RuyGoiaba

Mitos e lendas da esquerda brasileira

21.08.20

Minha coluna da semana passada, “Disque M para Salim Mattar”, mencionava meio en passant esse novíssimo personagem do folclore que é o liberal à brasileira: aquele sujeito de camisa polo, sapatênis e gel no cabelo dizendo “deixa que o mercado cuida”. A verdade é que o Bananão tem hoje um elenco muito mais rico de seres fantásticos sem existência comprovada —e isso em todo o espectro ideológico. É fácil encontrar à direita, por exemplo, além dos tradicionalíssimos Curupira e Mula sem Cabeça, A Cloroquina Mágica e o Mito Muito Macho Mesmo (nas redes sociais; fora delas, não paga nem flexão direito).

Este texto, porém, será dedicado aos animais fantásticos que habitam a outra ponta da ferradura: os seres e ideias que são os gnomos e duendes preferidos daquela esquerda esclarecida que acha cafona acreditar em duendes e gnomos. E não é só a autonomeada “alma mais honesta do Brasil”, não: a fauna é variada e, dependendo do crente, resiste a overdoses de realidade. Vamos às lendas:

– O Nordeste que resiste

Só para deixar claro de saída: sudestino não tem moral NENHUMA para apontar o dedo para as más escolhas dos outros, e a geleia geral do Bananão é a mesma em toda parte. Dito isso, volta e meia a esquerda brasileira joga uma região muito diversa no balaio de uma espécie de “preconceito positivo”: é o “Nordeste que resiste”, a última trincheira da luta contra o neofascismo, um misto de filhos de Lampião com habitantes de Bacurau na defesa do verdadeiro Brasil. (Nem parece que a turma votava na Arena até, sei lá, anteontem —nem que legou ao país luminares do progressismo como Sarney, ACM e Renan Calheiros.)

Deve ter sido bem chato para esse pessoal ler a pesquisa Datafolha divulgada na semana passada e constatar que, no Nordeste, a aprovação da Encarnação do Mal subiu nada menos que 13 pontos percentuais. E, no entanto, nada mais esperado como efeito do coronavoucher de 600 reais: o que se acreditava ser crença no Luiz Inácio Redentor dos Pobres era só fidelidade ao populista de ontem, em aparente processo de substituição pela fé no populista de hoje.

– O pobre burro de direita

Atribuem a Tim Maia aquela frase sobre o Brasil ser o único país em que “prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita”. Sempre achei essa uma opinião de quem nunca, em toda a sua vida, parou para conversar com um pobre de verdade, além de talvez não conhecer muito bem as outras categorias profissionais citadas —o que certamente não era o caso de Tim. Pois bem, a BBC Brasil ouviu a cientista social Esther Solano sobre o aumento da popularidade de Jair Bolsonaro na referida pesquisa Datafolha e ela disse o que deveria ser óbvio: o discurso de que pobre de direita é burro “é claramente arrogante, preconceituoso e uma falta de entendimento e de empatia com uma situação dramática que grande parte da população passa”.

“Para quem tem fome, a ideologia está muito longe”, acrescentou Esther. Se você não tem o que comer e alguém lhe dá comida, você não pergunta se é “de esquerda” ou “de direita” antes de engolir —é uma verdade básica de que o próprio Lula tinha conhecimento, mas parece escapar a certa esquerda que faz três refeições todo dia. Claro que há todo um debate sobre o populismo (que eu mesmo mencionei ali em cima) e o clientelismo. Mas não há nada de “burro”, em si, no voto definido pelo bolso ou pelo estômago: é apenas sobrevivência.

– O povo progressista

Essa lenda é irmã siamesa da anterior e uma fantasia razoavelmente comum na classe média dita ilustrada. E, como as outras, não resiste aos fatos: qualquer pesquisa de comportamento no Brasil, como as várias que o Datafolha fez ao longo dos anos, vai mostrar que posições associadas ao conservadorismo, como apoio à pena de morte e rejeição a casamento de homossexuais, predominam nos estratos de menor renda e escolaridade —e diminuem à medida que se sobe na pirâmide. O povo é majoritariamente “de direita” e fortemente religioso: vê-lo como “progressista” é, de novo, coisa de quem prefere acreditar no pobre idealizado dos discursos da esquerda bem nutrida a lidar com pobres reais. (Lembre-se, a esse propósito, o mal-estar que Mano Brown provocou entre petistas com seu discurso no final da campanha de Fernando Haddad, em 2018. “Se não está falando a língua do povo, vai perder mesmo, certo?” E perdeu.)

– A superioridade moral da esquerda

Esse é talvez o mais indestrutível dos mitos —ainda que os recordes de grotesco batidos pela direita no Bananão todo dia ajudem. Não importam as ditaduras, nem os fracassos econômicos e políticos, muito menos o roubo de bilhões: ser de esquerda é se conceder uma licença irrevogável para julgar os vivos e os mortos de um ponto de vista ainda mais privilegiado que o de Jesus Cristo (ninguém mandou Ele se sentar à DIREITA de Deus pai todo-poderoso, afinal). Tudo fracassou, mas o nosso ideal não morre, a luta continua: no pasarán.

Acho bonito esse lance dos ideais que não morrem e tal e coisa, mas meio desagradável que esse alinhamento convicto com o lado do Bem justifique qualquer coisa. Qualquer mesmo: já vi, ao vivo e em redes sociais, pessoas sendo racistas, sexistas, misóginas, homofóbicas e crendo sinceramente que a carteirinha de “progressista” lhes dá passe livre para não apenas ser assim como apontar o dedo para os outros. Sem falar no autoritarismo que transformou coisas como “lugar de fala” de simples constatação sensata —é óbvio, por exemplo, que uma pessoa negra vai ter mais elementos para falar de discriminação racial que uma branca— em ferramenta de interdição do debate.

Falta ao Brasil um Câmara Cascudo que atualize o Dicionário do Folclore Brasileiro com todas essas novas lendas. Se bem que ele talvez dê graças a Deus de já estar morto e não precisar se dedicar a essa empreitada interminável.

*

A GOIABICE DA SEMANA

Nesta semana, o foco da goiabice não é Jair Bolsonaro praticando levantamento de anão em Sergipe, e sim os veículos noticiando que o presidente “se enganou” —achou que estava erguendo uma criança. É claro que ele sabia que era um anão: fez, inclusive, a mesmíssima coisa na Bahia no ano passado. A esta altura, não entendo qual é a surpresa em ver Bolsonaro usar a Presidência para brincar mais uma vez de Pânico na TV. Elect a clown, expect a circus.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisPelo menos Bolsonaro não ofereceu cloroquina para o anão, só para as emas

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