SergioMoro

De novo, a execução em segunda instância

09.10.20

Em 17 de fevereiro de 2016, trabalhava em meu Gabinete da 13ª Vara Federal de Curitiba, na Lava Jato, quando recebi a notícia salvo engano de uma amiga desembargadora federal de que o Supremo Tribunal Federal estava votando um caso no qual poderia reverter a sua jurisprudência anterior de que o início da execução da pena dependia do trânsito em julgado da última decisão.

No Habeas Corpus 126.292, o Supremo, com uma maioria de sete votos contra quatro, tendo como relator o eminente e saudoso Ministro Teori Zavascki, reviu o anterior precedente no Habeas Corpus 84.078, de 2009, e passou a admitir que, após a condenação por um Tribunal de Apelação, ou seja, pela segunda instância, seria possível, desde logo, iniciar a execução da pena pois os recursos aos Tribunais Superiores não teriam efeito de suspender a eficácia do julgado.

Fui inteiramente surpreendido. Não tinha essa possibilidade em vista. Mas foi uma grata surpresa. Há vários anos em Vara Criminal, vi casos complexos virarem pó por nunca alcançarem o trânsito em julgado dada a prodigalidade do nosso sistema recursal.

Claro, há argumentos para se defender a exigência do trânsito em julgado. Não sou maniqueísta ao ponto de avaliar que defender essa exigência é inviável do ponto de vista técnico ou moral. Magistrados, ademais, têm um bom álibi já que não devem criar lei, mas interpretá-la, então o texto é sempre um refúgio.

Do ponto de vista prático, é inevitável concluir, porém, que a exigência do trânsito em julgado favorece principalmente aqueles que, com recursos financeiros, conseguem sustentar recursos processuais por anos perante as cortes de justiça. Fato que acaba gerando a impunidade dos poderosos, às vezes em detrimento de vítimas pobres. No fundo, um retrato da desigualdade social. Lembro o questionamento de Anatole France sobre a majestosa igualdade formal da lei: proibir tanto o pobre como o rico de dormir debaixo da ponte não é exatamente tratá-los de maneira igual.

O estado falha, assim, em um dos seus deveres mais básicos, garantir a proteção da lei e da justiça a todos, inclusive às vítimas de crimes. Não é preciso ir muito longe, o referido HC 84.078 envolvia tentativa de assassinato. A vítima levou dois tiros, um na boca, outro perto da coluna, mas sobreviveu. O autor do atentado, um fazendeiro, nunca cumpriu pena, pois o processo não chegou ao fim em tempo hábil. Após a condenação em segunda instância, o recurso passou doze anos em Brasília e foi reconhecida ao fim a prescrição.

Situações desta espécie, de negativa da proteção da justiça às vítimas, existem aos borbotões. Processos que nunca terminam ou se encerram com reconhecimento da prescrição pela demora.

De outro lado, os levantamentos estatísticos revelam que o percentual de absolvições por recursos nos Tribunais Superiores é ínfimo. Em levantamento efetuado pelo ministro Luís Roberto Barroso, foi identificado um índice de 0,035% de absolvições em cerca de 25.000 casosé certo, que, nesses processos minoritários, uma liminar concedida no recurso poderia ter impedido uma execução de pena injusta.

Infelizmente, o Supremo, após reafirmar por pelo menos três vezes a execução da condenação em segunda instância desde o HC 126.292, mudou, dessa vez por seis a cinco, a jurisprudência em 7 de novembro de 2019, quando julgou as ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, passando novamente a exigir o trânsito em julgado. Mais uma vez reitero que respeito o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, o que não me impede de emitir críticas pontuais aos seus julgados.

Voltando a Anatole France, se uma pessoa pobre e uma rica dividirem, porventura, o vão de uma ponte no Brasil por uma noite, e se uma delas cometer um crime contra a outra, há boas chances, com a nova mudança da jurisprudência, de que o rico, se for o responsável pelo crime, permaneça impune, denegando justiça à vítima pobre. Já a alternativa inversa não é verdadeira.

Mas por que tratar deste tema agora?

Há três possibilidades de retomarmos à execução da condenação em segunda instância.

Uma, por emenda constitucional. Temos na Câmara a PEC 199/2019, já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça e que poderia ser votada e aprovada em comissão especial e no plenário.

Outra, por alteração da lei. Temos no Senado o PL 166/2019, que também já foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça. Pode ser levado de imediato ao plenário.

A terceira, por nova alteração da jurisprudência. No período de menos de um ano, surgirão duas vagas no Supremo. Nas mãos do Presidente da República, encontra-se o poder de restabelecer a jurisprudência do HC 126.292, ou seja, a execução da condenação criminal em segunda instância.

O caminho do Supremo parece, no contexto político atual, o mais fácil, já que não se vislumbra com facilidade vontade política suficiente no Parlamento para aprovar a PEC ou o PL.

A dúvida é: assim quer o Executivo?

Na última semana, foi indicado para a próxima vaga no Supremo Tribunal Federal o desembargador federal Kassio Nunes Marques. Não conheço pessoalmente o desembargador. Pode ser ótima pessoa e um grande jurista. Desejo-lhe sorte e sucesso. Mas não é uma questão pessoal. O importante é conhecer sua opinião sobre temas cruciais atuais e um dos mais relevantes, no momento, diz respeito a sua posição sobre a execução da condenação criminal em segunda instância. No entendimento do candidato, pode-se, após uma condenação criminal em segunda instância, executar, desde logo, a pena independentemente de outro elemento? Ou seriam ainda necessários elementos adicionais, como os mesmos requisitos de urgência que envolvem a decretação de prisões cautelares? Nesse último caso, não há, na prática, execução em segunda instância, pois essa já é e sempre foi uma possibilidade existente. Isso, com certeza, será tema da sabatina, no Senado Federal.

Para os eleitos e eleitores de 2018, essas questões deveriam ser cruciais. É claro que o cidadão comum pode questionar a relevância desta questão hoje, com a pandemia e a economia debilitada à sua porta. Para ele, eu diria: crimes geram vítimas e, um dia, uma delas pode ser você ou um familiar. Na corrupção, a vítima é toda sociedade e os recursos desviados fazem falta em investimentos em saúde, educação e infraestrutura. Aliás, há suspeitas de desvios de recursos até mesmo no financiamento de ações de saúde contra a Covid-19 ou de pessoas de posses recebendo indevidamente o auxílio emergencial. Todos esses que estão sendo presos agora por alguns dias deixarão em breve a prisão e não cumprirão pena, de fato, se não for restabelecida a execução da condenação criminal em segunda instância. Reduzir a impunidade da corrupção ou de outros crimes, para o que é essencial a volta da execução em segunda instância, faz parte da agenda de reformas modernizantes para o país. Ela voltará? Espero novamente ser surpreendido com uma boa notícia, mas confesso que estou um pouco cético.

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