A sabatina de cá
As inconsistências no currículo e os plágios cometidos pelo desembargador Kassio Nunes Marques não foram capazes de alterar o animus da maioria dos senadores que participará nesta quarta-feira, 21, da sabatina do desembargador indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal. A atmosfera no Senado é de jogo jogado. Ou seja, o escrutínio que deveria se caracterizar pelo rigor institucional, com questionamentos e testes de estresse que coloquem em perspectiva sua real capacidade para assumir o cargo e avaliar a sua reputação, tende a transcorrer num clima ameno, o que fará com que Kassio, ao fim e ao cabo, tenha seu nome aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da casa e, em seguida, pelo plenário, sem grandes dificuldades. Esse, pelo menos, é o script que está rascunhado em Brasília.
Parlamentares governistas, integrantes do Centrão e do MDB incluídos, inflam o peito para dizer que já têm mais de 60 votos a favor do indicado de Jair Bolsonaro – são necessários 41 votos favoráveis entre os 81 senadores. Para obter o sinal verde do Senado sem sobressaltos, Kassio contou durante todo o tempo com o prestimoso apoio do presidente. Em franca campanha pelo seu escolhido, Bolsonaro chegou a levar o desembargador ao já famoso jantar na casa de Gilmar Mendes, com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e Dias Toffoli, do STF. Depois, comemorou a indicação durante outro jantar em que foi recebido por Toffoli em sua residência com um caloroso abraço. Ao longo desta semana, foi a vez de Bolsonaro alcançar o presidente do STF, Luiz Fux, para tratar do tema. Numa visita de cortesia que durou 40 minutos, o presidente procurou convencer Fux, alijado até então das conversas sobre a indicação do piauiense, de que Kassio era um nome qualificado para a corte.
Ao Senado, palco da sabatina de quinta-feira, 21, o magistrado procurou dourar a pílula de suas habilitações ao cargo de ministro. Apresentou-se como “pós-doutor”, título que nem sequer existe – programas de pós-doutorado não conferem títulos aos seus participantes. E, ao encaminhar uma carta a senadores com fotos de certificados e cópias de e-mails trocados com professores da Europa, não fez qualquer menção aos indícios de plágio em trabalhos acadêmicos. Como Crusoé revelou, a dissertação de mestrado de Marques tem trechos extensos idênticos a artigos publicados por seu amigo advogado Saul Tourinho Leal – a prática nada ilibada se repetiu no doutorado e em um artigo publicado por ele na revista oficial do TRF-1. Ainda no documento enviado aos parlamentares, nem mesmo a “pós-graduação”, que na verdade era um curso de quatro dias na Universidade de La Coruña, foi retificada. Para minimizar o caso, o magistrado disse ter havido uma confusão “de ordem semântica”.
Na liturgia inerente a democracias, o objetivo da sabatina é determinar a lisura, o o conhecimento e as posições do candidato. Embaixadores aspirantes a representar o Brasil no exterior, por exemplo, são avaliados em sessão secreta, mas a Constituição impõe escrutínio público a indicados para o Supremo justamente para munir a sociedade de toda a sorte de informações sobre a pessoa que ocupará um cargo praticamente vitalício na mais alta corte do país. A sabatina não é feita para atender conveniências de parte a parte. No entanto, parece ser esse o espírito que norteou o relatório produzido durante a semana pelo senador Eduardo Braga, que será submetido à CCJ do Senado na próxima quarta-feira. O parlamentar fez da peça uma defesa apaixonada de Kassio Marques. Seu relatório enaltece a carreira do desembargador, relativiza as inconsistências de seu currículo e, assim como a carta enviada pelo piauiense aos senadores, ignora por completo os contundentes indicativos de plágios cometidos por Kassio. O parlamentar também minimizou o fato de o desembargador ter incluído em seu currículo o acompanhamento de palestras como um pós-doutorado.
Crusoé apurou que Eduardo Braga chegou a fazer pressão sobre a senadora Simone Tebet, presidente da CCJ e também do MDB, para ficar com a relatoria. Braga argumentou com Tebet que o MDB, como maior partido do Senado, deveria ser o responsável por relatar a indicação. A senadora aventou a possibilidade de reivindicar a função para ela própria, mas acabou cedendo ao amazonense.
Oriovisto não é voz isolada no bloco, de onde se espera maior oposição ao indicado por Bolsonaro. Embora no Muda Senado haja senadores dispostos a não facilitar a vida de Kassio, como é o caso de Alessandro Vieira, que cogita apresentar um voto em separado ao relatório de Eduardo Braga, existem também aqueles que não querem se indispor com o provável futuro ministro do STF.
Kassio Marques ainda conta com apoiadores de peso, como o presidente da casa, Davi Alcolumbre. Há quem acredite, inclusive, que a pressa de Alcolumbre em aprovar o nome do desembargador é mais um movimento do presidente do Senado para rasgar o regimento da casa em busca da reeleição, já que o novo ministro do STF estaria inclinado a chancelar sua recondução ao cargo. O desembargador tem oscilado nas opiniões emitidas sobre o assunto nos últimos dias. Aos aliados de Alcolumbre, Kassio diz taxativamente ser contrário a intervenções do Judiciário em decisões do Legislativo, tese que constitui música aos ouvidos do presidente do Senado. Mas, em recente cafezinho na residência de Randolfe Rodrigues, integrante do Muda Senado e líder da minoria, o magistrado disse que a Constituição é clara ao vedar a hipótese de reeleição.
Durante a sabatina, os senadores inscritos terão dez minutos para fazer seus questionamentos, e o desembargador terá o mesmo tempo para responder. O regimento garante ainda réplica e tréplica de cinco minutos. Não há limite de tempo para a sessão. Em 2015, o PT – então governo – tentou abreviar a inquirição de Luiz Edson Fachin, quando a sabatina já chegava a dez horas de duração, mas ainda assim a sessão se prolongou por mais uma hora. O mesmo ocorreu quando Alexandre de Moraes foi avaliado, em 2017.
Embora tenha sido alvo de uma saraivada de críticas nos últimos anos, em razão do poder que confere ao presidente da República de turno, a maneira como são escolhidos os ministros do Supremo segue praticamente o mesmo modelo desde que o STF foi criado, em 1890. De lá para cá, somente cinco nomes foram barrados pelo Legislativo. Todos no ano de 1894, durante o governo de Floriano Peixoto. Aos 48 anos, Kassio Nunes Marques, ao contrário, já pode começar a lustrar a cadeira de ministro do STF, ocupada até então pelo decano Celso de Mello. A julgar pelo estado de espírito dos atuais senadores, ele certamente não se juntará ao rol dos vetados. A história se repete como plágio.
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