Rosinei Coutinho/SCO/STFO ministro deixa a presidência do Supremo Tribunal Federal na semana que vem

Tchau, Toffoli

Liminares controversas, proximidade excessiva com a política e a marca indelével da censura: um retrato da pior presidência da história do Supremo Tribunal Federal
04.09.20

José Antonio Dias Toffoli, o ministro mais jovem da história a assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, entrega no próximo dia 10 ao colega Luiz Fux o comando de um tribunal desgastado junto à opinião pública. Não apenas por decisões que ele próprio assinou, algumas resgatando entendimentos já ultrapassados que salvaram o futuro de companheiros que o colocaram no tribunal, mas também pela reação desproporcional a notícias e opiniões críticas à corte, muitas delas provenientes das falanges bolsonaristas. Hoje com 52 anos, Toffoli assumiu o comando do STF em setembro de 2018 pregando “harmonia” e invocando o papel de “mediador” dos conflitos da sociedade, mas deixa como herança um pesado passivo, representado por um inquérito sem fim, que transformou a corte em polícia e censora, a pretexto de defender a instituição de ofensas, ameaças e fake news.

Em seu discurso de posse, o ministro recorreu à filósofa alemã Hannah Arendt para enaltecer a democracia e combater o totalitarismo. Àquela altura, a Lava Jato estava no auge, escancarando a banalidade do mal da corrupção brasileira e tentando romper um padrão que deforma a democracia e perpetua projetos de poder. Pois foi justamente na gestão de Toffoli que o Supremo reagiu para impor travas à operação. Em dois anos, foram três golpes capitais. Caiu o entendimento que permitia a prisão de réus após condenação em segunda instância, permitindo a soltura de condenados na Lava Jato, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-ministro José Dirceu. Processos envolvendo crimes comuns, como corrupção e lavagem de dinheiro, e que guardavam relação com campanhas foram transferidos para a Justiça Eleitoral. A corte também decidiu que réus delatados devem ser ouvidos depois dos delatores, o que resultou na anulação de condenações. “Se não fosse este Supremo Tribunal Federal, não haveria combate à corrupção no Brasil”, bradou Toffoli, após proferir seu voto no julgamento que sacramentou esta última decisão, em outubro de 2019.

As decisões beneficiaram, entre outros, políticos que ajudaram Toffoli a ascender na carreira. Advogado nascido em Marília, no interior de São Paulo, o ministro trabalhou como assessor em gabinetes petistas na Assembleia Legislativa de São Paulo e na Câmara dos Deputados na década de 1990, quando tentou tornar-se juiz por meio de concurso público. Foi reprovado duas vezes. Toffoli se especializou em direito eleitoral na função de advogado do PT. Quando Lula chegou ao poder, em 2003, ele se transferiu para Brasília. Foram mais de dois anos assessorando José Dirceu na Casa Civil e, depois, defendendo o governo petista como advogado-geral da União.

No meio jurídico, Toffoli é visto como o ministro mais político do Supremo – e sua passagem pela presidência do tribunal acentuou essa percepção. Os primeiros sinais vieram logo na largada, quando ele propôs um “pacto” entre os três Poderes e se dispôs a exercer o papel de “moderador” no tumultuado cenário nacional. “Ao se apresentar como poder moderador, ele (Toffoli) mostra uma absoluta ignorância da Constituição, porque poder moderador se aplica a monarquias constitucionais e não em uma República como o Brasil. Ele coloca como se o Supremo fosse um juiz em audiência de conciliação em primeiro grau. Não existe isso. Com essas posições políticas, ele assume as fragilidades de formação jurídica, mostra que ainda não percebeu o que é ser juiz. Atua como um político a fazer cortesias com poderosos e potentes”, afirma o jurista Walter Maierovitch, que exerceu a magistratura por 35 anos.

U.Dettmar/SCO/STFU.Dettmar/SCO/STFCom Lula na posse, observado pela mulher, Roberta: afinidade com o mundo da política
O período foi farto nos gestos de cortesia com o mundo da política. Além da participação em agendas do presidente Jair Bolsonaro para divulgar programas do governo e almoços com vários ministros da Esplanada, só nos últimos doze meses Toffoli recebeu mais de uma centena de deputados, senadores, governadores, ex-parlamentares e dirigentes partidários em seu gabinete. Na lista estão figuras como o deputado Paulinho da Força, do Solidariedade, o senador Ciro Nogueira, do Progressistas, e o Pastor Everaldo, do PSC, todos alvos de investigação ou denunciados por corrupção — este último, por sinal, está preso.

Decisões de Toffoli agradaram a políticos enrolados com a Justiça, incluindo os novos ocupantes do poder. Bolsonaro, que antes o chamava de ministro petista, passou a elogiá-lo e a ouvi-lo, em uma aproximação que começou ainda antes da posse do presidente, com a escolha do general Fernando Azevedo e Silva para ser o ministro da Defesa. Até então, Azevedo era assessor de Toffoli no Supremo. Iniciado o governo Bolsonaro, ele passou a funcionar como um elo entre o Planalto e a corte.

É claro que decisões de um juiz do Supremo não se guiam por conveniências políticas – nem deveriam. Mas Bolsonaro não tem do que reclamar do ministro que outrora chamava de petista. Por meio de uma liminar, Toffoli suspendeu por mais de quatro meses a investigação do “rachid” no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio, em razão do compartilhamento de dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, e da Receita Federal com o Ministério Público. A decisão, assinada durante o recesso de julho do ano passado, paralisou mais de mil investigações em todo o país. Três semanas antes, o Fisco havia cobrado explicações de empresas que contrataram os serviços do escritório de advocacia da mulher do ministro, Roberta Rangel.

A decisão que atendeu os anseios do filho 01 do presidente Bolsonaro pegou mal, inclusive entre os colegas de toga. No fim de novembro, o caso do compartilhamento de dados do Coaf foi levado ao plenário, e Toffoli sofreu uma fragorosa derrota. Quando oito ministros já haviam se manifestado contra a liminar de Toffoli, o próprio presidente da corte decidiu mudar seu voto. Na ocasião, alguns ministros que costumam ser mais comedidos não conseguiram se conter. “Tem uma pergunta mais fácil?”, disse Edson Fachin ao ser indagado por jornalistas sobre o confuso voto de Toffoli. Luís Roberto Barroso foi ainda mais irônico, dizendo que era preciso “chamar um professor de javanês” para interpretar a mudança de entendimento do colega.

Romério Cunha/Casa CivilRomério Cunha/Casa CivilAlexandre de Moraes foi incumbido por Toffoli de tocar o inquérito do fim do mundo
“Nesses dois anos como presidente, o ministro Toffoli tomou várias medidas graves sem comunicar o plenário. Esse tipo de expediente só deveria ser usado para casos urgentes, com danos irreparáveis. O caso do Coaf, no qual ele mudou o voto de forma envergonhada, foi de uma gravidade que em qualquer país sério daria o impeachment dele”, afirma Maierovitch.

Embora o chefe do Supremo tenha a prerrogativa de decidir quando e quais processos serão levados a julgamento no plenário, é por meio das decisões monocráticas, como foi a do Coaf, que ele exibe seu poder de forma mais direta. Nos últimos 15 anos, o rol de procedimentos que podem ser analisados e decididos individualmente pelo presidente do STF só cresceu, incluindo recursos que suspendem processos e habeas corpus que libertam presos. Isso ocorre com maior frequência durante o período de plantão judiciário, em janeiro e julho, quando todas os casos vão para análise da presidência. Um levantamento feito pelo Supremo em Números, projeto da Escola de Direito da FGV do Rio de Janeiro, mostra que entre os últimos oito presidentes, Toffoli foi o segundo que mais proferiu decisões monocráticas – ele fica atrás apenas da sua antecessora, Cármen Lúcia. Foram 102 despachos diários, na média. Só nos meses de plantão judiciário o ministro proferiu 1,1 mil decisões.

Para o jurista Joaquim Falcão, professor titular de Direito Constitucional da FGV do Rio, há uma “concentração de poder” demasiada na figura do presidente do Supremo. Além disso, ele enxerga excessos no que chama de “plantonismo” para definir a profusão de decisões monocráticas durante os plantões judiciários. As consequências desses problemas, por óbvio, variam de acordo com o perfil de quem está com a caneta. Para Falcão, o STF se divide em duas alas: a dos ministros institucionais, mais técnicos e imunes aos vírus da política, e a dos ministros de conjuntura, que rompem a neutralidade e atuam de forma estratégica conforme as circunstâncias. “Esse modelo de conjuntura foi a prioridade do presidente Toffoli, que colocou em jogo a impessoalidade e a neutralidade, extrapolando os limites dos Três Poderes. A função do ministro é dizer se aquilo é constitucional ou não e não fazer acordos com o governo, se encontrar com presidente para discutir pautas e estratégias”, afirma.

Além de Flávio Bolsonaro, estão entre os figurões da política beneficiados pelas decisões monocráticas de Toffoli o governador do Rio, Wilson Witzel, do PSC, que conseguiu uma decisão favorável para protelar o processo de impeachment na Assembleia Legislativa fluminense, e o senador José Serra, do PSDB, que teve duas investigações suspensas pelo ministro. Ambas as decisões ocorreram no último plantão judiciário.

Enquanto decidia sobre os pleitos judiciais de políticos enrolados, em outra frente Toffoli não poupava tinta para fustigar a Lava Jato. Foi, aliás, a revelação do apelido dele nas mensagens internas trocadas por Marcelo Odebrecht com executivos da empreiteira que levaram o ministro Alexandre de Moraes a censurar Crusoé e O Antagonista em abril do ano passado, no famigerado inquérito do fim do mundo. O pedido para que fossem adotadas providências em relação à reportagem foi feito a Alexandre pelo próprio Toffoli, por mensagem de texto. O inquérito havia sido instaurado de ofício por Toffoli. Alexandre havia sido escolhido para conduzir o inquérito por Toffoli.

Nelson Jr/SCO/STFNelson Jr/SCO/STFA chegada de Fux traz a expectativa de um freio de arrumação
O inquérito, que tem partes mantidas até hoje em segredo, empilha medidas polêmicas. De instrumento pensado inicialmente para conter eventuais arroubos do projeto de poder bolsonarista, virou um buraco sem fundo repleto de decisões que afrontam o texto constitucional, aquele mesmo que o Supremo deveria guardar. Como no Brasil são as circunstâncias que mandam, o procedimento acabou ganhando a chancela do plenário – ante a franca campanha da militância contra a corte àquela altura, reconhecer os excessos da apuração secreta significaria se curvar aos ataques.

Em seu último plantão como presidente do Supremo, Toffoli despachou mais um torpedo que atingiu em cheio a Lava Jato. Atendendo a um polêmico pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, ele determinou que forças-tarefas da operação enviassem todas as suas bases de dados, incluindo informações sigilosas, para a PGR. A invasão de competência desagradou ao ministro Edson Fachin, o juiz natural da ação, que revogou a decisão assim que retornou no recesso. Há tempos o ministro nomeado em 2009 pelo ex-presidente Lula tem criticado a maior operação de combate a corrupção já deflagrada no país. Entre os seus argumentos está o de que a Lava Jato “destruiu empresas”. Foi com base nessa premissa que ele inovou ao costurar com o governo federal e o Tribunal de Contas da União um acordo de cooperação que exclui o Ministério Público das negociações envolvendo os acordos de leniência, uma espécie de delação premiada feita por empresas. A decisão representou mais um tijolo na muralha que continua a ser erguida contra a Lava Jato.

“Toffoli tentou assumir um papel de moderador que não cabe ao Supremo. Não é atribuição do presidente do STF fazer acordos com o Poder Executivo. A corte precisa ser absolutamente independente. Foi uma gestão muito contraditória, que se comprometeu em atender aos interesses dos detentores do poder para tentar manter uma política de boa vizinhança”, afirma o jurista Miguel Reale Júnior, que foi ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso.

Mais recentemente, a veia política de Toffoli o colocou na articulação para tentar emplacar o atual ministro da Justiça, André Mendonça, na vaga que será aberta com a aposentadoria do decano Celso de Mello em novembro. Com tantos retrocessos alcançados nos dois últimos anos, é improvável que o próximo presidente do Supremo, Luiz Fux, tenha condições de reparar rapidamente os danos da gestão que acaba na próxima semana. Como o próprio Toffoli profetizou em seu discurso de posse há dois anos, citando trecho de uma música de Renato Russo, “o futuro não é mais como era antigamente”.

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