MarioSabino

A lata velha de Piketty e Huck

18.09.20

Em 2013, ao passar pela calçada da livraria parisiense La Hune, em Saint-Germain-des-Près, deparei na vitrine com o recém-lançado O Capital no Século XXI, do economista Thomas Piketty. Como livro de francês sobre capitalismo só pode ser contra o capitalismo, não dei bola. Embora o mais conveniente para mim tivesse sido me tornar socialista, sou lúcido demais para não me enganar a respeito da natureza do ser humano.

Dada a inexorabilidade do capitalismo, a livraria La Hune faliu, infelizmente, devorada pelo capítulo final de um incêndio em 2017, mas Piketty continua vivíssimo. Eu deveria ter dado bola para o seu livro, porque o sujeito se tornou um sucesso mundial graças ao cartapácio. Amostra suplementar de que o meu faro jornalístico enfraqueceu-se depois da covid dos 50 anos, juntamente com a minha paciência. O sucesso de Piketty é tamanho que, da vitrine da La Hune, ele foi parar numa recente entrevista feita por L’uciano Huck. O apresentador agora entrevista gente que, no seu julgamento, pode trazer luzes ao tal do debate — e holofotes para a sua eventual candidatura em 2022.

Se você conseguiu a façanha de passar incólume por Piketty, eu resumo: ele faz longos retrospectos, muito interessantes, para embasar a ideia de que o capitalismo passou a concentrar tanta renda, mas tanta, que se chegou a um nível insuportável de desigualdade. Solução: taxar progressiva e pesadamente renda e riqueza, assim como se fez na Europa do final da Segunda Guerra Mundial até a década de 1990, quando os impostos começaram a diminuir para os ricos e suas empresas. Piketty acredita que a diminuição de taxação está intimamente ligada ao aumento da desigualdade. Para reduzir esta última, portanto, seria fundamental aumentar a primeira. Carregar os ricos e as suas empresas de impostos não inibiria ainda mais o crescimento econômico? Piketty fez uma análise de curvas disso e daquilo para concluir que a extrema desigualdade é que seria freio para o incremento sustentável da atividade econômica.

De fato, mesmo quando se constata que os homens são desiguais em suas capacidades e a massa de extremamente pobres é atualmente a menor da história, não dá para ignorar que o abismo socioeconômico vem se aprofundando de maneira perigosa para a manutenção do próprio sistema. Obviamente, há países mais desiguais do que outros, no Brasil a coisa já virou flagrante delito, mas o quadro preocupante é geral. Ignorante em economia, desconfio de que as respostas efetivas para esse problema concreto, por mais que variem de latitude para latitude, devem ser dadas sempre dentro do capitalismo. Afinal de contas, como expressão da natureza humana, ele já demonstrou ser o pior dos sistemas econômicos à exceção de todos aqueles já experimentados, parafraseando Winston Churchill.

Até o lançamento de Capital e Ideologia, em 2019, Piketty ainda não tinha saído completamente do armário. Mantinha metade do pé esquerdo lá dentro. Como o sucesso liberta, assumiu de uma vez ser socialista. Ele não almeja diminuir a desigualdade para destravar o capitalismo, quer mesmo é mudar o sistema. É o arauto do socialismo no século XXI. Quem sai aos seus não se regenera, eu diria. Em Capital e Ideologia, lá na longínqua página 836 da edição brasileira, depois de fazer nova apologia do imposto progressivo sobre patrimônio, rendas de trabalho e do capital, Piketty conclui, triunfante:

O modelo de socialismo participativo proposto aqui se baseia em dois pilares essenciais visando erradicar o atual sistema de propriedade privada e substituí-lo pela propriedade social e pelo compartilhamento dos direitos de voto nas empresas, bem como pela propriedade temporária e pela circulação do capital. Combinando os dois elementos, chegamos a um sistema de propriedade que já não tem muito a ver com o capitalismo privado tal como o conhecemos atualmente, e que constitui uma real erradicação do capitalismo.

E acrescenta:

Essas propostas podem parecer radicais. Saliento, no entanto, o fato de que, na realidade, elas se situam numa linha de evolução que começou no final do século XIX e no início do século XX, tanto no que concerne ao compartilhamento do poder nas empresas quanto ao surgimento do imposto progressivo. Esse movimento foi interrompido ao longo das últimas décadas, em parte porque a social-democracia não renovou e internacionalizou o seu projeto o suficiente e, por outro lado, porque o dramático fracasso do comunismo em sua vertente soviética lançou o mundo numa fase de desregulamentação sem limites e de renúncia a toda ambição igualitária a partir dos anos 1980-1990.

Basicamente, o que Piketty está dizendo é que o socialismo não morreu, porque o socialismo que ruiu não era o verdadeiro socialismo (cansa, né, meu filho?). O verdadeiro socialismo será alcançado fiscalmente e a tomada dos meios de produção será por meio da propriedade temporária. O sujeito investe num negócio, o negócio dá certo, ele é obrigado a pagar impostos cada vez mais altos, os funcionários passam a ter direito de votar sobre o destino da empresa, o lucro adquire função estritamente social e, voilà, um belo dia ele se vê obrigado a abrir mão do que era seu. Traduzindo: o futuro é o socialismo de cooperativas. A esta altura do campeonato, estou para o mundo como Rhett Butler para Scarlett O’Hara, em E o Vento Levou…: “Frankly, my dear, I don’t give a damn.” Mas, voltando ao início deste artigo, alguém precisa avisar L’uciano Huck de que, se ele concorda mesmo com Piketty, ficará esquisito continuar a fazer propaganda de corretora. Também terá chegada a hora de iniciar a transformação das suas centenas de milhões de reais em propriedade temporária, para dar exemplo. E, se for eleito presidente da República, o caminho coerente a seguir será o de aumentar progressivamente os impostos sobre renda e riqueza, a começar pela sua própria fortuna e as dos amigos dele. Vai ter de botar todo mundo dentro do caldeirão, não tem jeito.

De qualquer forma, já há uma semelhança entre o economista francês e L’uciano Huck, para além de ambos terem nascido em 1971: Piketty também pegou uma lata velha e deu uma recauchutada nela para parecer um carro novo. Dá para acumular um bom capital fazendo isso no século XXI.

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