MarioSabino

Lembre a data: 4 de junho de 1997

14.08.20

A origem dos maiores problemas do Brasil, desde a redemocratização, tem data: 4 de junho de 1997. Não esqueça de vestir luto a cada aniversário dela. Foi quando o Congresso promulgou a emenda constitucional que permite a reeleição: 

O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subseqüente.

Singelíssima, a própria emenda tem um vício de nascimento que seria reproduzido como nunca antes neste país: ela foi comprada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, que almejava ser reeleito a todo custo (e bota custo nisso). O tucano sempre negou a compra de parlamentares, mas a sistematização dessa prática começou com a emenda e foi elevada à condição de arte por Lula — que, na sequência dos seus dois mandatos, criou a figura do poste, igualmente reelegível, o que pode proporcionar um mandato de 16 anos. 

A reeleição é o nascedouro dos nossos maiores problemas porque o governante eleito, não importa o sinal ideológico, passa a preocupar-se unicamente com ficar mais quatro anos no poder. Assim, deixa de tomar medidas antipáticas necessárias à nação e passa a trabalhar em regime de dedicação exclusiva para ser reeleito, principalmente a partir do segundo ano de governo. Torna-se candidato com mandato, avançando sobre o Orçamento como se fosse recurso de campanha. As aves de rapina do Congresso, obviamente, cobram um preço elevado por isso.  Criam dificuldades para vender facilidades, na forma de obstruções sistemáticas em votações relevantes, CPIs e pedidos de impeachment. Depois de levar o seu quinhão de dinheiro público, aderem. O fisiologismo e o corolário dele, a corrupção, sempre existiram, mas o seu coágulo mortal, o Centrão, só cresceu a ponto de entupir as artérias da democracia graças à emenda que constitucionalizou a reeleição.

Neste momento, portanto, Jair Bolsonaro só pensa em reeleger-se, esquecendo o que afirmou durante a campanha. Na crença de que os obstáculos policiais e políticos para sobreviver no Planalto foram superados, ele e os seus áulicos traçaram um plano. Eu o descrevi em O Antagonista:

Jair Bolsonaro elegeu-se com o discurso da Lava Jato e pretende reeleger-se com o discurso de Lula.

A nova CPMF sobre transações financeiras eletrônicas, proposta pelo governo, servirá para financiar uma versão turbinada do Bolsa Família, o Renda Brasil, e a desoneração da folha de pagamentos das empresas, para empregos de baixos salários. O objetivo é criar vagas para uma grande massa de trabalhadores sem qualificação e, assim, reduzir a percepção da miséria. O objetivo é criar o que se pode chamar de “nova classe D”.

A avaliação é que a nova CPMF, se passar, é um “imposto invisível” e só a classe média continuará a reclamar dela por algum tempo. O fato de ser um imposto cumulativo não incomoda ninguém da equipe econômica.

Um pedaço da classe média, acreditam integrantes do governo, preferirá automaticamente Bolsonaro a qualquer outro nome da esquerda, em 2022. Quanto à parte que se decepcionou moralmente com Bolsonaro, ela deverá ficar com Sergio Moro, não há jeito, mas não deverá fazer frente àquela que se juntará à massa beneficiada pelo Renda Brasil e a desoneração para criar empregos baratos. Moro amealhará votos, dizem, apenas entre o eleitorado “udenista” — que terá encolhido por causa da crise econômica causada pela pandemia. Crê-se também que o bombardeio da esquerda sobre o ex-ministro será capaz de beneficiar Bolsonaro na campanha do primeiro turno, ao erodir a imagem de Moro no eleitorado mais ao centro.

Para evitar maior sangria entre os eleitores da classe média preocupados com corrupção, o importante para Bolsonaro é que ações da Lava Jato represadas pela Justiça Eleitoral continuem a ocorrer de vez em quando, mas apenas como eco do passado, sem implicar novas frentes de investigação que poderiam estragar o acordão em Brasília.

A atuação desastrosa do presidente na pandemia será uma vaga lembrança em 2022, aposta-se, e largamente compensada pela ação na economia financiada pela nova CPMF. Ironicamente, a Covid-19 ajudará o atual inquilino do Planalto, ao proporcionar a criação de um imposto que representará uma injeção na veia de 120 bilhões de reais.

Esse é o plano para reeleger Bolsonaro.

Se conseguir aprovar a nova CPMF e não houver maiores solavancos até lá, Bolsonaro tem grande chance de dobrar a meta, como disse a centroavante trombadora Dilma Rousseff. Repetindo-me, ele foi eleito com o discurso da Lava Jato e pretende reeleger-se com o discurso de Lula. Até a sua fase paz e amor é uma cópia da do petista. Vez por outra, dará uma piscadela para a direita mais aguerrida, assim como fazia Lula com os seus aloprados ideológicos de esquerda. Ambos foram premidos pelas circunstâncias a amaciar a fala. Lula, para eleger-se presidente; Bolsonaro, por obra da prisão de Fabrício Queiroz e medo de implicações judiciais da sociopatia exercida livremente durante a pandemia (só o traço sociopático, aliás, o impede de fazer o teatro da comiseração, como seria necessário). O conselheiro Michel Temer provavelmente também lembrou Bolsonaro de como o marketing lulista havia funcionado e era preciso reprisá-lo. Encontrou ouvidos bem abertos. (Por sinal, os bolsonaristas deveriam pedir desculpas ao repórter Diego Amorim, que revelou que Temer estava aconselhando Bolsonaro e foi acusado de publicar fake news.)

A questão que urge é salvar as aparências liberais de Paulo Guedes na economia e evitar mais debandadas na sua equipe, apesar do contínuo torpedeamento das reformas que seriam feitas. Vale até o mau teatro da reunião desta quarta-feira. É preciso acalmar o mercado financeiro, na opinião tanto de bolsonaristas como de opositores ligados aos bancos.Talvez o pessoal da Faria Lima se contente com uma reforma administrativa para inglês ver e a privatização dos Correios, por exemplo. O único ativo que faz diferença para os políticos em relação à estatal é o seu fundo de previdência, o Postalis. Elevar o teto de gastos para parecer que não foi furado? Nada que não possa ser reconstruído com a ajuda dos carpinteiros habituais. Ao fim e ao cabo, Guedes prometeu fazer e acontecer para tirar Brasília das nossas costas e poderá entrar na história como o criador de mais impostos enfeixados às pressas como reforma tributária. A regra de ouro é que um presidente precisa do nosso dinheiro para conseguir o segundo mandato. Ponto.

Tal é o quadro neste triste agosto de 2020, 23 anos depois da emenda da reeleição. Lembre a data e vista luto. Obrigado, Fernando Henrique Cardoso.

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