Reprodução/MPFMarcelo Odebrecht fala aos procuradores: depoimento sigiloso sobre e-mails

O ministro e as empreiteiras

Crusoé teve acesso à íntegra da apuração da Procuradoria-Geral da República sobre a relação de Toffoli com a Odebrecht e a OAS. Em vídeo exclusivo, Marcelo Odebrecht explica o esforço da companhia para contar com os préstimos do “amigo do amigo de meu pai”. Planilha da OAS registra pagamento de reforma na casa do ministro
10.09.20

Em abril do ano passado, uma reportagem de Crusoé revelou o teor de um documento de nove páginas enviado por Marcelo Odebrecht à Operação Lava Jato. Respondendo a dúvidas dos investigadores surgidas durante a análise de uma leva de e-mails até então inéditos trocados por ele com outros executivos da companhia, o empreiteiro-delator revelava a identidade de um personagem ao qual se referia como “o amigo do amigo de meu pai”. Era José Antonio Dias Toffoli, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, que à altura da troca de mensagens ocupava o posto de advogado-geral da União. “Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo de meu pai?”, perguntou Marcelo a dois altos executivos da empreiteira. “Em curso”, respondeu Adriano Sá de Seixas Maia, um dos chefes da área jurídica do grupo. Os investigadores queriam saber quem era o misterioso personagem e qual era a tratativa em curso. Além de revelar que se referia a Toffoli, Marcelo Odebrecht contou que a conversa envolvia “tratativas que Adriano Maia tinha com a AGU sobre temas envolvendo as hidrelétricas do rio Madeira”.

A reportagem acabou censurada por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Atendendo a um pedido feito por Dias Toffoli por meio de uma mensagem de texto, ele ordenou que a matéria fosse retirada do ar. A decisão foi expedida nos autos do rumoroso inquérito do fim do mundo, que investiga fake news, ameaças e ofensas à corte. Em seu despacho, Moraes chegou a sustentar que se tratava de uma notícia falsa. Era um falso argumento, obviamente. A insólita ordem de censura expedida sob o timbre de um tribunal cuja missão principal é zelar pelo bom cumprimento da Constituição, que protege a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão, ganhou contornos de escândalo. Dias depois, ao se dar conta de que, sim, o documento publicado por Crusoé existia, e de que não havia qualquer excesso na reportagem, Moraes revogou a decisão.

Aquele e-mail, porém, era apenas um de um acervo monumental com o qual delegados e procuradores da Lava Jato ainda deparariam. Uma parte o próprio Marcelo Odebrecht entregou espontaneamente como parte de seu acordo. Outra, mais extensa, foi encontrada quando os investigadores finalmente conseguiram, depois de muitas tentativas, quebrar as várias camadas de criptografia do notebook do empreiteiro, apreendido ainda na 14ª fase da Lava Jato, em junho de 2015. Como continha menção a autoridades com foro privilegiado, o material reunido pela força-tarefa da operação em Curitiba foi transferido para um HD de 1 terabite e enviado para o relator da operação no Supremo Tribunal Federal, o ministro Edson Fachin. A quantidade de informações era oceânica: 1.888.621 arquivos, entre eles mais de 700 mil e-mails, muitas planilhas e textos diversos.

O disco rígido continha uma espécie de espelho do computador pessoal de Marcelo. No STF, o procedimento foi autuado em segredo de justiça. Em agosto do ano passado, Fachin enviou os autos para análise da Procuradoria-Geral da República. Àquela altura, os dados já haviam sido processados e era possível realizar pesquisas por palavras-chave. Foi a partir dali que, mergulhando no universo dos arquivos ainda secretos do empreiteiro, os procuradores destacados para atuar nos processos da Lava Jato que correm na PGR descobriram que aquela mensagem revelada por Crusoé em abril de 2019 era só uma de dezenas que faziam menção a Toffoli e aos vários assuntos que a Odebrecht tentou resolver, sempre buscando a ajuda do hoje ministro, no período em que ele era chefe da AGU no governo Lula.

Os procuradores viram nesse conjunto de e-mails indícios suficientes para apurar, nas palavras deles, “o possível cometimento de fato penalmente relevante por José Antonio Dias Toffoli, praticado à época em que ocupava o cargo de advogado-geral da União”. As trocas de mensagens, com a devida contextualização, chegaram a ser reunidas em uma peça bem-acabada que deveria ser enviada na sequência a Edson Fachin pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, pedindo a abertura de um procedimento específico para apurar as suspeitas relacionadas a Toffoli. Não se tem notícia, até hoje, de que Aras tenha dado o devido encaminhamento ao material. Em vez de serem reconhecidos pela coragem da iniciativa, os procuradores que realizaram o trabalho só tiveram problemas – em junho passado, eles pediram demissão coletiva e deixaram o grupo de trabalho da Lava Jato na PGR por discordarem do animus de Augusto Aras em relação à operação.

O mesmo grupo, como o leitor verá mais adiante, havia preparado um segundo pedido de investigação que poderia alcançar Toffoli, desta vez em razão de sua relação com outra empreiteira, a OAS. Na primeira quinzena de julho, uma reportagem do jornalista Diego Escosteguy narrou os bastidores do esforço vão dos procuradores e revelou alguns dos principais achados relacionados ao ministro. Crusoé avançou na apuração e teve acesso, com exclusividade, não só à íntegra do material reunido pelos investigadores como também à gravação de um depoimento sigiloso no qual, por quase quatro horas, dois dos integrantes da então equipe da Lava Jato na PGR, com autorização do ministro Edson Fachin, ouviram Marcelo Odebrecht sobre os arquivos relacionados a Toffoli.

O conjunto do material é eloquente. Conjugados os e-mails e as respostas prestadas em viva voz por Marcelo Odebrecht, é possível saber, por exemplo, que a empreiteira pagou caro a um escritório de advocacia indicado pelo próprio Toffoli para “intermediar” a relação com ele. Marcelo Odebrecht não chega a cravar, com todas as letras, que essa era uma forma de repassar dinheiro ao ministro, mas afirma que os e-mails, que sugerem a existência de um esquema para remunerar os favores por meio do tal intermediário, são claros (assista aos principais trechos do vídeo ao longo desta reportagem). O empreiteiro também relata que era comum o envio de presentes a Toffoli e conta que, em pelo menos duas ocasiões, se reuniu pessoalmente com ele, fora de agenda oficial, para estreitar a relação e para tratar de assuntos de interesse da companhia – um dos encontros foi na casa do ministro, em Brasília, e outro no apartamento de um advogado indicado como “intermediário” da relação. A apuração preliminar dos procuradores mostra ainda que, com a anuência de Toffoli, a Odebrecht usou sua velha máquina de lobby no Congresso Nacional, aquela mesma que abastecia parlamentares com polpudas propinas, para ajudar na aprovação do nome do ministro para assumir a cadeira no Supremo, em 2009.

Embora os e-mails deixem claro o interesse de Marcelo Odebrecht em manter a relação estreita com Toffoli depois que ele virou ministro da mais alta corte do país, a grande maioria das tratativas se refere ao período em que ele comandou a AGU, no governo Lula. Eram dois, basicamente, os temas de maior interesse da empreiteira. O primeiro envolvia a construção das usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. Desde o início dos anos 2000 a Odebrecht estava de olho nessa empreitada. Tanto que fez um acordo com a estatal Furnas para realizar estudos para avaliar a viabilidade técnica dos projetos.

A empreiteira esperava que, dada a sua precedência no tema, teria caminho livre para tocar os empreendimentos sem ser incomodada por concorrentes. Mas não foi exatamente o que aconteceu. Houve alguns embates no caminho, inclusive dentro do próprio governo e nos tribunais. A Odebrecht tinha, por exemplo, um contrato de exclusividade com possíveis fornecedores de turbinas para as usinas que passou a ser questionado. Quando os projetos avançaram, a companhia foi acusada de agir para limitar a concorrência. Também havia conflitos relacionados aos leilões das duas usinas. A empresa de Marcelo Odebrecht acabou ficando com o projeto de Santo Antônio, em 2007, e um consórcio integrado pela Camargo Corrêa, outra gigante da empreita pilhada nas investigações do petrolão, levou Jirau, no ano seguinte. A AGU comandada por Toffoli, que chegou a montar uma força-tarefa para tratar do assunto depois de ser destacado por Lula para dirimir o impasse entre as construtoras aliadas, era peça chave no processo e catalisou uma parte expressiva do interesse da Odebrecht, interessada em resolver as querelas a seu favor – por fim, as duas gigantes acabaram agraciadas.

O outro tema que levou a Odebrecht a montar guarda na Advocacia-Geral da União envolvia a discussão bilionária sobre a extinção do chamado crédito-prêmio do IPI. O assunto era de interesse dos grandes exportadores brasileiros, que poderiam sofrer sérios prejuízos caso o governo resolvesse voltar a cobrar deles o pagamento do imposto, do qual estavam isentos havia anos em função de um antigo decreto-lei, do final dos anos 1960. Era uma guerra que, pelos valores envolvidos, mereceria todos os esforços para ser vencida – a disputa girava em torno de 200 bilhões de reais. A Odebrecht tinha especial interesse por causa da petroquímica Braskem, da qual era controladora. Segundo o próprio Marcelo Odebrecht, a depender do desfecho da discussão, a empresa poderia sofrer um rombo de 4 bilhões em suas contas. As partes interessadas envidaram esforços diversos em busca de uma solução. No Congresso, tentaram resolver a parada por meio de medidas provisórias negociadas à base de propinas que mais tarde viriam a ser reveladas em acordos de delação na Lava Jato. O assunto, porém, estava amarrado a decisões da Justiça, e nos tribunais a atuação da AGU poderia fazer toda a diferença. Por isso, Marcelo Odebrecht e os demais executivos do grupo que lidavam freneticamente com a questão (nos arquivos do empreiteiro há 501 e-mails tratando do assunto) passaram a mirar Toffoli como alguém que poderia ajudá-los.

No depoimento prestado no início de maio aos procuradores Victor Riccely e Luana Vargas, em uma sala da Procuradoria da República em São Paulo, Marcelo Odebrecht é um tanto comedido ao responder às indagações sobre as mensagens relacionadas ao ministro do Supremo. Também pudera. Como delator em pleno usufruto dos benefícios do acordo firmado com a Procuradoria (hoje ele está em prisão domiciliar), para ele não chega a ser propriamente um bom negócio comprar briga com um integrante da Suprema Corte. Além disso, se fosse peremptório nas respostas, estaria diante de outro problema que, da mesma forma, tem potencial para colocar em risco sua condição de réu colaborador: por que, afinal, ele teria omitido informações tão graves ao fazer a delação? Diante desses dois dilemas, o Marcelo Odebrecht que aparece no vídeo se divide entre um personagem que não pode negar o que está registrado nos e-mails e outro que não deseja aprofundar ainda mais o fosso em que se meteu. É justamente nesse contexto que ele já começa transferindo para Adriano Maia, um de seus subordinados, a responsabilidade pelo relacionamento com Toffoli – além de “amigo do amigo de meu pai”, o ministro é tratado nas mensagens como “amigo de Adriano” e “amigo de AM”. Marcelo afirma que é Adriano quem pode esclarecer em quais bases se dava a relação com o próprio Toffoli e seus intermediários, com quais ele tinha se incumbido de negociar. A postura, aliás, é semelhante àquela que ele adotara ainda no ano passado, ao explicar por escrito quem era “o amigo do amigo de meu pai” e a história por trás do e-mail.

Adriano de Seixas Maia, de 46 anos, construiu uma longa e sólida carreira na Odebrecht. Entrou na companhia ainda jovem e chegou ao posto de diretor jurídico. Nessa condição, foi um dos responsáveis pela costura do acordo de delação premiada firmado pelos executivos da empreiteira com a Lava Jato. Ele deixou a Odebrecht em 2018, na esteira do furdúncio interno decorrente das investigações. Adriano é apontado por Marcelo como aliado do pai dele, Emílio Odebrecht, e do cunhado, Maurício Ferro – hoje, ele trata os dois como inimigos figadais dentro do grupo.

Os e-mails reunidos pelos procuradores mostram que Marcelo Odebrecht cobrava com frequência que Adriano Maia se mantivesse próximo a Toffoli, seja diretamente, seja por meio dos tais intermediários, os advogados Sérgio Renault e Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira. Renault chegou a ocupar postos de confiança no governo durante a era petista. Foi assessor de assuntos jurídicos da Casa Civil e também secretário de reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, a convite do então ministro Márcio Thomaz Bastos. Luiz Tarcísio, também próximo ao PT, trabalhou na gestão de Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo. Foi no apartamento de Luiz Tarcísio, na capital paulista, que Marcelo Odebrecht teve um dos encontros pessoais com Toffoli – o outro foi na casa do ministro. Em ambos, segundo o empreiteiro, Adriano Maia estava presente. Marcelo Odebrecht queria que Adriano cuidasse de manter viva a relação, até para não sobrecarregá-lo. Ele fazia questão de cobrar isso rotineiramente. “Me encontrei em um jantar esta 5ª com Toffoli e ficamos de marcar um encontro. Você conseguiu manter contato?”, escreveu Marcelo a Adriano Maia em abril de 2013 – o ministro havia sido empossado no Supremo quatro anos antes. Adriano responde assim, com a observação de que os antigos intermediários seguiam disponíveis: “Marcelo, desde que ele se tornou ministro do Supremo, não. Meu contato se dava através de Renault e Tarcísio, com quem sempre podemos contar para reavivá-lo (eles sempre mencionam isso)”.

Em outubro do ano seguinte, ao ser alertado sobre um assunto de interesse da empreiteira que guardava relação com o Supremo, Marcelo voltou a cobrar: “Temos mantido a relação?”. “Desde que assumiu nova posição adotou postura muito cautelosa no contato conosco, direcionando eventuais demandas a intermediários”, devolveu Adriano Maia.

Em setembro de 2009, dias após Toffoli ser escolhido por Lula para ocupar uma vaga no Supremo, Marcelo Odebrecht e Adriano Maia se articulam para ajudar no processo de aprovação do ministro pelo Senado. Onze dias antes da sabatina, Marcelo escreve: “Temos que ver como promover uns encontros reservados de T com alguns amigos da casa de cima de CMF. Eles e nós podemos ter com isto um aliado no futuro”. CMF é Cláudio Melo Filho, um dos lobistas mais atuantes da Odebrecht em Brasília, especialmente no Congresso Nacional. Cláudio Melo está copiado no e-mail. Adriano, que tinha a incumbência de fazer a ponte, diz: “Checarei interesse do t e falo com claudio”. O próprio Marcelo se coloca à disposição para ajudar. “Me avisem se conveniente eu estar em algum”, escreve ele. A uma semana da sabatina, Adriano atualiza o assunto. “Me alinhei com claudio sobre um contato que ele pediu para fazermos. Sem a presença dele.” No depoimento aos procuradores, Marcelo dirime eventuais dúvidas sobre o episódio: ele confirma que Toffoli aceitou a oferta de ajuda da Odebrecht e pediu que a empreiteira fizesse contato com pelo menos um senador.

“Nesse caso aqui você vê que foi minha iniciativa. Por que eu digo isso? Porque aí depois, o Adriano bota: checarei o interesse dele e falo com Cláudio. Aí, eu digo: me avise se conveniente eu estar. Aí, o Adriano fala: me alinhei com Claudio sobre um contato que ele, o Toffoli, pediu para fazer. Quer dizer, provavelmente Adriano foi lá: Toffoli, precisa de alguma ajuda? Toffoli deve ter dito: não, mas tem um senador em especial que eu tô vendo alguma dificuldade , será que vocês podem me ajudar? Pelo que tá aí… O que na verdade era mais do que comum. É o que o pessoal chamava de beija-mão, todos os ministros depois que eram escolhidos e antes de serem aprovados, eles faziam isso, e para fazer isso, muitas vezes eles buscavam empresários que tinham… E nesse caso eu mesmo perguntei a Adriano: ó, você não quer checar com o Toffoli se ele quer isso? E pelo retorno, ele pediu para falar com um.”

Um dos procuradores indaga: “Em que sentido um juiz, um ministro poderia ser um aliado da empresa?”. Marcelo, de novo recorrendo ao cuidado de sustentar que não via ilegalidade no ato, diz: “Você ter um ministro que você ajudou ele”. “Na verdade é o seguinte. O que que você cria a expectativa? Se você ajudou o cara de alguma maneira, lá na frente ele recebe você, ele vai te escutar, cria uma boa vontade”, prossegue. Na sequência, o empreiteiro sintetiza o relacionamento com Toffoli e diz o que esperava desse relacionamento. “Existia, sim, essa relação, a gente tentou aproximação, uma das razões que eu sempre dizia para o Adriano manter esse contato é porque eu achava que era uma pessoa que tinha o potencial, que seria importante a gente ter ele como um aliado futuro.”

As cobranças de Marcelo se sucedem. “Relacionamentos de longo prazo se cultivam melhor em fases onde justamente não temos demandas imediatas. Comente com ele qd (quando) quer comer uma boa comida baiana em SP”, escreve. “Veja se manda algo para ele desejando feliz 2011 em nosso nome”, diz em outro e-mail, enviado a Adriano mais adiante. “Ele estará lá por muitos anos e precisamos cultivá-lo para manter uma parceria próxima”, afirma o empreiteiro em mais uma mensagem. A certa altura, Marcelo Odebrecht faz um pedido: “Lembrem da paca que prometi”. Em razão desse registro, especificamente, há um momento curioso no depoimento prestado aos procuradores. O empresário, se antecipando a uma possível interpretação de que “paca” poderia ser mais um dos tantos códigos que usava para tratar de vantagens indevidas a autoridades, apressou-se em dizer: “Numa das conversas que eu tive com ele no passado, eu tinha prometido a ele (Toffoli) a história de comer uma paca. Porque meu pai criava paca. Então, ele tinha ouvido falar dessa história da paca, porque Lula tinha falado para ele da história da paca. Então, eu prometi para ele que eu faria essa paca para ele… A paca é o animal mesmo…”. “Paca é paca mesmo.”

A orientação do chefe foi seguida à risca por Adriano Maia, a julgar pelo teor dos e-mails reunidos pela equipe da PGR e pelo que o próprio Marcelo Odebrecht narrou em depoimento. Adriano atuou, por exemplo, em uma costura para que a Odebrecht entrasse nas discussões sobre a construção e a possível privatização do sistema de saneamento do município paulista de Marília, terra dos Toffoli. Um dos irmãos do ministro, José Ticiano Dias Toffoli, era o vice-prefeito da cidade à época. Ao reunir informações sobre o caso, os procuradores concluíram haver indícios de que, em troca do possível negócio, a Odebrecht se comprometeu a apoiar campanhas de políticos locais. A empreitada acabaria não dando certo – como mostraremos mais adiante, depois de um jantar em Brasília em que Toffoli aproximou o irmão de outro empreiteiro, Léo Pinheiro, a OAS acabou ficando com o projeto.

Apesar de se esforçar para não ser peremptório ao falar das mensagens que lançam suspeitas sobre a relação com Toffoli, em várias ocasiões Marcelo Odebrecht diz que os e-mails são claros. Em um deles, ao tratar do esforço contra o cancelamento do crédito-prêmio de IPI, ele exorta Adriano Maia a “buscar nossos ‘amigos’” na advocacia da casa e alerta dois diretores do grupo: “Estejam atentos ao DGI decorrente da linha AM (Adriano Maia). Não costuma ser baixo, até porque o intermediário que me foi qualificado por eles para negociar estes temas cobra bem a parte dele”. DGI, no dicionário da Odebrecht, é um acrônimo para despesas gerais indiretas – ou seja, propina. Para os procuradores, que esmiuçaram a mensagem na peça enviada ao gabinete de Aras, é uma indicação de que Marcelo entendia que o melhor caminho para solucionar a questão era por meio da AGU e da Casa Civil, recorrendo aos serviços dos “amigos de Adriano Maia”. O intermediário em questão, concluem os procuradores, é Sérgio Renault.

É nesse contexto que, depois de saber que Toffoli havia visitado o Supremo para tratar da inclusão na pauta da corte de um processo que poderia colocar um fim na questão, o que ia no sentido contrário ao interesse da empresa, Marcelo escreve a outros executivos, com cópia para Adriano Maia: “AM precisa falar com o amigo. Ele não quer o dele?”. Os investigadores leram a mensagem como uma indicação de que Marcelo queria que Adriano acionasse Toffoli. Sobre a pergunta “ele não quer o dele?”, chegaram a escrever em um dos expedientes da apuração: “Não se mostra necessário fazer maiores ilações para inferir o significado dessa corriqueira expressão: ele deixa a entender que essa conduta do então AGU, contrária aos interesses da Odebrecht, impediria que ele recebessse algum benefício (DGI) da empresa”. Nessa troca de mensagens, há um detalhe curioso: Adriano Maia, ao responder a Marcelo, simplesmente apaga da mensagem do chefe a pergunta. Os procuradores escreveram: “A expressão ‘ele não quer o dele?’ mostrou-se tão explícita que o próprio Adriano Maia – ao responder a mensagem de Marcelo Odebrecht confirmando que teria uma reunião no dia seguinte para ‘tratar do tema’, isto é, tratar do seu amigo Toffoli, faz uma pequena (mas sintomática) alteração no conteúdo dos e-mails copiados, justamente excluindo aquela frase”.

Àquela altura, a Odebrecht queria que o Palácio do Planalto mantivesse, sem vetos, o texto de uma medida aprovada a fórceps pelo Congresso que contemplava o pleito da companhia. Ao mesmo tempo, queria empurrar o julgamento do tema no Supremo, o que poderia jogar o plano por terra. A essa altura, Marcelo Odebrecht escreve: “Se for para resolver (o problema que ele criou no S e os vetos) acho que T e R valem até mesmo o número da chantagem deles”. A antiga equipe da Lava Jato na PGR relaciona “T” a Toffoli e “R” a Renault, um dos dois intermediários. O próprio Marcelo Odebrecht diz que Toffoli credenciou o advogado como seu interlocutor. O “número da chantagem” seria, na leitura dos procuradores, o valor alto que, segundo Marcelo, foi pedido para resolver o imbróglio. No depoimento, o empreiteiro confirma a suspeita e reafirma o que já havia explicitado nos e-mails: ele propôs pagar de 20% a 25% do valor exigido de imediato pelos intermediários e deixar o restante para depois.

A Odebrecht, diz Marcelo, faria uma espécie de vaquinha com outras empresas interessadas no tema para pagar a diferença. O expediente é similar ao que ele usou ao atender, em outra situação, a um pedido de propina feito por Antonio Palocci, o “Italiano” das planilhas da empreiteira. No dia seguinte à mensagem do “número da chantagem”, Marcelo Odebrecht reforça, em um novo e-mail: “E a meta ficou claro (sic): Vencer ou postergar julgamento S e os vetos do jeito que queremos?”. É Adriano Maia, o suposto “amigo” de Toffoli, quem responde: “Ficou”. As metas, na leitura dos procuradores, eram postergar o julgamento no STF, supostamente com a ajuda da AGU, ou evitar os vetos do Planalto. Nenhuma delas foi alcançada, o que, registra a peça da Lava Jato, “não afasta a existência da negociação em si, bem como da promessa de atuação”.

O outro dos dois temas principais dos e-mails de Marcelo Odebrecht, a questão das hidrelétricas do rio Madeira, se desenrola em 2007. Nesse caso, os interesses da empreiteira eram vários. Muitos se sobrepunham. E quase todos passavam, de alguma forma, pela AGU. Pode-se dizer que a já conhecida mensagem em que Marcelo se refere ao “amigo do amigo de meu pai” é uma espécie de ponto de partida para as discussões. Uma hora depois de disparar a cobrança, aliás, Marcelo diz: “Não podemos relaxar. Esta frente e a do amigo do amigo de meu pai decidem o jogo a nosso favor”. Meses depois, ele pergunta como está agindo o “amigo de Adriano” – ou seja, Toffoli – e de novo fala em “preço”: “Temos como motivá-lo a nos defender mais? Diria que pelo desgaste que possamos estar tendo pelo envenenamento da moça o apoio dele vale uma parceria/preço bem alto”. A moça seria a então ministra Dilma Rousseff, que se opunha aos interesses da empreiteira no projeto das usinas. “Ao que parece, o apoio de Toffoli é dado em troca de um alto preço a ser pago pela Odebrecht”, anotam os procuradores em uma das peças obtidas por Crusoé. Eles destacam os seguintes pontos acerca das tratativas sobre os projetos do rio Madeira:

– havia um acerto em curso dos executivos da Odebrecht com Toffoli;

– a Odebrecht enxergava o então advogado-geral da União como um personagem capital para resolver os problemas relacionados ao tema;

– o apoio de Toffoli valeria uma “parceria/preço bem alto”;

– os executivos da Odebrecht esperavam uma atitude mais proativa de Toffoli na defesa dos interesses da empresa.

Na sequência, Adriano Maia diz que a posição de Toffoli em relação aos temas de interesse da Odebrecht refletirá a vontade de Lula, que vinha acompanhando o tema e sofrendo pressão de empreiteiros concorrentes. A certa altura, ele afirma que os pareceres deveriam ser favoráveis à Odebrecht, mas que Toffoli tinha um limite: além de não poder contrariar as decisões do então presidente, seu chefe imediato, o então advogado-geral já estava demasiadamente exposto no tema. Ao fazer esse relato a Marcelo Odebrecht, Adriano menciona o que ouvira de Sérgio Renault, o suposto intermediário da relação: “Renault diz que meu amigo não confrontará diretamente a decisão do governo. Que não se espere isso dele, por conta da forte exposição que ele diz já ter tido no tema”. Um mês depois, Marcelo pede notícias sobre o acerto com o “amigo”. Adriano responde da seguinte forma: “Acertei o conceito. Não detalhamos ainda a proposta. O Renault estah sabendo que faremos uma proposta de solução ainda este ano”.

Pouco antes de pedir demissão coletiva por discordar da postura de Augusto Aras em relação à Lava Jato, os procuradores deixaram escrito no expediente em que defendiam a abertura de uma apuração no Supremo sobre a relação entre Toffoli e a Odebrecht que, embora não seja possível, de antemão, atestar a existência de ilícitos, as mensagens contextualizadas por eles formam um mosaico que aponta para a necessidade de investigação. Os procuradores observam que, devido ao gigantismo do acervo obtido a partir da quebra da criptografia do notebook de Marcelo Odebrecht, novos documentos ainda podem surgir em relação ao assunto.

Léo Pinheiro, da OAS, ao ser preso pela Lava Jato: encontros reservados com Toffoli
Em outra frente, analisando novos arquivos entregues pelos delatores de outra empreiteira, a OAS, os procuradores encontraram mais elementos que, no entender deles, apontam para a necessidade de se abrir uma segunda investigação sobre Toffoli. Há tempos, desde os primeiros movimentos do ex-presidente da companhia, Léo Pinheiro, para negociar um acordo de delação premiada com o Ministério Público, circulavam informações sobre o relacionamento do grupo com o próprio Toffoli e com familiares do ministro. Quando vazou pela primeira vez a notícia de que Léo Pinheiro ameaçava contar que pagou uma reforma na casa de Toffoli, a negociação do acordo foi suspensa pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot. O assunto voltaria tempos depois, mas sem a história da casa.

Entre os capítulos de sua delação, Léo Pinheiro limitou-se a falar de uma doação a José Ticiano, o irmão de Toffoli que foi vice-prefeito de Marília. Ainda assim, essa parte do relato foi arquivada pela sucessora de Janot na PGR, Raquel Dodge. Acontece que, mais recentemente, o mesmo grupo de procuradores que se debruçava sobre os e-mails da Odebrecht teve acesso a uma parte ainda desconhecida dos registros da central de pagamentos de propina da OAS. Lá estavam registrados, com todas as letras, o pagamento de uma pequena obra na casa de Toffoli e os repasses para o irmão do ministro – uma parte, inclusive, via caixa dois. Diante das novas evidências, os procuradores pediram que Aras solicitasse ao Supremo o desarquivamento do procedimento que Dodge mandara para a gaveta e, além disso, incluísse o próprio Toffoli na investigação, por supostamente ter recebido vantagem indevida do presidente da OAS.

Toffoli é parte integrante da suposta trama relacionada à doação ao irmão dele. Em sua delação, Léo Pinheiro contou que, durante um jantar no restaurante Piantela, em Brasília, ouviu de José Ticiano Dias Toffoli e de um aliado político dele em Marília um pedido: eles queriam 1 milhão de reais para “comprar” a renúncia do então prefeito da cidade, Mário Bulgarelli. José Ticiano era o vice e queria assumir o posto. O ministro Dias Toffoli esteve no jantar, mas segundo Léo Pinheiro deixou o restaurante antes de o pedido de dinheiro ser feito. O empreiteiro relatou ainda o repasse de 1,5 milhão de reais à campanha de José Ticiano. Em contrapartida, o irmão do ministro garantiria à OAS um contrato milionário – o que de fato acabou acontecendo – para a construção do sistema de saneamento do município, uma obra realizada com recursos federais que o próprio José Antonio Dias Toffoli havia ajudado a liberar, durante o governo do PT.

Na contabilidade paralela da empreiteira, os procuradores encontraram o registro do repasse do dinheiro, confirmando o relato de Léo Pinheiro. Só que havia mais. Em meio às planilhas, havia a anotação de uma despesa de 15 mil reais em valor líquido (e 18.750 brutos). Logo abaixo dos códigos que mostram quem autorizou o pagamento – em última instância, foi o próprio Léo Pinheiro –, há uma anotação: “reforma casa Dias Toffoli” (imagem acima). Ao propor a reabertura da apuração, os investigadores observam haver “robustos indícios” de que a OAS custeou a obra na residência do ministro. Embora no depoimento prestado na delação Léo Pinheiro tivesse dito que não mantinha relação de amizade com Toffoli, outros arquivos reunidos pela equipe da Lava Jato apontam para o sentido oposto. Há evidências, inclusive, de que os dois se encontraram com alguma regularidade entre os anos de 2010 e 2013. Foram pelo menos dez encontros. Alguns deles, na casa de Toffoli.

Há nos registros encontrados na agenda do empreiteiro um dado curioso: três encontros ocorreram em um apartamento da Asa Sul de Brasília que, segundo os procuradores, está registrado em nome de uma assessora de Toffoli desde os tempos da AGU. Ela trabalha hoje no gabinete do ministro no STF. Os investigadores demonstram estranhamento com a descoberta: por que, afinal, as reuniões aconteciam na casa de uma auxiliar do ministro? No pedido para reabrir a apuração, eles listam mensagens já conhecidas capturadas em aplicativos do telefone de Léo Pinheiro com menção a Toffoli. “Todo esse conjunto de mensagens reforça a existência de uma relação perene entre Toffoli e Léo Pinheiro”, pontuaram.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéNewman, o assessor de Toffoli: ponte com Léo Pinheiro, segundo os procuradores
Além de interagir com o próprio ministro, o empreiteiro também mantinha contatos frequentes com Ricardo Newman de Oliveira, outro funcionário da estrita confiança de Toffoli no Supremo. De 2012 a 2014, registra um dos documentos, eles trocaram 106 ligações. Newman é um personagem conhecido dos leitores de Crusoé. Ele apareceu em uma reportagem publicada ainda em 2018 sobre transferências mensais de dinheiro que o escritório da mulher de Toffoli, a advogada Roberta Rangel, fazia para o ministro – o assessor tinha procuração para movimentar as contas. Os procuradores afirmam que coube a Newman tratar com Léo Pinheiro da obra na casa de Toffoli.

Em maio de 2013, o empreiteiro escreve a um de seus auxiliares: “O Ricardo me ligou dizendo que lhe pediu um assunto da residência do amigo dele. Pode providenciar”. “Ok, o pessoal da empresa já marcou de ir lá novamente para verificar esta nova demanda. Lhe explico pessoalmente”, respondeu minutos depois o funcionário da OAS. A despesa com a reforma foi registrada nos arquivos secretos da empreiteira em agosto de 2013. Não se tem notícia, também nesse caso, de que o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, tenha enviado para o Supremo a petição preparada por seus ex-auxiliares. Crusoé está aberta a manifestações de Toffoli — que nesta quinta-feira, 10, transferiu a presidência do Supremo para o ministro Luiz Fux — e dos demais personagens mencionados nesta reportagem.

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