As intermitências da liberdade de imprensa

21.08.20
André Marsiglia Santos

No dia seguinte ninguém morreu. Assim inicia o livro de Saramago “Intermitências da morte”, no qual fabula a suspensão da finitude por sete meses, ocasionando um tremendo desastre à organização da vida que apenas a morte, por mais paradoxal que pareça, proporciona.

No Brasil, soa cada vez mais familiar uma ideia de ordem aliada à oclusão da liberdade de imprensa, ordem encarnada em discursos autoritários e desatentos da organização democrática que apenas as dissonâncias proporcionadas pelo pensamento livre podem causar.

Diferentemente de Saramago, que ao incômodo do término da vida propôs a suspensão de meros sete meses, algumas autoridades públicas parecem cada vez mais à beira de pretender à liberdade de imprensa uma suspensão maior.

No outono passado, o Supremo Tribunal Federal rompeu para nunca mais o cordão umbilical da legalidade do inquérito 4781, chamado das fake news, com a censura imposta à Crusoé. Na época, a publicação se viu obrigada a tornar indisponível matéria jornalística de interesse público que revelava inconvenientes interesses privados de integrante da corte.

As irregularidades do inquérito e a inequivocidade da censura foram tão desbragadas que, desde o primeiro momento, ficou evidente que seriam necessárias algumas tantas e boas pirotecnias para que o STF se restabelecesse do embaraço que criou para si próprio.

Os erros procedimentais foram tratados com o salto triplo da interpretação – como dizia Putnam, quando a teoria entra em conflito com o fato, é quase irresistível desistir do fato – e o inquérito foi mantido.

Já a censura foi polidamente suavizada com a ordem recente para que fossem retiradas do bojo da investigação matérias de cunho informativo.

Foi o bastante para o STF receber aplausos de experientes juristas, que deduziram que às liberdades basta um gesto, um afago. Ledo engano. As liberdades de expressão e de imprensa se sustentam na coragem do enfrentamento árido e diário dos mais variados tipos de censura.

Como resultado, tem-se visto, no âmbito do mesmo inquérito, uma série de investigações e diligências pueris, que, até o momento, pouco ou nada apurou, mas muito mostrou da difícil convivência que algumas autoridades possuem com a divergência.

Nessa esteira, há poucas semanas, e pouco mais de um ano após o episódio em que foi censurada, a Crusoé denunciou estar sendo novamente investigada, no mesmo inquérito, por permitir a livre manifestação de seus leitores no espaço a eles reservado na caixa de comentários da publicação.

A tradicional seção do leitor, espaço mantido por todos os veículos jornalísticos para que seu público opine sobre os fatos publicados, passava agora, por mais absurdo que seja, a ser alvo de investigação da Procuradoria-Geral da República, com o aval do STF.

Não sendo o bastante, na última semana, a publicação seguiu sendo alvejada, dessa vez com uma decisão liminar do judiciário de Brasília, obtida pela deputada Bia Kicis, impondo que, em determinada reportagem veiculada pela revista, o nome dela fosse tarjado de preto, como era comum nos tempos insólitos da ditadura militar.

A investigação sem pé nem cabeça da PGR, espera-se, não prosperará. O Marco Civil da Internet é explícito ao isentar os veículos de comunicação de responsabilidade pela manifestação de leitores, e a Constituição Federal, muito antes da imprensa, já garantia como princípio democrático a livre expressão de quem quer que seja.

Também é esperado que a decisão constrangedora a favor da deputada seja cassada brevemente em segunda instância. No entanto, dessas investidas, ficam as feridas.

E a facilidade com que veículos de comunicação se tornam, sem nenhum esforço, vítimas de ataques ferozes de autoridades e instituições públicas importantes demonstra o grau de insegurança com que a liberdade de imprensa é atualmente exercida no país.

A consequência de não se enfrentar a censura com vigor, escancarando-a, faz brotar o próximo abuso, torna confortável ao abusador o exercício indevido de seu poder. A liberdade não tem dono. Somente ela pode se dizer dona de si. Ou essa é uma premissa constitucional, ou nossa Constituição não é nada.

André Marsiglia Santos é advogado especializado em liberdades de expressão e de imprensa e atua em defesa de Crusoé e de O Antagonista. É membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da OAB-SP e da Comissão de Mídia e Entretenimento do Instituto dos Advogados de São Paulo e sócio da Lourival J Santos Advogados

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  1. Estamos ainda, no pré-escolar da democracia. A liberdade de expressão, um dos frutos, como não poderia deixar de ser é também, relativa. Os ministros do STF defensores da democracia já pisaram nos calcanhares dela em diversas oportunidades. Se julgam acima de todos e de tudo.São divinos, maravilhosos.

  2. Não tendo como questionar ou desqualificar a critica5 de leitores COMO EU, o STF mostra sua verdadeira face, o que somente comprova o fato cristalino de ser composto por uma MAIORIA DE CANALHAS.

  3. Esses magistrados do STF vêm pisando na Cosntituicao na cara dura. Fazem com ela o que querem. Metade vê de um jeito, outros vêem de outro, depois, conforme o freguês, mudam o "sentir", No caso do tal inquérito foi constrangedora a conivência . A Constituição falhou ao deixar no ar até onde vão os poderes desse pessoal. Tá difícil!

  4. Texto coerente. Como bem exposto,as tentativas de tapar o que não se pode esconder,são reconhecidas manobras para se responder ao clamor dos que reclamam, sem enfrentar seriamente o problema. E sempre deixam precedentes e sequelas. Análise perfeita da questão!

  5. A PGR e o STF são covardes, não têm coragem de censurar artigos da revista. Investigam comentários dos leitores. Vão obrigar a revista a fornecer os dados dos leitores "atrevidos"? Mandarão prendê-los? Como diz minha mãe: esse povo está precisando de serviço. São covardes, ditadores de toga, nazistas, fascistas comunistas escondidos atrás de palavrório incompreensível (português misturado com latim, grego, alemão francês). Terei orgulho de ser investigada e punida. A causa é nobre

  6. Meus Queridos Repórteres da Crusoé! Vocês são os guerreiros do Bem, em defesa da justiça, que a a própria dita Justiça Formal não a faz. Com toda informação recebida,os eleitores com algum preparo sabe discernir quem é quem. A prova disso é o crescimento da Crusoé! A Crusoé faz a banda podre do nosso país Tremer!

  7. E, parece, o STF continuará sendo abastecido com gente desse calibre. Só Deus, mas não esse que vem sendo invocado recentemente.

  8. Esse é um assunto que deveria ser estampado na capa dessa revista ! Importantíssimo o que se passa nos ambientes togados que tem como objetivo cercear tolher proibir nossa liberdade!

  9. Vivemos a Era dos Extremos. Eric Hobsbawm já profetizava isso no final do século XX. O que será que ele enxergou que nós não tivemos capacidade de ver naquela época?

    1. Aproveito este espaço para comentar o julgamento do STF, do tal dossiê do Ministério da Justiça. Os ministros fazem um longo discursos, ás vezes, para justificar o injustificável. No julgamento do propalado dossiê do Ministro da Justiça, no meu entender, somente o voto do Ministro Marcos Aurélio de Melo, foi acertado, cujo suas justificativas, bem fundamentadas não houve pirotecnia, e demonstrou ter conhecimento da matéria. Não se governa um país sem iformações.

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