Vivi Zanatta/FolhapressA ala ideológica do governo, regida por Olavo de Carvalho, ameaça abandonar o barco. Alguns já desertaram

Radicais revoltados

Os bolsonaristas ideológicos, cada vez mais escanteados por Jair Bolsonaro e por sua aliança com o Centrão, estão de novo guerreando com o governo
02.10.20

Não é de hoje que a ala ideológica do governo e o presidente Jair Bolsonaro não vêm professando o mesmo credo. Nas últimas horas, porém, muitos já falaram até em rompimento, principalmente depois que Bolsonaro escolheu o desembargador Kassio Nunes Marques para a vaga de Celso de Mello no STF — o núcleo ideológico trabalhava em favor do jurista conservador Ives Gandra Filho. Entre os contrariados, estão importantes financiadores do bolsonarismo, como o empresário Winston Ling. Desde a prisão da ativista Sara Winter, em junho, não há um dia em que os ideológicos não elevem o tom. Os decibéis são modulados, em geral, por Olavo de Carvalho, o morubixaba da turma, radicado na Virgínia. A situação só piorou de lá para cá.

Na terça-feira, 29, Olavo sintetizou num tuíte mais um de seus queixumes em relação ao governo: “Quem poderia imaginar que, em pleno governo Bolsonaro, estaria criminalizada a ideologia conservadora que o elegeu?”. Duas semanas antes, o alter ego do bolsonarismo mais radical acusou Jair Bolsonaro de ter se tornado um presidente claudicante, frágil, que só “apanha e cede”, e que é “usado como camuflagem conservadora de uma ditadura comunista” – sim, foi exatamente isso que você leu.

Olavo não fala nem age sozinho. Seus discípulos na estrutura governamental e fora dela entoam a mesma catilinária ideológica, enfurecidos que estão por terem sido desidratados no governo, num movimento que se acentuou de junho para cá, quando o governo, ameaçado pelo impeachment, resolveu abraçar calorosamente setores do Supremo Tribunal Federal contrários à Lava Jato e atrair os próceres do Centrão. Além da perda de espaço para o conjunto de partidos fisiológicos versado na prática de trocar votos por verbas e cargos na Esplanada, o que os integrantes da ala ideológica mais se ressentem é de não poder mais influenciar nos rumos do governo como antes.

“Esse núcleo político-ideológico sempre foi associado ao que chamam de ideologia bolsonarista, que nada mais é do que o discurso que articula as razões e justificativas das propostas e políticas defendidas por Bolsonaro nas eleições de 2018 e que prosperaram nas urnas. Com o enfraquecimento desse núcleo, esse conjunto de razões e justificativas vem perdendo força e dando lugar a uma forma de neutralismo tecnocrático que, por natureza, é incapaz de desafiar a ideologia dominante e justificar ações que não sejam consideradas técnicas por ela”, lamentou recentemente Filipe Martins, assessor especial da Presidência da República e um dos arautos da ala ideológica.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéRefugiado nos EUA e sentindo-se abandonado por Bolsonaro, Allan dos Santos manifestou sua revolta nas redes sociais: “Não me ligue mais”. Mas não era bem assim
Olhos e ouvidos de Olavo de Carvalho no Planalto, Martins é mais sutil do que seu mestre ao vocalizar a contrariedade do núcleo ideológico. Mas não deixa de dar suas estocadas. A tese de Olavo, compartilhada pelo assessor palaciano, é a de que a guerra cultural na sociedade, travada em especial na imprensa e nas universidades, seria uma batalha mais importante do que a própria vitória eleitoral, que, em sua visão, pode inclusive ser ilusória do ponto de vista político. Mas, como o triunfo nas urnas veio antes do esperado, o ideal era que, como num tabuleiro de War, o território cultural fosse conquistado aos poucos, valendo-se dos instrumentos da máquina administrativa controlados com mãos de ferro pelos que ascenderam ao poder. Uma espécie de gramscismo às avessas, em alusão ao ideário de Antonio Gramsci, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano e uma das referências do pensamento de esquerda no século 20.

Na avaliação dos olavistas, porém, a “luta principal” foi abandonada. Para além da questão puramente ideológica e da disputa por cargos, isso gerou efeitos colaterais indesejados, como o cerco do STF a integrantes do grupo por meio dos inquéritos que apuram supostas ameaças a ministros do Supremo e investigam a organização e o patrocínio dos chamados atos antidemocráticos. Foi em razão dessas investigações que a ativista Sara Winter acabou parando atrás das grades recentemente e o blogueiro Allan dos Santos, depois de ser alvo de diversos mandados de busca e apreensão, refugiou-se nos Estados Unidos. Ambos são considerados a quintessência do olavismo e são defendidos por ele nas redes sociais dia sim, outro também.

Ocorre que o presidente passou a fazer ouvidos de mercador para a franja mais radical do bolsonarismo – menos por convicção e mais por estratégia –, após ter entendido que só conseguiria estabilidade para o governo se sucumbisse ao Centrão e costurasse uma composição na base do ganha-ganha com cabeças-coroadas do Judiciário. Em bom português, se curvar ao establishment que sempre criticou (mas do qual sempre fez parte, afinal de contas, só que lá no fundão). Ao menos no curto prazo, a estratégia articulada com o apoio da ala militar e integrantes do primeiro escalão do governo, como o ministro das Comunicações, Fabio Faria, logrou êxito. O governo saiu de cenário de turbulência provável, especialmente após a prisão do ínclito Fabrício Queiroz em junho na casa do advogado Frederick Wassef em Atibaia, para uma aprovação popular de 40%, segundo as mais recentes pesquisas.

A saída de cena dos filhos fez parte da articulação. Não sem ruídos. Recentemente, Carlos Bolsonaro disparou sua metralhadora verbal contra um encontro do ministro da Educação, Milton Ribeiro, com a deputada Tabata Amaral, para discutir a retomada das aulas presenciais. “Nenhum destes entende absolutamente nada dos motivos do porquê Bolsonaro foi eleito, e por incrível que pareça, parece que sabem e cagam”, atacou o filho 02 do presidente, naquele sua linguagem elegante.

Ministério das Relações ExterioresMinistério das Relações ExterioresPor ter cargo no governo, Filipe Martins é mais sutil do que os demais olavistas. Mas critica o abandono da “guerra cultural” pelo governo
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos comandado por Damares Alves, até outro dia considerada parceira de primeira hora da cartilha ideológica, também entrou na alça de mira. Desde que sua mulher, Sandra Terena, foi exonerada da pasta, o blogueiro Oswaldo Eustáquio, um dos heróis do bolsonarismo, virou um crítico ácido do governo. A interlocutores, ele reclama da falta de apoio do Planalto na investigação sobre os atos antidemocráticos, da qual também é alvo, e da aliança do governo com o Centrão. Sandra Terena, que chegou ao ministério festejada como a primeira indígena a ocupar um cargo numa secretaria de governo, também está magoada. Ao deixar o posto de secretária nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, ela denunciou a existência de irregularidades em convênios firmados pela pasta com uma ONG de Sergipe, como mostrou Crusoé.

Nos últimos dias, também tem sobrado para militares como Eduardo Pazuello, o ministro-general recém-efetivado no Ministério da Saúde. Pazuello atiçou a ira da militância ao reformular uma portaria que obrigava médicos a notificarem a polícia quando atendessem vítimas de estupro interessadas em fazer aborto. Pela nova redação, a palavra “obrigatória” foi suprimida. A medida é recomendada nos “casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro”. Outra alteração no texto envolveu o trecho que determinava que os profissionais de saúde deveriam “informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada” – essa parte foi totalmente retirada da nova versão do documento.

“Pazuello fez caca. E é mais um pepino para Bolsonaro descascar agora, como se ele já não tivesse mais que o suficiente. O ‘apoio’ dos militares está saindo caro. Muito caro”, afirmou Alessandro Loiola, assessor e braço-direito do ex-secretário especial da Cultura Roberto Alvim, outro expoente do bolsonarismo radical.

O empresário Winston Ling, um dos financiadores do bolsonarismo, anunciou seu desembarque do governo: “Acabou”, afirmou em seu perfil no Twitter. Mas ele já voltou atrás
O que fez entornar o caldo, no entanto, foi mesmo a definição do desembargador piauiense Kassio Nunes, chancelado pelo Centrão e por togados do STF, para a vaga de Celso de Mello do Supremo. “Acabou”, anunciou nas redes sociais o empresário Leandro Ruschel, bolsonarista empedernido. Desde a manhã de quarta-feira, 30, quando o nome do desembargador surgiu no noticiário, a turma já impulsionava a hashtag #ConservadorNoSupremoJá, numa clara campanha em favor de Ives Gandra Filho pelo seu histórico de decisões em defesa do conservadorismo. Mas Inês já estava morta no dia seguinte: Bolsonaro anunciou de viva voz a indicação de Nunes na sua live. Além de Ruschel, comunicou publicamente o desembarque o também empresário bolsonarista Winston Ling. “Hora de desembarcar. Acabou. Um erro desta envergadura não se faz por acaso”, afirmou, para voltar atrás logo depois. Na noite de quinta-feira, 1º, a hashtag era #decepção.

Para quem assiste à briga de perto, as escaramuças entre os ideológicos e o governo ainda não serão capazes de mudar as posições das trincheiras da maioria. Ao menos por ora — quem sabe até a próxima decisão do presidente que os contrarie novamente. Ainda resta uma relação de simbiose: Bolsonaro precisa da ação multiplicadora e histriônica do grupo nas redes quando lhe convém e o grupo necessita das benesses do governo, mesmo que hoje elas estejam bem aquém do esperado. A situação encontra paralelo no chumbo trocado entre Lula e a esquerda radical petista em períodos de seu governo. Quando queria agradar aos moderados, Lula mantinha uma distância regulamentar e não se furtava em alardear que só ele poderia controlá-los. Quando interessava ao governo, porém, os movimentos desses setores eram muito bem articulados por integrantes do Palácio do Planalto, com a anuência do chefe petista. Na visão semelhante de Bolsonaro, embora “problemático”, o núcleo ideológico já deu provas suficientes de “fidelidade” e continua a exercer papel fundamental nas redes. Para usar um termo da moda, na briga entre o governo e sua franja mais radical, apesar de deserção de boa parte da tropa, ainda não haverá um “cancelamento” geral. Mas a relação já não é mais a mesma.

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