Carlos Fernandodos santos lima

Deem nomes aos bodes na sala do Brasil

02.10.20

Jair Bolsonaro é o bode na sala deste Brasil. A ideia me assaltou de repente. O presidente, com suas ideias saídas de uma roda de conversa de um boteco qualquer, com sua falta de empatia pelo ser humano, com sua deseducação científica, incapacidade de julgamento e análise dos fatos é o perfeito bode, incômodo, barulhento, malcheiroso, que distrai alguns e incita o ódio de muitos, fazendo com que todo o restante da sala pareça idealmente perfeito se o eliminarmos. Pena que não seja assim. Jair Bolsonaro é realmente um bode na sala, mas não pode ser o bode expiatório de tudo o que de mal existe no Brasil.

A verdade é que o Brasil já vinha muito mal antes mesmo de Bolsonaro. E não apenas no aspecto econômico, especialmente após o desastre do governo Dilma e de sua “nova matriz econômica”, mas também pelo apodrecimento do sistema político, com a transferência do poder das lideranças morais dos políticos que conduziram a redemocratização, como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Leonel Brizola e Miguel Arraes, dentre outros, para fazedores de dinheiro que passaram a comprar o apoio político. Para reconhecer estes últimos basta ver a lista de investigados na operação Lava Jato.

Entretanto, com um governo chefiado por um negacionista cuja compreensão do mundo e das pessoas não vai além do preconceito grotesco, parecer moderno e intelectual não é muito difícil. Assim, tem sido fácil para tantos se colocarem – ou se recolocarem – como figuras opostas ao atual presidente. Vejam o exemplo do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, ao se posicionar perante o empresariado e a imprensa – a única plateia que lhe interessa – como a antítese de Jair Bolsonaro. Nada mais falso, entretanto. Se Bolsonaro é o atraso, Maia é a vanguarda desse atraso. Cada um do seu modo, mas ambos muito, realmente muito, prejudiciais ao país.

Infelizmente o horror à pessoa de Bolsonaro e ao seu governo, plenamente justificado, traz à tona a natural tendência humana de classificar o mundo de forma maniqueísta. Se Bolsonaro é o mal, quem se opõe ou é diferente dele é o bem, nessa visão distorcida da realidade. Assim, apesar de todo treinamento intelectual da profissão, essa percepção tem sido verificada na cobertura da imprensa em geral. Os abusos e erros de Bolsonaro têm sido tantos – e não podem ser esquecidos ou relevados – que os abusos cometidos por outros políticos, e até mesmo pela alta cúpula do Judiciário – são deixados de lado ou noticiados apenas como uma questão de conflito de versões igualmente válidas, sem qualquer aprofundamento das suas reais motivações.

E as motivações de muitas decisões legislativas tomadas nos últimos anos – sem esquecer das muitas decisões do próprio Supremo Tribunal Federal – são eticamente execráveis. Isso tem ocorrido especialmente no que se refere ao arsenal legislativo de combate à corrupção. E aqui é que se revela o atraso de Rodrigo Maia e do grupo político que lidera. Sob o discurso de criminalização da política e abuso das autoridades, esse agrupamento político continua interessado em usar do crime para financiar suas eleições e o seu controle partidário, bem como abusar da sua autoridade – dada, não para isso, pela Constituição Federal –, para constranger autoridades que ousam investigá-los. Esse tem sido o papel de Rodrigo Maia.

Ser moderno é acreditar que a política possa ser constrangida a agir dentro da lei e da ética. Ser moderno, no Brasil, por paradoxal que seja, é ser republicano, acreditar naqueles princípios clássicos de divisão e controle do poder, da sacralidade da coisa pública e da respeitabilidade e honorabilidade dos cargos públicos. Isso nunca aconteceu verdadeiramente em nosso país. Ser moderno no Brasil, portanto, é ser o oposto de Bolsonaro, Maia, Alcolumbre e tantos outros. Eles representam o velho, amam o passado no qual autoridades menosprezavam as leis, e a coisa pública somente existia para a sua apropriação privada.

Maia, entretanto, ao contrário de Bolsonaro, é capaz de disfarçar sua sabujice para com interesses econômicos e políticos menores com um verniz de modernidade e aperfeiçoamento legislativo. Manipula informações, usa seu poder como fonte de jornalistas para mantê-los sob controle, aproveita-se da distração nacional para promover medidas de retrocesso. Enfim, é insidioso e sorrateiro. Basta para tanto lembrar o episódio do massacre noturno do projeto de iniciativa popular conhecido por “10 Medidas Contra a Corrupção”. Rodrigo Maia, aproveitando-se da comoção nacional pelo acidente aéreo com a equipe da Chapecoense, comandou noite adentro o festivo enterro de um projeto de aperfeiçoamento legislativo no combate à corrupção que contava com mais de 2,3 milhões de assinaturas.

Agora Rodrigo Maia prepara outro bote contra o que deu certo no Brasil. O que está sob ataque é um dos pilares de sucesso das poucas investigações de crimes do colarinho branco e do crime organizado das últimas décadas: a lei de lavagem de dinheiro. Posso afirmar sem medo de errar, amparado na minha experiência de tantos anos na frente de batalha de grandes investigações, que poucas leis foram tão revolucionárias quanto a lei que criminalizou o branqueamento de capitais.

A lei 9.613/98, com as modificações da lei 12.683/12, permitiu que se atacasse autonomamente o fluxo financeiro das organizações criminosas que atuam em presídios, no roubo de cargas, no tráfico de drogas, mas também aquelas, não menos perniciosas, que atuam no interior de partidos políticos. O objetivo de umas e de outras é o lucro ilícito da atividade criminosa. Deixá-los sem esses valores é enfraquecê-las, permitindo que as autoridades as desmantelem.

Essa lei, reconhecidamente avançada e eficaz pelos órgãos internacionais de combate à corrupção e lavagem de dinheiro, incluindo aqui o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo, o GAFI/FATF, organização intergovernamental de que o Brasil faz parte, é talvez um dos poucos diplomas legais brasileiros que carecem de aperfeiçoamentos para garantir sua eficiência no combate ao crime organizado e aos crimes do colarinho branco. Quem sabe poderiam ser aperfeiçoadas as regras de compliance antilavagem, com obrigações mais específicas e claras para a comunicação de operações suspeitas, ou outras mudanças pontuais, mas nada há nela que comprometa a sua aplicação.

No entanto, talvez seja justamente a sua eficiência que esteja incomodando tantos os parlamentares, pois o que fica claro nas suas manifestações é o objetivo, dentre outros mimos menos confessáveis para a classe política, de dificultar a aplicação da lei de lavagem de dinheiro para os crimes de caixa 2 eleitoral. No Brasil, não há nada que não possa piorar, especialmente quando os poderes da República são comandados por vanguardistas do atraso como Bolsonaro e Maia.

Além disso, a comissão montada pela Câmara dos Deputados para a análise das mudanças legislativas já demonstra a orientação equivocada dos debates. Dos cerca de quarenta membros, apenas seis são do Ministério Público, em comparação aos mais de vinte advogados, alguns bastante conhecidos na defesa de acusados na Operação Lava Jato. Não fosse somente a sub-representação do poder público, ainda há o completo desprezo pela Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, a Enccla, criada em 2003, cuja principal atividade tem sido nesses mais de 15 anos justamente discutir aperfeiçoamentos na legislação de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Tudo isso demonstra um desvio da finalidade pública das discussões.

Enfim, o impaludismo moral de Rodrigo Maia e de seu Centrão, aproveitando-se da comparação com o arremedo disforme que é o governo de Jair Bolsonaro, pode parecer moderno e bem-intencionado, mas na verdade apenas é uma vertente do mesmo atraso que prejudica o Brasil desde sempre. Felizmente eles podem tentar o que quiserem, pois não veem, por amarem em demasiado o passado de impunidade, que o novo sempre chega. E o novo vai se impor, mais cedo ou mais tarde, porque a população brasileira assim o quer.

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