RuyGoiaba

O bingo dos clichês da pandemia

18.09.20

Agora que os brasileiros decretamos que a pandemia da Covid-19 acabou porque todo mundo está de saco cheio de ficar em casa —sem fazer aquilo que Garrincha chamava de “combinar com os russos”, com o vírus no lugar dos soviéticos—, acho que já é possível fazer uma coletânea dos melhores clichês da quarentena. Por “melhores”, obviamente, quero me referir aos que você não aguenta mais ouvir: aqueles que, só de encontrar mais uma vez, dão vontade de pular da janela do seu apartamento ou até tomar um banho de coronavírus.

Esta minha coletânea de greatest hits não pretende ser exaustiva e tem um critério básico de escolha: frases como “cloroquina salva vidas!”, emitidas por gente que não passa incólume pelo mata-burro, nem sequer serão consideradas. Em geral, os lugares-comuns abaixo foram cometidos por pessoas cujo QI é maior que a temperatura ambiente. Eu mesmo cometi vários e talvez tenha colaborado com outros —longe de mim atirar a primeira pedra. Afinal, “estamos todos no mesmo barco” e, como dizia Itamar Assumpção no melhor pior trocadilho da MPB, chavão abre porta grande. Então vamos a eles:

– Lives, lives, lives

Quem não participou de alguma live, como promotor ou como público, não vivenciou a pandemia em todas as suas possibilidades. Juro que nesse caso só financiei o tráfico, não trafiquei nada —vá lá, admito que traguei um pouquinho. Mas me parece que hoje vivemos uma espécie de ressaca de lives e podcasts: eu, pelo menos, tenho sentido dor de cabeça só de ler essas duas palavras. Além disso, tenho a impressão de que as boas lives já foram feitas e, agora, só teremos transmissões ao vivo de algum youtuber fazendo barulho de pum com a mão embaixo do sovaco por meia hora. (Ou as do presidente todas as quintas-feiras, cujo conteúdo é essencialmente igual a esse do youtuber.)

– “Olha que lindo o meu pão caseiro!”

Não se trata apenas de a pandemia ter estimulado as pessoas a fazerem sua própria comida, com ou sem a ajuda dos livros da Rita Lobo, o que é belo e moral. O que aconteceu foi a criação de uma nova categoria: depois dos “pais (e mães) de pet”, os pais corujas de pão caseiro. E é claro que os padeiros da pandemia TÊM que exibir suas fornadas nas redes sociais: se você fez pão em casa e comeu sem publicar a foto no Instagram, ele evidentemente nunca existiu.

Lamento dizer a você, pai de pão: assim como seus filhos animais e humanos, seu pão caseiro é feio para caramba. E dou graças a Deus de não ter com você nenhuma relação de parentesco que me obrigue a experimentar.

– O “novo normal”

Eu não vou nem dizer com o que é que “novo normal” rima, porque a Crusoé é uma revista de família. Só quero registrar aqui minha vontade de espancar com um gato morto quem diz isso —até o gato cantar alguma ária de “La Traviata”. E quem cita a expressão para criticá-la está certo, mas está errado, porque financia o tráfico do “novo normal” (inclusive, e obviamente, eu mesmo neste texto aqui).

– Reportagens sobre “o amor nos tempos da pandemia”

Tá, a gente já entendeu que as pessoas sozinhas durante a pandemia e com medo de se contaminar tiveram de se virar e recorrer ao que o slogan do glorioso Exército brasileiro chama de “braço forte, mão amiga”. Podem parar com esse eufemismo de “amor” aí. Podem também suspender —inclusive depois que a pandemia passar— esse péssimo hábito dos repórteres que, para conseguirem emplacar alguma matéria, transformam em TENDÊNCIA coisas que só uma meia dúzia de três ou quatro amiguinhos descolados de Santa Cecília está fazendo. “Ah, as máscaras vão ser incorporadas à moda”: não. “Os seres humanos vão repensar os seus valores depois da Covid!” Olha, DEFINITIVAMENTE não.

– “Vou aproveitar para fazer muitos cursos!”

Vai nada. Posso apostar: o que você fez mesmo foi procurar “o amor nos tempos da pandemia” e se envolver em tentativas de produzir pão caseiro. Só é difícil dizer qual dessas duas iniciativas rendeu os resultados mais desastrosos.

– “Ai, que saudade de aglomerar!”

Ô, nem fale! Que saudade de bar lotado com serviço péssimo e fila na porta. Que falta fazem aqueles shows de rock com som de qualidade duvidosa e gente se espremendo na pista de um jeito que faria sardinhas em lata passarem mal. Que vontade danada de retomar os encontros familiares, com aquele monte de parente-serpente dando opiniões atrozes sobre basicamente tudo. Que saudade do CALOR HUMANO de completos estranhos (vinda, é claro, de gente que nunca precisou pegar o Penha-Lapa todo dia, ida e volta, para trabalhar).

Fale por você, saudoso. E vá se aglomerar bem longe de mim.

***

A GOIABICE DA SEMANA

O Antagonista já abordou o assunto, mas não consigo não repetir aqui: nesta quarta (16), Jair Bolsonaro subiu para o Twitter um vídeo de uma oração feita no Planalto, dizendo que o estado é laico, mas o governo dele é cristão etc. Algum gênio escolheu como trilha sonora uma versão instrumental de “Hallelujah”, música mais famosa do grande e saudoso Leonard Cohen —cuja letra mistura alusões sexuais, algumas bastante explícitas, a referências do Velho Testamento.

É o que dá não saber usar o Google (nem o Google Tradutor) direito e só entender da letra o refrão com “aleluia”. Bem feito, talquei?

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisImagem do vídeo de Bolsonaro orando no Planalto, sem a trilha sonora “lasciva”

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