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Coincidências em espécie

Crusoé teve acesso, com exclusividade, à quebra do sigilo bancário de Flávio Bolsonaro. Os extratos mostram que muitos saques efetuados por Fabrício Queiroz coincidem com depósitos em dinheiro vivo nas contas do 01
21.08.20

Do crime mais comezinho praticado por políticos do chamado baixo clero aos sofisticados esquemas ilícitos comandados por figurões poderosos, a história ensina que o combate eficiente à corrupção parte de uma premissa básica mundialmente conhecida pela expressão em inglês “follow the money”. Foi justamente “seguindo o dinheiro” que os investigadores do Ministério Público do Rio de Janeiro descobriram que as transações atípicas de 1,2 milhão de reais identificadas pelo Coaf na conta de Fabrício Queiroz no período de um ano faziam dele mais do que um reles motorista do hoje senador Flávio Bolsonaro.

Para os investigadores, está mais do que evidente que o policial militar aposentado atuou como um arrecadador do esquema de rachid operado no antigo gabinete do filho 01 do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia Legislativa fluminense. Queiroz chegou a apresentar duas versões diferentes na tentativa de justificar a circulação em suas contas das milionárias somas de dinheiro. Primeiro, disse que arrecadava os recursos dos demais funcionários para fazer “rolo” com compra e venda de carros. Depois, alegou que recebia os valores dos colegas com o objetivo de contratar assessores externos para robustecer a estrutura de gabinete de Flávio, sem o conhecimento do então deputado estadual.

Nenhuma das justificativas convenceu os promotores do caso. Seguindo o rastro do dinheiro, como manda o receituário, os investigadores descobriram mais recentemente que, na verdade, Queiroz movimentou não apenas 1,2 milhão, mas 6,2 milhões de reais, o que o alçava a uma nova condição: de mero arrecadador a operador financeiro de um esquema de desvio de dinheiro público, sob as bênçãos da família Bolsonaro.

Parte das transações de Queiroz já é conhecida. É o caso dos 72 mil reais em cheques depositados pelo amigo pessoal e faz-tudo do presidente da República nas contas da primeira-dama Michelle Bolsonaro, conforme revelou Crusoé duas semanas atrás. Há ainda os pagamentos efetuados pelo PM para quitar mensalidades escolares das filhas de Flávio e do plano de saúde da família, além do repasse de 25 mil reais à mulher do senador, registrado na véspera da quitação de um imóvel.

Alan Santos/PRAlan Santos/PRA primeira-dama recebeu R$ 72 mil por meio de 21 cheques de Queiroz
Novos detalhes da relação entre o primogênito do presidente e Queiroz aparecem na quebra de sigilo bancário de Flávio Bolsonaro, à qual Crusoé teve acesso com exclusividade. Além do tráfego intenso de dinheiro em espécie, boa parte em depósitos fracionados, artimanha considerada pelos órgãos de fiscalização como uma forma de burlar as regras do Banco Central, os extratos mostram importantes coincidências entre os saques efetuados pelo ex-assessor e as entradas de dinheiro na conta do senador.

A partir do cruzamento das datas das retiradas de Queiroz em suas contas pessoais com os depósitos de um total de 474 mil reais em dinheiro vivo em favor de Flávio Bolsonaro, um levantamento feito por Crusoé nos dados bancários do filho 01 do presidente mostra que ao menos 185 mil reais coincidem. Ou seja: os saques das contas de Queiroz ocorrem em datas próximas de depósitos feitos nas contas de Flávio.

Foi o que ocorreu, por exemplo, em setembro de 2016. Naquele mês, Queiroz sacou 26 mil reais de sua conta-salário na Alerj. No total, foram identificadas cinco retiradas com valores de 4 mil a 7 mil reais entre os dias 5 e 13 de setembro. No mesmo mês, a partir do dia 22, Flávio Bolsonaro recebeu 14 depósitos fracionados ao longo de três dias que, somados, alcançam os mesmos 26 mil reais. O mesmo valor que saiu da conta bancária de Queiroz até o dia 13 de setembro caiu na conta de Flávio Bolsonaro entre os dias 22 e 24 do mesmo mês por meio de depósitos em espécie.

Em março de 2017, o expediente se repetiu – com uma irrisória diferença. Entre os dias 28 e 31, o ex-assessor sacou de suas contas pessoais um total de 8,7 mil reais. No dia 31, data do último saque de Queiroz, a conta de Flávio recebeu um depósito de 8,6 mil reais em dinheiro – desta vez, apenas 100 reais a menos do que o valor total sacado pelo policial militar aposentado e amigo do presidente da República.

Em outros momentos, o procedimento adotado pela dupla Queiroz e Flávio foi semelhante, com o então assessor sacando determinados valores de suas contas e quantias muito parecidas – nem sempre exatas, mas nunca maiores do que as retiradas — sendo depositadas de maneira fracionada e em dinheiro vivo nas contas relacionadas ao senador. Entre dezembro de 2016 e janeiro de 2017, por exemplo, Queiroz sacou 58 mil reais. No mesmo período, 51,5 mil reais irrigaram as contas associadas a Flávio Bolsonaro por meio de depósitos em espécie.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisLoja de chocolates de Flávio recebeu R$ 1,7 milhão em dinheiro vivo
Entre 13 e 22 de dezembro daquele ano, Queiroz efetuou doze saques, dez deles de 5 mil reais cada. No dia da última retirada, 10 mil reais foram depositados em dinheiro na conta da loja da Kopenhagen em um shopping na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, pertencente a Flávio — o Ministério Público suspeita que a loja tenha sido utilizada para lavar dinheiro desviado do esquema de rachid na Assembleia Legislativa. Em 23 de dezembro de 2016, a conta pessoal de Flávio recebeu outros quatro depósitos fracionados de 2 mil reais cada.

Dias depois, já em janeiro de 2017, outros dezessete depósitos fracionados foram parar na conta de Flávio, sendo dezesseis de 2 mil reais cada e um de 1,5 mil. Já entre os dias 18 e 21 de dezembro de 2015, valores idênticos aos sacados por Queiroz caíram na conta da loja da Kopenhagen de forma fracionada. Nesse período, Queiroz fez dois saques de 5 mil. Na conta da loja de chocolates, foram efetuados cinco depósitos de 2 mil reais nos dias 18, 21 (dois depósitos), 22 e 23 do mesmo mês.

Ao todo, segundo os extratos, a franquia da Kopenhagen do filho de Jair Bolsonaro recebeu 1,7 milhão de reais em depósitos em dinheiro ao longo de quatro anos, valor que chamou a atenção dos investigadores. Os promotores entendem que os depósitos em espécie nas contas da loja podem de fato ter origem ilícita uma vez que há uma “coincidência de os depósitos em dinheiro” ocorrerem no mesmo “período em que Fabrício Queiroz arrecadava parte dos salários dos assessores da Alerj e tinha disponibilidade de papel moeda”. A defesa de Flávio Bolsonaro nega qualquer irregularidade nas contas do senador e afirma que todas as informações sobre o caso já foram prestadas ao Ministério Público.

As volumosas transações em dinheiro estão entre os principais fatores elencados pelos promotores como indícios de ilícitos praticados por Queiroz no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Dos 6,2 milhões de reais recebidos pelo ex-assessor em sua conta, apenas 1,6 milhão vem de pagamentos de salários. Para o MP, a “predominância de transações em dinheiro vivo na conta” do ex-assessor de Flávio “não decorre de acidente, nem de mera coincidência”, mas de “opção deliberada do operador financeiro, com o propósito específico de tentar não deixar rastros no sistema financeiro acerca da origem e do destino dos recursos que transitaram pela conta de sua titularidade”.

Ainda segundo os promotores, Queiroz “apropriava-se de parte dos valores ilícitos recolhidos para depois entregar aos destinatários finais os recursos em espécie, diretamente ou mediante depósitos fracionados nas contas dos destinatários, a fim de dificultar o rastreamento do destino do dinheiro”.

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