Marcelo Gonçalves/FolhapressCom as bênçãos de Aras e Bolsonaro, o advogado Frederick Wassef foi à sede da PGR para tratar da delação da JBS

Ligações perigosas

Como o presidente Jair Bolsonaro, Augusto Aras e Frederick Wassef se envolveram em uma operação de bastidores em favor da JBS, que pagou 9 milhões de reais ao advogado do presidente
21.08.20

Quando as operações de combate à corrupção começaram a alcançar os negócios da JBS, a gigante mundial de alimentos reforçou seu departamento jurídico contratando algumas das maiores bancas criminais do país. Foi por meio de um time de quinze advogados experimentados nas cortes superiores que a J&F, a holding controlada pelos irmãos Joesley e Wesley Batista e dona da JBS, fechou o maior acordo de colaboração premiada da história, em 2017, no qual admitiu ter subornado quase dois mil políticos e se comprometeu a pagar 10,3 bilhões de reais em multa. Mas o acerto homologado pelo Supremo que garantia a liberdade dos empresários e o fim das investigações contra o grupo logo caiu na berlinda. A própria Procuradoria-Geral da República, signatária do acordo, passou a defender sua rescisão porque os irmãos Batista haviam omitido fatos criminosos relevantes em seus depoimentos e continuaram a praticar delitos no mercado financeiro. A novela envolvendo o imbróglio da delação da JBS se arrasta até hoje, mas ganhou um capítulo explosivo nesta semana com a entrada em cena de um criminalista que só ganhou envergadura após se tornar advogado do clã Bolsonaro.

Conforme Crusoé revelou na última quarta-feira, 19, o advogado Frederick Wassef visitou a PGR no fim do ano passado para tratar da delação da JBS, sem nenhuma procuração da empresa. Detalhe: a visita, informal, foi marcada pelo próprio procurador-geral, Augusto Aras, a pedido do presidente Jair Bolsonaro. A reunião se deu em 4 de outubro, quando o processo do polêmico acordo de colaboração estava na Procuradoria-Geral. Wassef foi conversar com José Adonis Callou de Araújo Sá, que tinha acabado de ser nomeado coordenador da equipe que toca os inquéritos e processos relacionados à Lava Jato. Pouco antes do encontro, o próprio Aras ligou para Adonis dizendo que Bolsonaro lhe havia feito o pedido para que Wassef fosse recebido para uma conversa com o responsável pelos casos da operação de combate à corrupção. A audiência foi marcada, como queriam o procurador-geral e o presidente. Horas antes do encontro, Adonis se surpreendeu com uma ligação do próprio Bolsonaro. O presidente não entrou em detalhes sobre o que seria tratado pelo advogado, mas fez questão de demonstrar seu contentamento com a disposição do procurador em atender Wassef.

O procurador se surpreendeu com o telefonema do presidente, algo completamente incomum na hierarquia do Ministério Público Federal. Àquela altura, embora já tivesse recebido o pedido de Aras para atender Wassef, Adonis nem sequer sabia que o advogado era também defensor do próprio presidente e de seu filho 01, o senador Flávio Bolsonaro. A mistura de interesses ainda não estava tão clara para o então coordenador da Lava Jato. A conversa se deu no próprio gabinete de Adonis, no edifício-sede da PGR, e contou com a participação de uma das integrantes do grupo de trabalho, a procuradora Maria Clara Noleto. Sentindo-se à vontade, Wassef pontificou sobre as vantagens do acordo de delação da JBS antes de dizer que seria uma injustiça anulá-lo. A conversa foi logo interrompida quando os procuradores perguntaram se ele tinha procuração para tratar dos interesses da JBS. O advogado respondeu que não naquele momento, mas disse que poderia apresentar o documento depois. O encontro, então, foi encerrado. Os procuradores, já sentindo o mau cheiro da situação, entenderam que era melhor parar por ali.

ReproduçãoReproduçãoO subprocurador José Adonis recebeu uma ligação de Bolsonaro horas antes da audiência com Wassef
A PGR, àquela altura, defendia oficialmente a rescisão do acordo, algo que aterroriza os irmãos Batista em razão do risco de eles serem punidos nos processos a que respondem — com a possibilidade, inclusive, de voltarem para a prisão. Rodrigo Janot, responsável por fechar o acordo, e a sucessora dele, Raquel Dodge, defenderam a anulação dos benefícios aos delatores, por causa de polêmicas diversas, como a descoberta de que um dos procuradores que representaram a PGR na negociação vinha atuando também em parceria com um dos escritórios que defendiam a companhia. O mesmo entendimento foi mantido pela gestão Aras, que assumiu o comando do MPF no fim de setembro do ano passado. Em novembro, o próprio procurador-geral indicado por Bolsonaro chegou a defender a rescisão nas alegações finais do processo que corre no STF, sob a relatoria do ministro Edson Fachin. Curiosamente, depois das gestões de Wassef junto ao gabinete de Aras, a PGR passou a considerar a possibilidade de rever sua posição. Começaram, então, tratativas no sentido de repactuar o acordo com a JBS.

O julgamento da anulação da delação no STF chegou ser pautado para o último dia 17 de junho, mas acabou adiado. A PGR havia reaberto as negociações com a companhia, que agora são conduzidas pela subprocuradora-geral Lindôra Araújo, aliada de Aras que assumiu o lugar de Adonis no grupo de trabalho da Lava Jato — ele deixou o GT em janeiro, alegando falta de autonomia para atuar. A Crusoé, Lindôra afirmou que não conhece Wassef. Em nota, Aras negou ter recebido um pedido de Bolsonaro para receber o advogado. Na última manifestação enviada ao Supremo, em junho, a Procuradoria-Geral concordou com o pedido feito pelos advogados formalmente escalados pela JBS para que o julgamento sobre a rescisão ou não da delação só ocorra no plenário em sessão presencial — ou seja, somente após a pandemia.

Os defensores oficiais da empresa dos irmãos Batista disseram que não tinham conhecimento de “qualquer tratativa ou ingerência” de Frederick Wassef nas negociações de repactuação da delação premiada de executivos do grupo. O principal deles, André Callegari, disse que sabia apenas que o homem de confiança do clã Bolsonaro atua em “inquéritos da JBS”, sem especificar quais. Indagada formalmente na quarta-feira sobre a atuação de Wassef em favor da empresa, a JBS demorou um dia para admitir que o advogado de Bolsonaro era mesmo contratado pela companhia. Em nota, informou que ele atuava em “inquéritos na esfera policial”. Os detalhes do contrato, disse a empresa, não poderiam ser divulgados porque estão “protegidos por sigilo legal”.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéManobra diversionista: Aras, em vez de explicar sua participação, anunciou uma abertura de investigação para apurar os pagamentos da JBS a Wassef
Crusoé vinha apurando havia meses a relação de Wassef com a JBS e sua atuação na PGR em favor da companhia. Em conversas reservadas, todas as partes vinham negando enfaticamente que houvesse a relação. A admissão só veio após a revelação, ainda na quarta-feira, de que o advogado recebeu 9 milhões de reais do frigorífico dos irmãos Batista, entre os anos de 2015 e 2020. Os registros dos pagamentos constam de um relatório do Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, enviado aos promotores do Ministério Público do Rio de Janeiro que investigam a relação de Wassef com Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro e amigo do presidente da República. Queiroz foi preso em junho em uma casa de Wassef em Atibaia, no interior de São Paulo. Segundo os promotores, o advogado ajudou a esconder Queiroz no último ano e recebeu do ex-assessor e de familiares dele o apelido de “Anjo”.

Wassef é amigo do advogado Francisco de Assis, ex-diretor jurídico da JBS e um dos delatores da companhia que estão em perigo com a possibilidade de rescisão do acordo com a PGR. Considerado um importante operador dos irmãos Batista e com enorme trânsito com magistrados, inclusive de cortes superiores, Francisco teve que se afastar formalmente da função em 2017, à época da delação. Por força do acordo de colaboração, o grupo foi obrigado a reestruturar o setor de compliance. O diretor nomeado para assumir o comando da área à época, Emir Calluf Filho, pediu demissão do cargo em abril deste ano, após desentendimentos com Francisco de Assis. Os pagamentos da JBS para Wassef eram desconhecidos pelo setor de compliance da holding, o que a empresa diz ser natural por se tratar de uma estrutura administrativa distinta da JBS. Francisco, o advogado-delator e homem de confiança da família Batista, segue dando as cartas no departamento jurídico.

Nesta quinta, em meio à repercussão do caso, Aras soltou uma nota em que, curiosamente, conseguiu tomar as rédeas da narrativa. Em vez de explicar seu papel e o do presidente Jair Bolsonaro na abertura de portas para Wassef na PGR, ele anunciou a abertura de uma investigação para apurar os pagamentos da JBS para o advogado e a possibilidade de os delatores terem omitido informações à Procuradoria. O Palácio do Planalto não se manifestou. Juristas ouvidos por Crusoé avaliam que a atuação de Jair Bolsonaro em favor de Wassef junto a Augusto Aras pode configurar crime. “Isso é gravíssimo. Isso é tráfico de influência. É a interferência do presidente em um caso judicial de grande relevo”, disse um criminalista, que falou sob condição de anonimato. Outro jurista experimentado, também falando sob reserva, afirmou que Bolsonaro pode ter incorrido no crime de advocacia administrativa “pelo simples fato de o presidente da República ligar para o PGR que ele nomeou e falar ‘receba fulano’, tendo uma condição hierárquica inquestionável como presidente”.

O sempre eloquente Frederick Wassef correu para ajustar sua versão. Em julho, quando Crusoé o indagou sobre o tema, ele disse se tratar de mais uma “fake news”. “Vocês estão me arrumando cliente que não existe”, respondeu. Ele também negou que estivesse atuando em favor da JBS junto à PGR de Augusto Aras: “Não tem procedência. E eu vou te dizer mais: eu tenho zero de relacionamento na PGR, zero “, completou o advogado. Por tudo o que se sabe agora, do que Wassef disse na ocasião, só uma parte parece conter algum vestígio de verdade: aquela em que ele fala que não tinha relacionamento na PGR. Talvez isso explique uma das passagens mais graves deste novo escândalo: o fato de ele ter precisado que o presidente Jair Bolsonaro intercedesse em seu favor junto a Augusto Aras. A despeito do silêncio de alguns e das respostas espertas de outros até aqui, essa é uma história que ainda precisa ser muito bem explicada pelos envolvidos. Há, porém, um empecilho que parece incontornável: o procurador-geral da República, que deveria exigir as respostas, está postado bem no meio da trama.

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