora. Não há muita clareza até o momento sobre o que seria uma agenda liberal. Em dezembro, tivemos a capitalização da Empresa Gerencial de Projetos Navais, a Emgepron (a estatal recebeu um aporte de 7,6 bilhões de reais do governo). As privatizações não aconteceram. As mudanças de regulação foram tímidas, para dizer o mínimo. Não ocorreu um fortalecimento das agências reguladoras. A abertura de comércio exterior também não ocorreu. O que mais o governo diga em sua defesa sobre isso é perfumaria.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, entregou uma primeira fase de uma reforma tributária, mas há também um projeto na Câmara e outro no Senado. Qual é o seu preferido?
O da Câmara é tecnicamente o melhor. É o mais alinhado às boas práticas do resto do mundo. Nosso sistema atual é muito distorcido, sobretudo nos impostos sobre o consumo. Eles foram criados na contramão do que mandam as práticas da boa tributação, que fazem o possível para não atrapalhar o crescimento econômico. Durante a discussão das reformas, os empresários têm demonstrado muito medo. Alguns não entendem a reforma e não sabem o que é um imposto sobre valor adicionado. Eles caem em teses muito descoladas da realidade. Talvez a estratégia de começar pelo PIS e Cofins, os impostos federais, tenha um propósito educativo. As pessoas se darão conta de que muitos dos vaticínios eram infundados. Mais adiante, será possível projetar um sistema mais alinhado com o do resto do mundo. A etapa seguinte seria uma revisão do ICMS, o imposto mais equivocado do Brasil.

Como o sr. analisa os gastos com a pandemia?
O processo tem sido mal coordenado. Isso foi constatado na importação de equipamentos de saúde e na gestão de recursos. Não é por acaso que o Tribunal de Contas da União tem apontado a dificuldade de gastos serem realizados na saúde. O governo federal não cumpriu o seu papel de ser o grande orquestrador das ações, dando as diretrizes gerais e informando a população. O resultado é que há muitos conflitos de opiniões na sociedade. Uma autoridade fala uma coisa, outra diz o oposto. No meio disso tudo, estão sendo aprovadas medidas de aumento de gastos permanentes, que nada têm a ver com a pandemia. Um exemplo é o Benefício de Prestação Continuada, que é dado a pessoas com mais de 65 anos e com alguma deficiência (o Congresso aumentou o número de pessoas que podem receber o BPC). Outro exemplo é a emenda constitucional para destinar mais dinheiro ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, o Fundeb.

Qual é o problema do Fundeb?
Recursos para a educação são muito bons sempre que garantam uma melhora do aprendizado. Do jeito que a lei foi escrita, 70% dos recursos vão para pagar salários e aposentadorias. Os reajustes dos professores estão indexados ao volume de recursos, dividido pelo número de alunos. Como o número de alunos tem diminuído, temos tido aumentos reais e bem expressivos dos salários dos professores nos últimos anos. A partir de 2022, esse crescimento será ainda maior, muito acima da inflação. A regra também indexa as aposentadorias do magistério em geral. O resultado do Fundeb é que ele vai aumentar os gastos com todos os professores da ativa e com os aposentados sem que seja criado qualquer critério para avaliar a formação dos alunos.

Lucas Pricken/STJLucas Pricken/STJ“As boas experiências de educação não passam pelo salário dos professores”
O aumento dos salários dos professores não melhora a qualidade da educação?
Isso só é verdade para salários muito baixos. A partir de um determinado nível, essa correlação deixa de existir. Várias pesquisas já demonstraram que não há no Brasil qualquer relação expressiva entre os gastos com a educação e a qualidade do ensino. As boas experiências de educação não passam pelo salário dos professores, mas por gestão. É preciso acompanhar os critérios de aprendizado e administrar bem o corpo docente na escola. Tudo isso passou longe do debate do Fundeb. No fundo, tratou-se apenas de uma discussão por aumento salarial.

Qual seria um exemplo de política social eficaz no Brasil?
Uma política bem-sucedida é o Bolsa Família. Ela estava bem focada nas famílias de baixa renda e pedia contrapartidas para beneficiar as crianças. O programa teve bastante impacto na redução da extrema pobreza. Mas o Bolsa Família é uma exceção. Somos um país que gastou muito nessa área, mas onde a pobreza caiu pouco.

O auxílio emergencial na pandemia tem o mesmo raciocínio do Bolsa Família, que é o de dar o dinheiro diretamente para os necessitados. Foi uma boa ideia?
O objetivo de uma política social eficiente deve ser o de cuidar das famílias extremamente vulneráveis e gerar contrapartidas. Mas os recursos do auxílio emergencial foram distribuídos sem qualquer critério. A decisão de dar o auxílio saiu no calor do momento, quando era preciso enfrentar um problema grande e não se sabia o que fazer. Não é à toa que a toda hora aparecem denúncias falando de gente que recebeu o benefício sem merecer.

Há alguns dias, uma coalizão de 230 organizações da sociedade civil fez uma campanha nas redes sociais para acabar com o teto de gastos. Essa necessidade existe?
Não existe porque, em uma situação de calamidade, o teto é afastado. A prova disso é que, neste ano, caminhamos para ter um déficit público de 16,5% do PIB, um valor muito maior que o da média dos países emergentes. O teto não foi empecilho algum para uma elevação nos gastos com a pandemia. Mas o teto funciona como um grande semáforo. Quando os gastos se aproximam dele, a luz vermelha se acende: sabemos que teremos problemas pela frente. Em uma situação normal, o gasto público deveria se manter estável, acompanhando apenas a inflação. Não há motivo para que o gasto real aumente além disso todo ano. O risco de romper o teto é retomar a crise do governo de Dilma Rousseff. Quando ficou claro que os gastos públicos saíram do controle, os juros de longo prazo aumentaram rapidamente, o Brasil perdeu o grau de investimento, o nível de incerteza da economia aumentou e mergulhamos numa recessão profunda. Quando Michel Temer assumiu o governo em 2016, ele propôs o teto de gastos e aconteceu o contrário. Os juros caíram e a economia saiu da recessão.

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