RuyGoiaba

Treta em Debate

02.10.20

“Piada em Debate” é, de longe, o quadro mais premonitório da TV Pirata — caso os jovens e extraterrestres que me leem não saibam, trata-se daquele programa de humor que a Globo levou ao ar no fim dos anos 1980. O esquete começava com uma piada bem idiota. Por exemplo: mãe e filha no avião, a filha passando mal. A comissária de bordo pergunta: “Foi comida?”. A mãe: “Foi, mas casa amanhã” (eu disse que era BEM idiota). Daí se passava a um painel com sociólogos, psicólogos e outros ólogos debatendo ferozmente o sentido da piada.

Fast-forward para décadas depois: hoje internet é precisamente isso, um lugar onde pessoas passam um tempo infinito TEORIZANDO sobre piadas e tretas. E nada, absolutamente nada, é tão insignificante que não possa ser discutido. O que para seres humanos normais é só um vídeo engraçado do WhatsApp — que a gente vê, ri, repassa pro grupo da firma e depois esquece — para esses analistas é mais uma chance de explicar o Brasil, o mundo, o capitalismo predatório, o machismo, o feminismo ou tudo junto. Não julgo: pessoas precisam ganhar a vida sendo picaretas honestamente, e eu mesmo “resumi o Brasil” na minha coluna passada. Mas, como diria o poeta, tem hora que enche o saco.

O exemplo mais recente é o Barraco do Leblon, no fim de semana passado. Resuminho para quem orbitava fora do planeta: conversível dirigido por um bombado, com duas gostosas de biquíni, passa na frente de um bar na Dias Ferreira. Uma das moças leva uma garrafa de plástico nas costas, desce do carro para tirar satisfação e dá um tapa na arquiteta que, sentada à mesa do bar, havia arremessado a garrafa. Corre de volta para o carro e é perseguida pelo namorado da arquiteta, que arranca seu sutiã na hora em que o conversível acelera. Tudo isso registrado em vídeo por Andréa Veiga, ex-paquita da Xuxa —e melhor que a live alegadamente profissional de Gal Costa no dia seguinte.

Os desdobramentos do barraco foram o esperado: arquiteta explica em vídeo por que tinha jogado a garrafa, na linha “tinha criança vendo” (não existe mesmo lugar mais adequado para criança que um bar do Leblon na sexta à noite). Bombado diz que é “engenheiro concursado da Petrobras” (claro, e eu sou o Frank Sinatra) e ameaça processar a arquiteta. Moça da garrafada nas costas dá a sua versão dos fatos com uma voz que, por obra e graça das bombas de testosterona, parece a da Nair Bello depois de 50 anos fumando (sem o sotaque da Mooca). Todo mundo com alguma passagem pela polícia, como O Globo revelou depois. E, claro, todo mundo ganhando um porrilhão de seguidores no Instagram, que é o habitat natural dessa turma-ostentação: até a arquiteta exibe uma série de fotos nas areias de Dubai, em poses à la Tieta do Agreste.

E é nesse ponto que chegam os especialistas, os grandes debatedores de treta, teorizando. E como eles teorizam, meu Deus. A culpa é da pandemia, que está deixando as pessoas mais agressivas e barraqueiras (antes, como sabemos, o brasileiro médio era um lorde). A culpa é do machismo internalizado, que faz o corpo da mulher ainda ser alvo de controle. A culpa é do bolsonarismo, que reprime o sexo (eu posso apostar que TODOS os envolvidos na briga, sem exceção, cravaram o 17 na eleição passada). Enfim, o Barraco do Leblon, assim como o do Gero — muito mais sem graça, com aqueles paulistanos ricos e idiotas falando em “berço” e “vou chamar meu delegado” —, explica o Brasil, e nós precisamos aproveitá-lo para REFLETIR sobre o país que queremos.

O pessoal fala como se “reflexão” tivesse sido o forte do Bananão nos últimos 520 anos. Sinto dizer que, nesse caso, não há nada a refletir: quem consegue fruir as possibilidades de entretenimento do barraco sem ceder à tentação de analisá-lo já está prestando um relevante serviço à pátria, que é deixar de ser chato. (Quem consegue ignorar é ainda melhor, mas acho que é pedir demais do brasileiro. Todo mundo gosta de ver o pau comendo na casa de Noca: desde que não se metam a fazer a Sociologia do Pau Comendo, pra mim tá bom.)

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A GOIABICE DA SEMANA

E Michelle Bolsonaro foi à polícia prestar queixa contra os Detonautas — a mulher de Jair se diz vítima de “calúnia, injúria e difamação” por causa de “Micheque”, música que basicamente pergunta aquilo que o casal presidencial continua se recusando a responder sobre os 89 mil reais depositados por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama. Não só: Micheque, ops, Michelle também quer proibir a execução pública da música e retirá-la das plataformas digitais.

Censura é uma coisa tão, mas tão absolutamente burra que o efeito só pode ser, como foi, propaganda: a música já superou os 2,2 milhões de visualizações no YouTube e entrou na parada das mais ouvidas no Spotify. Até eu ouvi — eu, que em condições normais de temperatura e pressão jamais passaria perto da obra de Tico Santa Cruz e companhia. O bolsonarismo é realmente imperdoável.

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AVISO DE FÉRIAS

Deixo o melhor para o fim: vocês ficarão livres de mim pelas próximas semanas. Finjam sentir minha falta e continuem prestigiando o jornalismo da Crusoé.

Até a volta, se ainda houver Brasil.

Isac Nóbrega/PRIsac Nóbrega/PRMichelle mostra o tamanho do tiro pela culatra com a sua tentativa de censura

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