MarioSabino

Kassio kopiado e kolado

09.10.20

Quando eu pensava que já havia conhecido de tudo, eis que me aparece o desembargador Kassio Marques. Para além do seu nome começar com a letra k, ele me surpreendeu com a explicação sobre a notícia de que teria plagiado o advogado Saul Tourinho Leal, na sua tese de mestrado apresentada na Universidade Autônoma de Lisboa. Suposto plagiário e suposto plagiado disseram que ambos mantêm um “acervo doutrinário comum”. Pelo que entendi, trata-se de um arquivo de textos que um e outro podem usar conforme as necessidades, sem citar a autoria. “Será que alguém pensou nisso antes?”, perguntei-me. Resolvi, então, recorrer ao Dictionnaire des Plagiaires (Dicionário dos Plagiadores), que comprei muito anos atrás em Zurique, onde estava para ouvir o que um espião americano a serviço de um banqueiro brasileiro tinha a dizer sobre contas não declaradas no exterior de gente graúda do governo do PT. Ainda contarei essa aventura rocambolesca.

O autor do livro, Roland de Chaudenay, deu-se ao trabalho de citar em ordem alfabética os autores de língua francesa que, ocasionalmente ou de maneira sistemática, cometeram algum tipo de plágio. A lista é extensa e inclui Voltaire, Honoré de Balzac e Émile Zola. Na literatura, é relativamente comum que um autor inclua sem qualquer crédito à fonte citações de trechos de livros de outros escritores que admira, seja integralmente ou por meio de paráfrase. Copiar o estilo também vale. Tudo em nome da chamada intertextualidade. Parte-se, nesses casos, da ideia de que existe uma herança literária a ser compartilhada — e que a citação é homenagem, não roubo, além de ser uma forma de desafiar o leitor a identificar a referência. Eu, por exemplo, entrei nesse jogo ao escrever um conto de tons crepusculares, que integra a coletânea O Antinarciso, publicado em 2005. O conto se chama Eliot e narra a despedida de um casal. O título se deve ao fato de o conto ser construído quase que inteiramente com versos do poeta anglo-americano T.S. Eliot. Dei outra dica ao leitor colocando na epígrafe parte do que ele disse sobre roubos literários: “Poetas imaturos imitam; poetas maduros roubam; poetas ruins desfiguram o que eles pegam e bons poetas fazem disso algo melhor ou pelo menos algo diferente”.

Deixemos Eliot descansar em paz, que Deus o tenha, porque estamos mesmo é no mundo de Kassio Marques. Como ia dizendo, recorri ao Dicionário dos Plagiadores para verificar se havia algo sobre “acervo doutrinário comum” na lista dos tipos de plágio elaborada pelo senhor De Chaudenay. Ele é implacável como se fosse diretor de escola religiosa e certamente condenaria Eliot — considera plágio qualquer tipo de intertextualidade ou o que for, com penas variáveis. Do seu elenco fazem parte as seguintes modalidades: à maneira de, alusão, citação, clichê, compilação, imitação, a própria intertextualidade, paródia, pastiche, pilhagem e por aí vai. Não há, contudo, “acervo doutrinário comum”.

Fechei o dicionário e, crédulo que sou (ou era) em livros, pensei com alívio: se não existe o tipo, é porque não houve plágio. O rigor do senhor De Chaudenay é uma garantia disso. Pelo menos nesse aspecto, eu poderia confiar em Kassio Marques para ser ministro do Supremo Tribunal Federal. E, afinal de contas, ele não havia sido defendido pelo próprio advogado de quem teria plagiado pedaços inteiros da sua tese de mestrado? Não existe melhor defesa, convenha-se. Assim sendo, eu não seria leviano de continuar a falar em plágio e, mais importante, teria uma conversa séria com Rodrigo Rangel, diretor da Crusoé, sobre a reportagem que revelou a história. Diria a ele para parar com fofoca.

Fui fazer outra coisa.

Durante a noite, porém, um pensamento insidioso tomou conta de mim: mas se até Voltaire fora incluído pelo senhor De Chaudenay na lista de plagiadores, não haveria mesmo nenhuma modalidade que pudesse abarcar o “acervo doutrinário comum”? Sem conseguir dormir, peguei o dicionário de novo, para ler o elenco detidamente, não mais na diagonal, como havia feito durante ao dia, em meio ao lufa-lufa profissional. E eis que dois verbetes me chamaram atenção: copia e cola e estelionato. O primeiro todo mundo conhece: a sua prática em trabalhos escolares é sinônimo de nota zero. O segundo ganha mais uma acepção na classificação do senhor De Chaudenay: “consiste em plagiar a si mesmo e a vender como inédito um escrito já publicado em outro lugar”. 

Fiquei aturdido: seria o “o acervo doutrinário comum” de Kassio Marques e Saul Tourinho Leal uma combinação de ambos os tipos? A originalidade espantaria até mesmo o vigilante e escaldado senhor De Chaudenay. Mas a dúvida sobre a originalidade intelectual de Kassio Marques e Saul Tourinho Leal logo se dissipou, quando lembrei da mensagem tranquilizadora de Jair Bolsonaro: a de que Kassio Marques está 100% alinhado com ele. Entendi, então, que o desembargador é um pós-doutor da pós-verdade.

Acredito no meu presidente. Vou queimar o Dicionário dos Plagiadores, que só fez aumentar a minha angústia da influênciae focar no bem da nação. Temos todos um “acervo doutrinário comum” a preservar para as próximas gerações.

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