MarioSabino

A solidão ainda mais solitária

21.08.20

Um amigo está com Covid-19. Foi internado com falta de ar, os pulmões tomados que estavam pelo vírus maldito. Ao que tudo indica, conseguirá escapar do “árbitro equânime de todas as misérias humanas”.

A internação o colocou naquela solidão ainda mais solitária das doenças infecciosas. Este é um ponto salientado por médicos e enfermeiros que continuam a fazer relatos na TV, para espectadores que já não querem mais ouvir: a tristeza de ver os doentes sozinhos, no mais completo desamparo familiar, sem um rosto conhecido que os console. Já não há mais nenhum rosto, aliás, apenas uma multidão de máscaras no baile hospitalar.

(Não quero deprimir ninguém, e eu mesmo não estou deprimido. Escrever sobre algo que emana tristeza não significa necessariamente que se é portador permanente ou ocasional de patologia. Muito já se falou sobre a associação imediata entre depressão e tristeza, como se todos tivéssemos a obrigação de ser felizes o tempo inteiro. Até crianças dizem que fulano “está deprimido”, em vez de dizer fulano “está triste”. Espanta-me.)

Compreendi nitidamente as falas de médicos e enfermeiros, ao ler a mensagem do meu amigo de que rezasse para que saísse do hospital. Além de preocupado com a sua saúde, fiquei muito compungido com a solidão na qual ele se viu enredado. Lembrei-me, então, das linhas que escrevi anos atrás, quando ainda morava em Paris. Ao relê-las, senti-me irmanado ao meu amigo por meio da reflexão, o melhor cimento. Irmanei-me no reconhecimento de que a nossa solidão de fundo é inevitável, não importa a nossa condição. O título dessas linhas é “Nada mais do que a verdade”. Convido o leitor a me acompanhar:

Morre-se sozinho, eis o truísmo que hoje recusamos a aceitar, expresso nos provérbios antigos, escavado na filosofia da aceitação da morte, esquecido na gaveta dos clichês, entre as cartas de amor amarelecidas, os primeiros traços dos filhos, as fotografias desbotadas de quem já não lembramos os nomes. O truísmo que nos espanta até a última linha de nosso epílogo, porque tentamos espantá-lo em meio às misérias neuróticas, às infelicidades do mundo, às originalidades da arte.

Morre-se sozinho quando se está cercado pela família ou o grande amigo não arreda o pé de nosso leito de morte. Morre-se sozinho quando se espalma a mão na espera vã do calor de outra mão ou quando a se tem apertada pela do filho, da mulher, do marido, do pai, da mãe ou da enfermeira contratada para cancelar do cotidiano alheio quem insiste em adiar o fim. A morte de quem dessas mãos carece não é mais solitária.

 Morre-se sozinho ao lado de Deus ou do lado ateu. Morre-se sozinho em casa. Em lençóis de algodão egípcio; em roupas de cama de algodão barato; deitado sobre colchões de espuma manchados. Morre-se sozinho em hospitais, sejam públicos, cujos mortos servem apenas para engrossar estatísticas, ou particulares, em que os moribundos também engordam a contabilidade. Morre-se sozinho nas mortes lentas, iniciadas por tumores contidos por alguns anos em sua fome permanente, ou nas fulminantes dos ataques cardíacos e derrames em que a sequela é só uma. Nos acidentes fatais, a solidão é comprimida pelo desespero. 

Morre-se sozinho quando se tem um amor ou não se tem. Quando se tem saudade de um amor, de dois, de três, ou dessa saudade já não guardamos mais lembrança (que é quando o amor morre de vez). Morre-se sozinho na lucidez ou na demência (talvez um pouco menos entre os fantasmas da demência). As causas da morte são várias, como descrevem os manuais médicos, ou bem poucas, como sintetizam os atestados de óbitos em que a precisão científica dá lugar à burocracia. Não há certificados para a solidão onipresente. 

Os mortos têm múltiplas biografias, mas a solidão da morte é a mesma para todos (o suicida tenta acentuá-la, o que o torna ainda mais patético). É por esse fato tão inescapável quanto a própria morte que se chora. É de nós mesmos que nos apiedamos quando o outro morre — não só porque morreremos, e sim porque também morreremos sós. E, no espetáculo da morte, entramos em agonia, que é simulacro daquela moribunda que já não chora, mas arfa e ronca diante de nós, seres já invisíveis, na sua tentativa de aspirar o ar cada vez mais rarefeito e na certeza de que somente pode aspirar ao vácuo. 

É para nos enganarmos sobre essa solidão que homenageamos os mortos recém-morridos. É para nos enganarmos que dizemos também ter morrido uma parte de nós com aquele que se foi. E, durante certo tempo, o visitamos em seu túmulo, e ele nos visita em nossos sonhos. E continuamos a celebrá-lo por contáveis anos, e com ele conversamos a intervalos que vão se espaçando até que o esquecemos em sua solidão post mortem. Em nossa solidão pré-morte. Morre-se sozinho, e da solidão dos mortos esquecemos, ou queremos esquecer, porque vivemos sozinhos, em que pesem as evidências em contrário.

Agora convido o leitor a dar um beijo em quem ama. Um beijo de adeus como todo beijo deve ser, mesmo os mais cotidianos.

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  1. Bom texto, em essência. Faço uma ressalva ao caracterizar como patético o suicida. O suicídio é uma condição extrema, insólita, frequentemente associada a enfermidades conhecidas, como a depressão ou a esquizofrenia. Também pode estar presente em outras situações, mas ainda assim parece mais válido não utilizar uma palavra que carrega esse tom pejorativo. Abraço fraterno.

  2. Rapaz!!! que mensagem forte e ao mesmo tempo super natural. Pensei! Somos semelhante a folha de uma árvore. Cumprimos nosso propósito. Caímos. Secamos. Ressecamos e viramos pó!. Parabéns! adorei seu texto.

  3. Nascemos sós. E morreremos sós. A certeza da nossa solidão deveria ser um acalanto, mas, ao contrário, nos aterroriza. Dela tentamos fugir no tempo compreendido entre esses dois marcos de nossa passagem por entre os vivos.

  4. Sr. Mario Sabino, não vou tecer comentário sobre o seu artigo, aliás eu o considero uma pessoa culta, apenas externar o meu desapreço por esta revista. Vocês perderam todo o viés independente, viés que me fez assinar esse semanário. Lamentavelmente, ele se tornou em mais um vendedor mercenário de notícias. O sr Diogo Mainardi, que acompanhei ao longo dos anos e vibrei com ele, e com a maioria dos brasileiros, quanto a anta comunista foi alijada do poder, está irreconhecível.

  5. Ainda que possam pesar críticas por parte de letrados para muitos de nós, parte essencial do povo, um texto bem construído, bem esclarecedor e com profundidade. Certamente bem melhor do que sínteses de pronunciamentos de personalidade muito conhecida e tão ignorante qual.

  6. "É de nós mesmos que nos apiedamos quando o outro morre": eu sempre tive essa mesma interpretação, choramos não a morte do outro mas a nossa futura e inevitável morte que nos é esfregada na cara a cada morte de alguém próximo.

  7. Mario, gosto à beça dos seus textos... sim, é por nós que choramos, mas não só porque também vamos sozinhos, mas por saudade, pelo nunca mais com o querido que morreu.

    1. Um texto doído mas tão verdadeiro. Reconheci muito dessas linhas. Obrigada!

  8. Texto magnífico. A um tempo verdadeiro, inafastável e compungente. "Morrer tão completamente Que um dia ao lerem o teu nome num papel Perguntem: "Quem foi?... Morrer mais completamente ainda, - Sem deixar sequer esse nome". A morte absoluta - Manuel Bandeira (fragmentos)...

  9. Palavras Cínicas. Título de um livro de um livro de Albino Forjaz de Sampaio. Esse é o problema do Jornalismo de hoje: o cara saca um mote e viaja por 360° e pronto ! Cumpriu sua empreitada semanal. Ao invés de ficar se repetindo com palavras diferentes talvez se saisse melhor se perscrutasse os limites da existência humana, sei lá. Mas abriu as portas para as próximas colunas: os gerânios morrem sozinhos e as cambaxirras morrem sozinhas e os gatos. Pareceu o Bonner repetindo, repetindo...

    1. Licença para retornar: morre-se sozinho (concordo que seja um truismo porque ninguém morre em substituição a outro, é intransferível) mesmo que seja instantaneamente junto com 180.000 pessoas, como em Hiroshima. Entretanto esse "sozinho" na nossa Língua diz respeito a estar ou não na presença de outras pessoas. Não tem a ver com a "qualidade" dessa presença. Êpa, me inclui fora desse tipo de psicologês....

  10. Excelente remédio para a falta de tempo e/ou inspiração. O arquivo , como remédio, é melhor que cloroquina, ainda mais com allure parisiense.

  11. Falar da morte com lirismo não é pra qualquer um ! Suas crônicas são as mais aguardadas por mim ! Parabéns , vc é F#$@!

  12. Lindo texto ! Em tempos bicudos como os nossos , lirismo pra falar da morte é um luxo ! Vc é fodão ! Fico esperando suas crônicas... e me dá vontade de ser seu amigo ! Aquele abraço

  13. Foi assim que eu convenci, mas só um pouco, minha mãe idosa de parar de sassaricar. Eu disse "mãe, se pegar o covid vc vai sozinha pro hospital, ficará lá sozinha pois ninguém poderá te visitar, se morrer vai morrer sozinha e nem no enterro a gente poderá ir. Agora a escolha é sua". Acho que bateu o medão, melhorou um pouco. Mas só um pouco. Coitadinha!

  14. É Vero: nascemos sós e morremos sós. E no meio, porque somos contraditoriamente ser gregários, nos colamos nos afetos para suportar essa verdade é ter quem nos lembre quando formos. Lindo Mário!

  15. MARIO, AMO SEUS TEXTOS. VOCÊ, MELHOR A CADA DIA. MEUS APLAUSOS, MEU RECONHECIMENTO, MINHA GRATIDÃO POR LER ALGO ESCRITO COM TANTA SENSIBILIDADE!!!

  16. Essa sensibilidade de ter a morte todos os dias esfregada em nossa cara, sensibilidade esta que muitos não tem. Dói mais a solidão ao morrer, do que a morte em si. abraços!

  17. Você tem uma sensibilidade absurda... fui pra lugares de solidão que nem sabia que existiam pra mim... Esse texto não deveria ser uma coluna restrita... tem que dar visibilidade pra isso! Me emocionei muito. Obrigada Mario ⚘

  18. A vida e a morte mistura a finitude do corpo com a imortalidade do espírito. A lógica não existe com a simplicidade da existência, somos passageiros nesta terra.

  19. Tocante e pungente.A consciência da morte,não aquela que se fala numa roda de amigos, mas aquela que te pesa numa noite de insonia,que teima em te amassar,essa é a que testará sua força para sair do desespero inicial até a aceitação final.É disso que você trata com maestria.me irmano na sua descrição e sinto fundo essa solidão.Abs

  20. Pontos de vista. Para mim, estar internado e assistido já é uma esperança e uma conquista. Alguns vão à Justiça para conseguir esse "direito" . Boa sorte para seu amigo.

  21. Semana que vem quero uma crônica alegrinha.Vc escreve muito bem; pensamentos mais positivos atraem melhores energias. Cuide-se bem.

  22. Claro como o sol de verão. Somos seres solitários a vagar em busca de um sentido para a vida. Seja ela alegre ou deprimida. Parabéns Mário!

  23. estou aqui lendo seu artigo na pausa do pós almoço do trabalho isolado na quarentena de uma sexta-feira, fria, chuvosa, observando o mar cinzento, na capital do rio, esperando a neve chegar... boa mário! solidão não é tristeza e nem causa depressão, porém é muito boa para refletir o que escreve, obrigado pela companhia!

  24. Se nós levarmos nossa vida sendo generosos, quando a hora da morte chegar (não importa com que idade), só a lembrança de atos generosos afastará a solidão. A verdadeira bondade, aquela que não quer nada em troca (vista mais em cachorros do que em humanos) não conhece a solidão.

  25. É existindo na vida de quem se gosta que nos despedimos diariamente deles. Não com esse objetivo, mas também, Sem que saibamos. E dm cada sorriso que se dá na vida, nele está um pedaço da alegria que seus amigos e parentes lhe causaram.

  26. Um coração solitário, toca no nosso. Cada palavra escrita é o testamento de nosso momento. Um tratado que nós incomoda cumprir. O medo do invisível, perdura no meio de tantos neons apagados. A escuridão não pode vencer a Luz. Esse dia de hoje é seu. Único. Escolha brindar a existência com a atitude mais importante: O AMOR. Ele é forte. Poderoso. É Luz. Deixe ele ser posseiro de seu CORAÇÃO. e assim sua ALMA canta, não importa a idade, FELIZ com o agora. Alegria Mario. Obrigado

  27. É o que somos , sós. Com o consolo de alguém por perto para beijar. E com alguma sorte , uns mais distantes. Receba meu beijo ,Mário.

    1. Interessante como os idosos - pessoal da faixa entre 60 e 80 e uns- têm um texto mto parecido, pela construção gramatical ou pela forma escorreita como escrevem. Demonstra que às gerações mais antigas mantém o bom habito da leitura e da afeição à "língua". Um contra ponto às costumeiras agressões verbais da tchurma mais modernosa. Tudo isso é visível. Alvaro Costa/df

  28. Caro Mário Sabino Não me importa sobre o que ou quem são objetos de seus textos, sempre me dão prazer ao lê-los!.Hoje se superou,porque tocou profundamente na realidade dos meus 78 anos! As lembranças de minhas viagens pelo mundo com o meu grande amor que já perdi. A minha Paris onde procurei refúgio na minha solidão; TOUT FINI.. Aprisionada,sem a presença física da família,aguardando o fim que será bem vindo!

  29. Já há uns tempos venho me exercitando na arte de "estar" só e não me "sentir" só. Estou me preparando para o inexorável e me fazendo boa companhia. É o que resta.

  30. como se fosse o último ... “Amou daquela vez como se fosse a última”. “E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir Deus lhe pague” .

  31. Somos sozinhos e solitários seja em vida e também na morte, apenas tentamos enganar a nós mesmos, assim somos nós os humanos.

  32. Perfeito Mário, voce é um excelente Poeta. É importante falarmos e sentirmos a morte, e a única certeza que temos : "A Lei da Impermanência". Obrigada por nos estimular a aproveitar a Vida.

  33. Fiquei comovido com o brilhante texto. Vou me permitir uma observação jocosa. Estou com 79 anos e sou do grupo de risco desta pandemia. Se por infelicidade eu me contaminar e adoecer, espero ter autorização de portar comigo o meu inocente i-phone durante todo o tratamento tenha o desfecho que tiver. Com ele, a solidão será mais suportável, tanto para mim quanto para minha mulher, filhos, netos e amigos queridos, com os quais poderei manter permanente e seguro contato.

    1. Sr. Roberto Bruzadin, que comentou sobre o encontro que teve com o Dr. Carlos Fernando Lima. >> Eu também conto com os cientistas. Nada de "cloroquinas" ou "vermífugos" do "astronauta brasileiro".

    2. Senhor Roberto já pensei a mesma coisa, a possibilidade de ver no mínimo a imagens dos nossos queridos mesmo se estiver impedida de conversar. Também reivindicaria o uso do meu rs.

    3. Sou Roberto Bruzadin, entrando na conversa do meu próprio comentário para dar um salve aos cientistas da moderna tecnologia que muito contribuem para uma vida melhor para todos nós.

  34. Beijo te com intençao de superar esta separaçao imposta por mascaras e distancias sociais. Beijo te para irmanar me no teu humano.

    1. Mario Sabino é sábio. Falar em morte, fico indignado com a politização do covido-19, milhares foram mortos nesta pandemia, e provavelmente antes de falacer, passaram pela solidão descrita por Mário Sabino, ou por covide19, ou por outras doenças que não o covide, mas o laudo foi por esta nefasta doença, mas as famílias foram impedidas de dar um sepultamento digno e despedir destes mortos pelo tal de protocolo, sem contar os que morreram sufocodos pelos os respiradores, pressupondo-se que ...

    2. Perdi recentemente 3 pessoas idosas mas muito próximas não por Covid ! E minha mãe está na fase de solidão demente! Cada vez mais sinto que morresse sozinho e somos sozinhos! Por mais que a gente encha de pessoas , amigos e atividades nosso percurso é solitário ! Viemos só e partiremos só ! Nós e nossa mente , lembranças dos ontens e ruminações do presente e futuro! Nestes a gente se agita e sacode tentando o contato na volta ao útero materno, só amor ou paixão mas sós!

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