A lição americana
A menos de dois meses de uma das eleições mais imprevisíveis dos Estados Unidos, um tema que estava morno emergiu para eletrizar as campanhas do presidente Donald Trump e de seu rival democrata, Joe Biden. Neste sábado, 26, Trump indicará o nome da substituta para ocupar a vaga aberta na Suprema Corte com a morte de Ruth Bader Ginsburg. Desse modo, um processo que normalmente demora setenta dias será concluído às pressas, em meio aos atropelos de uma eleição presidencial. Para os republicanos, não parece haver circunstância ou imperativo ético capaz de impedir a busca do prêmio maior, que é o de escolher mais um integrante da corte. Se o presidente efetivar sua terceira indicação, seis dos nove juízes do tribunal serão conservadores mais alinhados ao Partido Republicano.
Trump quer uma magistrada conservadora guiada por alguns princípios que defende. A indicada deve ser alguém que discorde, por exemplo, de uma decisão tomada pela Suprema Corte em 1973, em caso emblemático que ficou conhecido como Roe contra Wade. Naquele ano, a sentença favoreceu uma mulher que ficou grávida do terceiro filho e quis abortar, mas teve problemas porque a prática era ilegal no seu estado, o Texas. A Suprema Corte entendeu que o aborto era um direito garantido pela Constituição e que o estado não deveria obstar. Além da evidente reverberação na sociedade americana, a decisão constituiu um marco na política, pois empurrou os votos dos cristãos conservadores para o Partido Republicano. Desde então, a agremiação passou a ter como uma de suas prioridades reverter a decisão na Suprema Corte.
A questão é tão fulcral no partido que os republicanos ignoraram a posição assumida há apenas quatro anos sobre a inviabilidade de uma nomeação em ano eleitoral. Em 2016, a oito meses da eleição, o então presidente democrata Barack Obama indicou o nome de Merrick Garland para substituir Antonin Scalia. Em artigo publicado no Washington Post, Mitch McConnell, líder dos republicanos no Senado, argumentou que seria melhor esperar a posse do próximo presidente. “O povo americano tem agora uma oportunidade única de fazer com que sua voz seja ouvida na escolha do sucessor de Scalia, decidindo em quem confiar para liderar o país e para nomear o próximo magistrado da Suprema Corte”, escreveu o senador republicano. “Hoje é o povo americano — e não um presidente pato manco cujas prioridades e políticas foram rejeitadas — a quem deve ser dada a oportunidade para substituir Scalia.” As mesmas frases poderiam perfeitamente ser ditas neste momento. Contudo, em um prazo muitíssimo mais estreito até a eleição, McConnell ignorou o que disse no passado.
Depois de acordarem tarde para a questão, os democratas estão bem mais atentos. Hoje, 57% deles dizem que o assunto é muito importante, um aumento de 9 pontos percentuais em relação a maio. Nos últimos meses, até ONGs foram criadas para conscientizar os eleitores sobre o a importância do tema. Uma delas, a Demand Justice, diz que a Suprema Corte foi sequestrada por homens brancos desqualificados ligados às grandes corporações e que querem acabar com os direitos das mulheres. O medo deles é que um tribunal com ampla maioria conservadora solape o aborto e a igualdade de gênero. As previsões catastróficas já ajudaram a turbinar a arrecadação para a campanha de Joe Biden, mas não deixam de conter um certo exagero.
Por mais que os republicanos falem em revogar a decisão do caso Roe contra Wade, a chance de uma reviravolta não é tão alta. Isso porque a Suprema Corte americana, mesmo com o rodízio de seus integrantes, é coerente com as deliberações já tomadas. Este ano, já com dois membros novos indicados por Trump, a corte posicionou-se contra restrições estaduais impostas a mulheres que querem abortar no estado da Louisiana. Entre outras decisões que contrariaram a Casa Branca, estão uma que estabeleceu que o cargo não dá a Trump imunidade para esconder sua declaração de imposto de renda, outra que manteve os direitos dos filhos de imigrantes e uma terceira que repudiou a discriminação de pessoas com base em identidade de gênero. “Nos Estados Unidos, os precedentes são levados a sério. Como a Suprema Corte se baseia em critérios, a previsibilidade das decisões é mais alta se comparada com as deliberações do Supremo Tribunal Federal”, diz Antonio Sepulveda, pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições da UFRJ. Não existe jurisprudência de ocasião no tribunal americano.
No Brasil, as sabatinas não passam de um dia, em que os candidatos têm de responder a perguntas de parlamentares pouco preparados. Além de um debate engessado, os critérios usados pelo presidente de ocasião para escolher os nomes fogem completamente ao bipartidarismo dos Estados Unidos, em que republicanos normalmente escolhem conservadores e democratas selecionam liberais. Isso, porém, não significa algo positivo. De início, o presidente Jair Bolsonaro disse que pretendia nomear alguém “terrivelmente evangélico” para a próxima vaga no STF. Na semana passada, Bolsonaro afirmou que chamará alguém que beba cerveja com ele nos finais de semana. Dá para entender: outra diferença entre a Suprema Corte e o Supremo brasileiro, é que o tribunal americano se concentra em julgar casos que realmente possam a afrontar a Constituição americana, não processos criminais que fazem da Constituição brasileira um puxadinho para livrar a cara de criminosos do colarinho branco, principalmente. O fosso entre a corte americana e a brasileira só evidencia ainda mais a importância de acompanhar com lupa as nomeações para as cortes superiores daqui.
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