Bruno Santos/FolhapressRoberto Livianu critica a pena de censura imposta ao procurador Deltan Dallagnol

‘O PGR não é o dono do Ministério Público’

O procurador de Justiça que preside o Instituto Não Aceito Corrupção critica os ataques à Lava Jato e diz que a vontade de Augusto Aras não pode ser maior do que a instituição
10.09.20

Nos anos 1990, quando fazia doutorado em direito na Universidade de São Paulo, Roberto Livianu envolveu-se com uma bandeira que se transformaria na causa de sua vida: o combate à corrupção. Sob a orientação do professor e jurista Miguel Reale Júnior, o então jovem promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo defendeu uma tese em que expôs a realidade de desvios de recursos públicos no país. Em 2012, quando ele liderou uma campanha de conscientização sobre os danos da corrupção para a sociedade, sua militância na área ganhou projeção nacional. Lançada no auge do julgamento do escândalo do mensalão, a ação foi a semente para o grande projeto de Livianu: o Instituto Não Aceito Corrupção. Criado há cinco anos, o grupo realiza pesquisas, desenvolve políticas públicas anticorrupção, faz uma análise de projetos de lei em andamento no Congresso, e, principalmente, atua na mobilização da sociedade contra malfeitos em todas as esferas de poder.

Em entrevista a Crusoé, o procurador de Justiça do MP de São Paulo defendeu a aprovação da proposta de emenda à Constituição que permite a prisão de condenados em segunda instância. A tramitação está travada no Congresso por interesses nada republicanos de parlamentares enrolados com a Justiça. “Essa PEC é de importância capital para o combate à corrupção”, afirmou Livianu. Ele também cobra da Câmara o fim do foro privilegiado – o texto foi aprovado pelo Senado em 2017 e, desde então, não deslancha. “A proposta dormita na gaveta do presidente da Câmara e isso é motivo de vergonha para o Brasil perante o mundo”, argumenta.

O procurador ataca o “cerco” à Lava Jato montado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, diz que ele não “é dono do Ministério Público” e critica a pena de censura imposta ao procurador Deltan Dallagnol. Eis os principais trechos da entrevista:

Na última terça-feira, 8, foi apresentado o relatório da PEC da Segunda Instância. Qual é a importância da proposta para o combate à corrupção?
Essa PEC é de importância capital para o combate à corrupção. Aguardar quatro instâncias para julgamento, a meu ver, representa um pacto com a impunidade. O mundo democrático ocidental prende após condenação em primeiro ou segundo grau, essa é a regra vigente em todos os países. Precisamos seguir esse fluxo, que é o que existe de correto. Se não fizermos dessa maneira, ficaremos para trás e seremos sempre vistos como o país da impunidade. A apresentação do relatório é positiva e espero que o Congresso tenha a percepção da importância desse tema para a sociedade. Afinal de contas, na democracia, o poder é investido em nome do povo, pelo povo e para o povo. E a expectativa da sociedade é que essa proposição avance e seja aprovada.

Como o sr. vê a resistência do Congresso à PEC?
Eu penso que a sociedade e a imprensa têm papéis fundamentais no avanço dessa agenda. Para que tenhamos a aprovação dessa proposição, é fundamental que a mídia jogue luz e que a sociedade apoie e perceba a relevância disso para o combate eficiente à corrupção. Processos que se eternizam e duram 20, 25 anos, são processos fadados ao fracasso, que prescreverão, e isso vai estimular práticas desonestas. Vai estimular situações como a de Cocal, no Piauí, em que um ex-prefeito veio a público na semana passada para dizer que ele rouba menos do que o atual, como se isso fizesse dele um ícone de honestidade. O avanço dessa proposição é a verdadeira vacina que nos protege da naturalização desse tipo de declaração.

Especialistas criticam a ampliação dos efeitos da PEC para outros ramos do direito. O sr. acha que isso pode tumultuar a tramitação?
Eu concordo que a PEC deveria focar na área penal. Na realidade brasileira, quando você não tem muito foco nas discussões, há um grande risco de eternizá-las e de abrir campo para angulações absolutamente indesejáveis. Veja o problema gravíssimo que estamos tendo com a Lei de Improbidade. O deputado Roberto de Lucena apresentou um projeto muito correto, muito apropriado, que propunha a atualização da lei. No geral, o projeto é positivo. O problema foi o substitutivo elaborado pelo relator na comissão especial, deputado Carlos Zarattini, do PT, que não foi apresentado formalmente, existe apenas na clandestinidade. Foi entregue aos membros da comissão e não foi protocolado formalmente na Câmara, não existe do ponto de vista político, jurídico e legislativo. Não se permitiu um debate sobre esse substitutivo. E ele propõe nada mais, nada menos do que praticamente a implosão da Lei de Improbidade. Ele sugere a redução de pena para corruptos, a supressão de uma das três categorias de improbidade, e dificulta a adoção de medidas cautelares. É um mundo doce e suave para os corruptos.

Como o sr. avalia a diminuição da mobilização popular em torno do combate à corrupção?
Tenho a percepção de que ainda existem muitas pessoas preocupadas com o tema e que continuam empenhadas na luta contra a corrupção. O presidente da República chegou ao poder prometendo o combate rigoroso à corrupção, todo mundo sabe disso. Ele prometeu ser firme contra o foro privilegiado, lutar contra o caixa dois eleitoral. Mas, agora, vemos o advogado-geral da União e o procurador-geral da República, escolhidos pelo presidente, defendendo o foro privilegiado para o hoje senador Flávio Bolsonaro. Isso contraria completamente o discurso entoado na campanha. A gente não vê no dia a dia do governo um combate firme ao caixa dois eleitoral, nem uma agenda anticorrupção.

Qual a avaliação do sr. com relação à transparência do atual governo?
A gente percebe uma involução em matéria de transparência. Enquanto 130 países do mundo firmaram um pacto contra a disseminação de fake news durante a pandemia, o Brasil se negou a assinar. Isso é extremamente preocupante. E com o abandono da agenda anticorrupção, a gente vê o governo no caminho exatamente contrário, ao editar uma medida provisória que propôs a blindagem de corruptos por atos durante a pandemia. A questão da punição efetiva ao caixa dois eleitoral, que o então ministro Sergio Moro quis incluir no pacote anticrime, foi decapitada quando o pacote chegou ao Congresso. Muitas outras iniciativas tiveram o mesmo destino. Você não percebe por parte do governo federal uma ação concreta de combate à corrupção. Foi dito que não haveria o toma-lá-dá-cá, mas o governo fez acordo com o Centrão para garantir que o presidente escape de um possível impeachment. Muitos dos seguidores do presidente, fiéis a essas bandeiras, o seguem qualquer que seja a sua agenda. E a democracia propriamente dita não é o fio condutor de tudo isso.

E as manifestações antidemocráticas? Acha que representam um risco real à democracia?
Eu chamaria de manifestação tirânica. Defesa de AI-5, espancamento de repórter, e não ouvimos nenhuma manifestação de repúdio por parte do presidente. Em que lugar estamos vivendo? Ele capitaneava a formação de um partido conhecido como o “partido do presidente”, a Aliança pelo Brasil. Você não vê atitudes marcadamente democráticas. Nós vivemos uma crise da democracia brasileira, infelizmente.

A Operação Lava Jato tem sido alvo de vários ataques, que culminaram com a saída do procurador Deltan Dallagnol. Acredita que isso representa o fim da operação?
Eu espero que a Lava Jato não tenha terminado. A Lava Jato tem uma dinâmica de trabalho colaborativa, na forma de força-tarefa, e está sujeita apenas a decisões administrativas da cúpula do Ministério Público. O procurador-geral da República não é o dono do Ministério Público. Existem instâncias da administração superior. Há uma demanda por parte da sociedade pelo combate à corrupção. Não se pode simplesmente implodir a Lava Jato e não responder a essa demanda da sociedade. A vontade do procurador-geral da República não é vontade única. Existem outros organismos na instituição, existe a vontade da sociedade, o poder vigilante da mídia. Não há dúvida alguma de que a Lava Jato está sob cerco.

Qual é a sua avaliação sobre a punição de censura imposta ao procurador Deltan Dallagnol pelo CNMP?
Basicamente, as acusações feitas contra ele dizem respeito ao exercício da sua liberdade de manifestação do pensamento. Todos têm esse direito no Brasil. Por que os membros do MP não podem se manifestar? Eles são menos cidadãos? A meu ver, a plenitude do direito de manifestação é um sinal de maturidade democrática. É razoável os membros do Ministério Público serem punidos por se manifestarem? Até que ponto isso é plausível em uma democracia? A sociedade pode pagar um preço alto por isso.

A PEC que restringe o foro privilegiado foi aprovada pelo Senado em 2017, mas está parada na Câmara desde então. O sr. acha que os deputados vão aprovar a proposta?
Essa proposta dormita na gaveta do presidente da Câmara e isso é motivo de vergonha para o Brasil perante o mundo. Sou membro do Ministério Público e defendo o fim do foro para membros do Ministério Público também. Não se justifica mais termos figuras imunes, blindadas. O foro privilegiado nos envergonha. Precisamos de isonomia, igualdade para todos.

Que pontos o sr. avalia como indispensáveis para uma efetiva reforma política no Brasil?
Acho que a reforma política é a reforma das reformas, ela é imprescindível para que tenhamos avanços civilizatórios. Temos que debater a questão do sistema de voto e tantas outras que giram em torno disso, como falhas no controle dos partidos. Foge-se de um debate sobre regras de integridade para os partidos e não há democracia e transparência verdadeira dentro deles. Para piorar, no ano passado, aprovaram uma autorização para o uso de recursos do fundo partidário para a compra de helicópteros e iates de luxo. Isso é um acinte. Os partidos precisam se moldar à democracia, à transparência e à ética.

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