Presidência da RepúblicaJair Bolsonaro com Chico Rodrigues antes do flagrante escatológico: amigos de longa data

‘Aqui não tem corrupção’

O flagrante no vice-líder do governo no Senado com dinheiro nas nádegas, revelado por Crusoé, desafia o discurso de Bolsonaro e expõe os subterrâneos da aliança com o Centrão. A seguir, listamos os aliados enrolados do presidente
16.10.20

Por razões históricas e culturais, a palavra do presidente do Brasil tem um peso como em poucos outros países. Por isso, mais do que nunca, ela deve ser sempre medida e bem pesada pelo mandatário de turno, sob pena de ele ser traído pelos fatos. Pouco afeito a liturgias, o presidente Bolsonaro nunca demonstrou preocupação com o comedimento verbal. O problema é que falar pelos cotovelos, sem freios e, pior, sem o compromisso com a verdade, utilizando-se da retórica para encantar convertidos, tem um custo alto para quem está sentado na cadeira presidencial. Na manhã da última quarta-feira, 14, o presidente explorou uma ação da Polícia Federal em Roraima para ironizar, junto a apoiadores que estavam em frente ao Palácio da Alvorada, a reação ao seu discurso da semana anterior, quando afirmou que havia acabado com a Lava Jato porque “não tem mais corrupção no governo”. “Acabou a Lava Jato, pessoal? A PF está lá em Roraima hoje (quarta). Para mim não tem. No meu governo não tem (corrupção) porque botamos gente lá comprometida com a honestidade, com o futuro do Brasil”, disse o presidente a sua costumeira claque.

Bolsonaro acabaria pego no contrapé algumas horas depois. Não foi a primeira vez, é verdade. O problema é que, agora, o movimento em falso envolveu um tema caro a ele próprio, ao menos no discurso, e ao bolsonarismo: o combate à corrupção. Batizada de Desvid-19, a operação deflagrada naquela manhã para apurar um esquema de desvio de 20 milhões de reais de emendas parlamentares destinadas ao combate à pandemia de coronavírus em Roraima tinha como um dos alvos o vice-líder do governo no Senado, Chico Rodrigues, um bolsonarista de carteirinha com quem o presidente, em mais um de seus incontáveis vídeos, e de novo traído pela incontinência verbal, disse manter “quase uma união estável”. Flagrado pelos policiais em uma situação constrangedora, o senador entrou definitivamente para os anais da crônica político-policial brasileira.

Como Crusoé revelou ainda na quarta-feira, ao cumprir o mandado de busca e apreensão na casa do senador do DEM em Boa Vista, a capital de Roraima, a Polícia Federal encontrou dinheiro escondido na cueca de Chico Rodrigues, com um detalhe tão indecente quanto escatológico: uma parte da bufunfa estava acomodada entre as nádegas do vice-líder de Bolsonaro. Os relatos dos agentes que fizeram a abordagem são sórdidos, de fazer corar até o mais impudico cidadão.

Quando chegaram ao imóvel, por volta das 6 horas da manhã, Chico Rodrigues vestia pijama. Indagado se havia dinheiro em espécie na casa, o senador negou. Quando os agentes terminaram de vasculhar o quarto do filho dele, notaram que havia “um grande volume, em formato retangular, na parte traseira das vestes do senador”, que voltou a negar a existência de dinheiro ao ser questionado sobre o tal volume incomum. Desconfiados, os policiais decidiram revistar o político, e encontraram 15 mil reais na região das nádegas – algumas cédulas, acomodadas em uma área ainda mais íntima, foram retiradas pelos policiais sujas de fezes. Em seguida, após nova insistência dos investigadores, o senador, irritado, retirou mais 17,9 mil da parte da frente da cueca.

O instante da apreensão foi registrado em vídeo pelos policiais. As imagens estão mantidas em sigilo “para não gerar maiores constrangimentos”, segundo o relatório policial. Além do dinheiro localizado dentro da cueca e entre as nádegas do senador, a PF apreendeu mais dez mil reais e seis mil dólares em um cofre no armário de Chico Rodrigues. A reação do senador de negar a existência de dinheiro vivo e depois esconder as notas nos lugares mais recônditos levaram a delegada Luciana Caires a pedir a prisão preventiva do parlamentar, por embaraço à investigação. O pedido, contudo, foi negado pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, que havia autorizado a busca e apreensão.

Para além da situação repugnante que protagonizou, Rodrigues é suspeito de integrar uma organização criminosa que desviava dinheiro de compras superfaturadas de equipamentos de proteção individual, os EPIs, e testes rápidos de Covid. As aquisições eram feitas pelo governo de Roraima por meio de recursos de emenda parlamentar liberada pelo governo federal de forma emergencial. Segundo a Controladoria-Geral da União, houve sobrepreço de 965,8 mil reais na compra dos produtos, contratados de uma empresa registrada em nome do cunhado de uma assessora do senador. O parlamentar chegou a pedir um avião da FAB ao Ministério da Defesa para transportar os itens da firma suspeita desde São Paulo até Boa Vista. Por mais que Bolsonaro se esforce para tentar se descolar do escândalo protagonizado por seu amigo pessoal Chico Rodrigues  escolhido por ele para a posição de vice-líder do governo no Senado, o dinheiro envolvido na trama saiu de Brasília. Sim, do governo federal. Não é algo trivial. Em agosto, Crusoé mostrou como o governo estava usando o dinheiro para combater o coronavírus para agradar aliados e possíveis aliados no Congresso, liberando recursos para cidades indicadas por parlamentares, sem o menor controle.

Embora fosse até então pouco conhecido no cenário nacional, Chico Rodrigues não é um parceiro qualquer do presidente. Depois de cinco mandatos de deputado federal, entre 1991 e 2010, época em que conviveu com Bolsonaro na Câmara, o parlamentar do DEM desbancou nomes de peso na política local, como o ex-ministro Romero Jucá, na eleição para senador em 2018, graças ao apoio do atual presidente na campanha. Assim que chegou ao Senado, ganhou uma das vagas de vice-líder do governo, que confere prestígio, cargos e maior trânsito nos corredores do poder. Em retribuição, empregou em seu gabinete o primo preferido dos filhos de Bolsonaro — em especial do 02, Carlos Bolsonaro. Leonardo Rodrigues de Jesus, conhecido como Léo Índio, estava nomeado até quinta-feira como assessor do senador, recebendo salário bruto mensal de quase 23 mil reais. Após o episódio do dinheiro nas nádegas do chefe, ele pediu exoneração.

Chico Rodrigues também integrava com alguma frequência missões internacionais de integrantes do clã Bolsonaro e chegou a acompanhar o próprio presidente em uma viagem a Israel, em 2019. Na semana passada, durante um almoço promovido por Bolsonaro para discutir pautas do Congresso e confraternizar com os aliados, lá estava ele mais uma vez.

O episódio envolvendo Rodrigues, embora inédito na política nacional, lembra outros casos emblemáticos de flagrantes constrangedores de ocultação de dinheiro na história recente do país. Em 2005, no auge do mensalão do PT, um assessor do deputado petista José Guimarães foi flagrado com 100 mil dólares escondidos na cueca, no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Ele embarcaria para Fortaleza, berço político do parlamentar. O Ministério Público afirmou que o dinheiro seria propina relacionada a negócios do Banco do Nordeste, mas Guimarães foi absolvido pela Justiça. Quatro anos depois, no mensalão do DEM, em Brasília, Leonardo Prudente, então presidente da Câmara do Distrito Federal, foi flagrado em vídeo escondendo propina na meia. Em 2017, já na Lava Jato, a PF descobriu que o ex-ministro Geddel Vieira Lima precisou reservar um apartamento em Salvador, na Bahia, para esconder o dinheiro arrecadado ilicitamente, tamanha era a quantia acumulada. Foram encontrados 51 milhões de reais em espécie dentro de caixas e malas no “bunker” de Geddel, preso e condenado por lavagem de dinheiro e associação criminosa juntamente com o irmão, o ex-deputado Lúcio Vieira Lima.

Naquela conversa com seus apoiadores na manhã da última quarta-feira, Bolsonaro afirmou que se algum integrante do seu governo se envolvesse com corrupção ele daria “uma voadora no pescoço dele”. Na manhã seguinte, porém, após a revelação feita por Crusoé de que seu vice-líder no Senado é investigado por suspeita de desvio de dinheiro destinado ao combate à pandemia e escondia notas de reais entre as nádegas, o presidente resolveu atacar o mensageiro. Disse que “esse caso é mais uma mentira da imprensa” para tentar desqualificar o seu governo. Já na noite de quinta, ele finalmente comentou o caso de Chico Rodrigues, mas sem pronunciar o nome do agora ex-vice-líder do governo – ele havia sido destituído do posto pela manhã. Ao lado de Wagner Rosário, ministro da CGU, e de André Mendonça, ministro da Justiça, o presidente tentou desvincular o escândalo do Planalto. “Alguns querem dizer que o caso de Roraima tem a ver com o governo porque ele é o meu vice-líder. Olha, pessoal. Eu tenho, no total, 18 vice-líderes no Congresso. Quinze na Câmara, que foram indicados pelos líderes partidários, e três no Senado, que é de comum acordo.” Mesmo assim, o presidente voltou a se embananar com as palavras ao admitir que “pode estar havendo corrupção em algum setor”. “Pode estar havendo corrupção em algum setor? Pode, não é fácil você administrar. Por exemplo: o Rogério Marinho tem 20 mil obras em execução. Como ele vai tomar conta dessas 20 mil obras? Ele faz em cima do critério da confiança, pede apoio da CGU”, afirmou.

Mais cedo, quando Bolsonaro ainda não havia se pronunciado, coube ao vice-presidente, Hamilton Mourão, defender publicamente a saída de Chico Rodrigues do cargo, comunicada no fim da manhã pelo líder do governo, Fernando Bezerra Coelho, do MDB, após conversa com o senador. Nas redes sociais, Rodrigues afirmou que acredita “na justiça dos homens e na justiça divina” e que tem um “passado limpo e uma vida decente”. Não explicou, contudo, a origem do dinheiro que tentou esconder quando a PF bateu à sua porta. À tarde, o ministro Luís Roberto Barroso decidiu afastar o senador de seu mandato no Senado por 90 dias – a decisão, porém, precisa ser chancelada pelo plenário da casa.

Explicações sobre práticas suspeitas ou acusações de malfeitos com o dinheiro público não têm sido uma exigência de Bolsonaro, que foi eleito sob a bandeira anticorrupção, mas se aliou à ala fisiológica do Congresso, versada na prática de trocar votos e apoio no Legislativo por verbas e cargos – e todos estão cansados de saber no que isso tende a resultar. O próprio líder do governo no Senado, que comunicou a saída de Chico Rodrigues, é prova recente disso. Em setembro do ano passado, Fernando Bezerra foi alvo de busca e apreensão da PF em uma investigação que apura suposto recebimento de 5,5 milhões de reais em propinas pagas por empreiteiras denunciadas na Lava Jato. À época, a ação causou mal-estar no Planalto e Bezerra colocou o cargo à disposição, mas o governo decidiu mantê-lo por causa dos ótimos relacionamentos dele no Congresso e do amplo apoio que recebeu dos colegas de casa, incluindo o agora famoso Chico Rodrigues. É uma questão de prioridades, como se nota. A ficha policial de Bezerra, aliás, era conhecida por Bolsonaro quando o presidente o escolheu para liderar seu governo no Senado, no início de 2019. Ex-ministro do governo Dilma Rousseff, ele já era investigado por suposto recebimento de 41,5 milhões em propinas de empreiteiras contratadas pela Petrobras nas obras da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, sua terra natal.

Mais recentemente, a bancada dos enrolados na Justiça com os quais Bolsonaro decidiu se aliar para cativar o Congresso recebeu o apoio de outras duas importantes lideranças do Centrão na mira da Lava Jato: o deputado Arthur Lira e o senador Ciro Nogueira, ambos do Progressistas do Nordeste. Chamado de “Meu Malvado Favorito” por Bolsonaro, Lira herdou o espólio do pai, o ex-senador Benedito Lira, dono de vários postos relevantes em estatais durante os governos do PT. Ele é réu em duas ações no STF, uma sob acusação de ter recebido propina de um ex-dirigente da Companhia Brasileira de Trens, a CBTU, e outra no chamado “Quadrilhão do PP”, acusado de receber 2,6 milhões de reais em vantagens indevidas pagas por empreiteiras. Há quatro meses, também foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República por suposto recebimento ilícito de 1,6 milhão de reais da Queiroz Galvão — em outubro, a PGR recuou e pediu a rejeição desta denúncia ao Supremo, na primeira mudança de postura da equipe de Augusto Aras em benefício de um neoaliado do presidente.

A mesma sorte ainda não teve Ciro Nogueira, réu por organização criminosa no mesmo caso do quadrilhão e denunciado neste ano por suposto recebimento de 7,3 milhões em propinas da Odebrecht. A proximidade com Bolsonaro nos últimos meses rendeu ao pepista o apelido de 05, numa alusão a forma como o presidente se refere aos seus filhos. Além da sustentação na Câmara e no Senado, a aliança de Bolsonaro com os dois próceres do Centrão é uma estratégia do presidente para tentar penetrar no Nordeste e diminuir a influência do ex-presidente Lula e de partidos de esquerda na região. Em troca de apoio, Bolsonaro abriu os cofres e cedeu espaço no governo aos indicados pelo Centrão, como cargos estratégicos no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE, no Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, o Dnocs, e na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba, a Codevasf. O sinal verde de Bolsonaro para a turma implicada na Lava Jato coincide com o discurso e as ações do presidente para enfraquecer a maior operação de combate à corrupção da história do país.

Em agosto, com a indicação de Ricardo Barros, do Progressistas do Paraná, para a liderança do governo na Câmara, a tropa bolsonarista do Centrão ganhou mais um reforço. O movimento ocorreu depois que Bolsonaro se aproximou do ex-presidente Michel Temer em busca de apoio para salvar seu mandato, ameaçado àquela altura pelas ações de abuso de poder econômico no Tribunal Superior Eleitoral e pelo inquérito que investiga os atos antidemocráticos no STF. Não sem um custo político. Ex-ministro da Saúde no governo Temer, Ricardo Barros assumiu a articulação política na Câmara ao mesmo tempo que passou a ser alvo de uma nova investigação, na qual é acusado por delatores da Galvão Engenharia de receber 5 milhões de reais para intermediar negócios com a companhia paranaense de energia. Tão logo assumiu o posto, Barros deu forma à coalizão da impunidade montada pelo governo Bolsonaro para se safar a todo custo de um processo de impeachment, estratégia que começou a ganhar corpo após a demissão do ex-ministro Sergio Moro, em maio, com críticas à Lava Jato e à atuação do ex-juiz na 13ª Vara Federal de Curitiba.

Foi esse espírito anti-Lava Jato, associado à então fragilidade do presidente, que despertou o interesse de caciques partidários, profissionais do jogo de interesses da política brasiliense, em abraçar o governo de corpo e alma. Na linha de frente das lideranças que voltaram a exercer influência na capital federal, mesmo sem mandato, estão ainda Valdemar Costa Neto, o ex-presidente do PL condenado no mensalão do PT, e Gilberto Kassab, presidente do PSD, acusado de receber propina e caixa dois de empreiteiras como a Odebrecht e a Galvão Engenharia e mesada da JBS. A dupla tem atuado para garantir governabilidade a Bolsonaro, em troca de toda a sorte de benesses – algumas inconfessáveis, outras nem tanto.

Como Crusoé mostrou na semana passada, quem tem procuração para negociar com essas lideranças em nome de Bolsonaro é o senador Flávio Bolsonaro, o filho mais político do presidente e que até agora não conseguiu explicar à Justiça do Rio as transações em espécie envolvendo seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa fluminense, por meio do ex-assessor Fabrício Queiroz, e da sua franquia de chocolates. Este, aliás, parece ser o único caso de supostos malfeitos que de fato incomoda o presidente, por envolver não apenas seu primogênito, como a primeira-dama Michele Bolsonaro, destinatária dos já famosos 89 mil reais em cheques da família de Queiroz até hoje não esclarecidos.

Na própria Esplanada dos Ministérios, há cinco ministros investigados ou denunciados por supostas fraudes, desvios de dinheiro público ou enriquecimento ilícito relacionados a suas atuações pretéritas. As suspeitas não poupam nem os ministros mais poderosos. Tarcísio Gomes, da Infraestrutura, responde a uma ação de improbidade movida pelo Ministério Público Federal de Alagoas por suposto dano ao erário de 26 milhões de reais em um contrato para obras na BR-104 assinado por ele em 2013, quando era diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, no governo Dilma. Já o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, foi denunciado pelo Ministério Público de Minas Gerais no suposto esquema das candidaturas laranjas do PSL em 2018, enquanto Rogério Marinho, titular do Desenvolvimento Regional, responde a uma ação penal no Rio Grande do Norte por suposto desvio de dinheiro da Câmara Municipal de Natal por meio de funcionários fantasmas, entre 2005 e 2006. Sobre o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, ainda pesa um inquérito sobre suposto enriquecimento ilícito no período em ele intercalou a atuação de advogado com cargos no governo de Geraldo Alckmin, do PSDB, em São Paulo.

A principal receita adotada pela classe política para “acabar” com escândalos de corrupção continua sendo aparelhar instituições de controle, enfraquecer os mecanismos de fiscalização e amputar investigações para que nada venha à tona. É o velho normal de volta. A diferença é que os alvos de agora passaram a ser amigos do rei – e o rei ainda finge que não é com ele.

Com reportagem de Fabio Serapião

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