A resposta de Fux
Na semana em que Jair Bolsonaro, sem corar a face, bateu no peito para dizer que acabou com a Lava Jato porque não há corrupção em seu governo e Renan Calheiros avaliou que o fim da operação será o “grande legado” do presidente, uma medida adotada pelo novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, representou uma lufada de esperança para defensores do combate à corrupção no país. Na tentativa de recuperar o que sobrou da imagem do STF, destroçada em razão de decisões em favor de encalacrados figurões da política, Fux propôs – com a anuência de outros ministros – que os inquéritos e as ações penais em tramitação na corte voltassem a ser examinadas em plenário, pelos onze ministros. Isso significa que esses processos não serão mais julgados pelas turmas, compostas por cinco integrantes cada uma. A mudança pode ajudar a interromper a tendência acelerada de volta aos tempos em que a impunidade reinava em Brasília: a Segunda Turma, em especial, composta por ministros como Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski e para onde desaguavam muitos dos recursos de réus da Lava Jato, vinha se transformando no paraíso dos criminosos do colarinho branco.
As ações penais eram submetidas ao plenário até 2014, mas depois do julgamento mensalão a corte alterou a regra em virtude do número elevado de processos que se acumulavam e formavam teias de aranha nas gavetas do tribunal. Permaneceram sob o escrutínio do plenário apenas os casos envolvendo os chefes dos poderes — o presidente da República e os presidentes da Câmara, do Senado ou do próprio STF. O principal argumento de Fux para mudar o trâmite foi o de que já não havia mais tantas ações criminais que justificassem a divisão de casos entre as duas turmas com o objetivo de dar celeridade ao andamento dos processos. Segundo ele, em 2018 havia 500 inquéritos e 89 ações penais na corte. Hoje, esses números estão em 166 e 29, respectivamente, sendo 29 inquéritos e sete ações penais da Lava Jato.
A proposta foi aprovada por unanimidade em uma sessão administrativa, mas não sem o previsível muxoxo de Gilmar Mendes, que usou um pretexto lateral para reclamar da decisão. “Eu estou recebendo essa notícia agora. De fato, não faz sentido a gente chegar do almoço e receber a notícia de que tem uma reforma regimental”, resmungou. Coube ao decano da corte, ministro Celso de Mello, que nesta quinta-feira, 8, participou de sua última sessão plenária, resumir o sentimento da maioria. “Hoje, houve redução drástica (de processos). A mim parece que o retorno ao plenário restabelece uma situação tradicional. Tem também a marca da racionalidade, porque agora são as turmas que estão se inviabilizando”, disse.
Sem a presença de Celso, ele passou pautar casos de corrupção e a registrar uma sequência de convenientes empates em dois a dois que, pela regra em vigor, beneficiavam os réus e investigados. Foi assim, por exemplo, que o ministro Tribunal de Contas da União Vital do Rêgo teve uma ação penal por corrupção e lavagem de dinheiro contra ele suspensa. Com a decisão, a acusação de que o ministro recebeu 3 milhões de reais da empreiteira OAS para atuar em seu favor na CPI da Petrobras seguiu para o arquivo. Outro processo pautado por Mendes gerou a anulação de uma sentença do então juiz Sergio Moro, no episódio Banestado, sob a justificativa de “quebra da imparcialidade”. A decisão abriu brecha para que todos os casos derivados da investigação fossem questionados e serviu para que Moro tivesse sua atuação colocada em xeque, para o deleite da ala pró-impunidade do tribunal.
O futuro era estrategicamente planejado para que a “sangria”, para ficar na expressão utilizada por um ex-senador alvo da operação, continuasse a ser estancada na Segunda Turma. Com a aposentadoria antecipada do decano, uma articulação foi desencadeada nos bastidores do STF para que Toffoli assumisse a vaga, a pretexto de “proteger” Kassio Marques, indicado por Bolsonaro para o lugar de Celso, de quem, em tese, o desembargador seria o substituto natural. Em 2015, esse mesmo argumento fundamentou a ida do mesmo Toffoli para a Segunda Turma na vaga deixada pelo ex-ministro e presidente da corte, Joaquim Barbosa. Nos anos seguintes, Toffoli ainda integrou o grupo quando a ministra Cármen Lúcia assumiu a presidência do STF, entre 2016 e 2018. Como previsto, durante essas passagens, ele se alinhou a Gilmar Mendes e a Lewandowski ao impingir reveses à Lava Jato.
“Com Toffoli ou mesmo Kassio na Segunda Turma, viraria um passeio”, reconheceu um integrante do tribunal. Ao impedir que o triunvirato prevalecesse, Fux, que prometeu em sua posse fortalecer o combate à corrupção, passou também a participar das deliberações sobre os casos penais, uma vez que o presidente do STF não integra nenhuma das duas turmas. “A volta das ações penais e inquéritos ao plenário do Supremo confere mais legitimidade às decisões. Assim poderemos saber as posições de todos os ministros sobre as questões postas em julgamento, e não mais apenas de três ou quatro deles”, afirmou o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, Eduardo Brandão.
O maior impacto da mudança regimental, no entanto, é que ficará um pouco mais complicado anular, por exemplo, as condenações de Lula de maneira irrefutável e declarar Sergio Moro suspeito. É que, na avaliação de integrantes do tribunal, a decisão de devolver ao plenário o julgamento de denúncias e ações penais, embora não alcance diretamente os habeas corpus, pode fazer com que aumente a pressão para que casos sensíveis envolvendo a anulação de sentenças, como o HC de Lula pela suspeição de Moro, sejam também submetidos aos onze ministros. Hoje, o habeas corpus que questiona a imparcialidade do ex-juiz conta com Edson Fachin como relator. Ele já votou contra o pedido do petista, a exemplo de Cármen Lúcia. O julgamento na Segunda Turma, no entanto, acabou suspenso após pedido de vista de Gilmar Mendes, que, por presidir o colegiado, tem a prerrogativa de pautar as matérias.
No plenário, a tendência é que os julgamentos da Lava Jato sejam decididos no photochart, por uma a diferença de um ou dois votos. Com o reforço de integrantes da Primeira Turma, considerada mais rígida na aplicação da lei penal, de um lado devem ficar Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Rosa Weber e, do outro, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Kassio Marques. Os outros dois ministros, Marco Aurélio Mello e Alexandre Moraes, seriam os fiéis da balança a depender da votação, cabendo a Fux o voto de minerva. Ou seja, o jogo que pendia claramente para uma direção, agora está totalmente em aberto.
Em tese, na condição de presidente da mais alta corte do Judiciário brasileiro, Luiz Fux não deveria ter sido quase que compelido a reafirmar sua autoridade ao longo da semana. Quando comandou o STF entre 2008 e 2010, o ministro Gilmar Mendes disse que “o presidente de um poder, como é o caso do Supremo, tem mais é que falar, não nos autos, mas bem alto”. Foi como agiu Fux, só que agora para o lamento do mesmo Gilmar, diante do que presenciou nos últimos dias em plena luz do sol escaldante da capital federal. Sem qualquer pudor, Bolsonaro e Kassio Marques foram jantar na casa de Gilmar, para pedir o aval do anfitrião — e de Dias Toffoli — para a indicação de Kassio Marques ao tribunal. Se quisesse conferir ares institucionais à escolha, o presidente deveria ter procurado Fux. Mas ele preferiu mandar a liturgia às favas. Também considerou mais conveniente a seus interesses manter interlocução com Gilmar, relator da ação que pode garantir a Flávio Bolsonaro, seu filho 01, o foro especial concedido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro na investigação sobre o “rachid” operado por Fabrício Queiroz.
Na terça-feira, 7, uma entrevista de Renan Calheiros à CNN Brasil constituiu o retrato mais bem acabado do “delicado momento” ao qual se referiu Celso. Num sinal nada sutil de que a paz conveniente, os acordões e os conchavos voltam à ordem do dia na capital federal, Renan sapecou que Bolsonaro “pode deixar um grande legado para o Brasil, que é o desmonte desse estado policialesco”. Ou seja, da Lava Jato. O ínclito senador ainda afirmou que o presidente “já encadeou várias medidas” nesse sentido, incluindo a transferência do Coaf para o organograma do Banco Central, a demissão de Sergio Moro, o controle sobre a Receita Federal, a nomeação de Augusto Aras à PGR e, por fim, a indicação de Kassio Marques, com a bênção da ala garantista do STF em consórcio com investigados do Centrão. Nunca, em toda sua trajetória pública, Renan havia sido tão honesto. Nesse caso, para o azar do Brasil. Para a sorte de quem quer ver os criminosos punidos, Fux matou essa no peito.
Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.