Reprodução/TV BandeirantesAndré do Rap sai pela porta da frente do presídio após o HC: início de uma crise em Brasília

O rap do Supremo

Após o habeas corpus concedido por Marco Aurélio Mello a chefão do PCC abrir crise no STF, ministros se unem ao presidente da corte, Luiz Fux, e chancelam decisão de manter a prisão do foragido André do Rap
16.10.20

A revelação, por Crusoé, de que o habeas corpus que libertou André Oliveira Macedo, o André do Rap, um dos principais líderes do Primeiro Comando da Capital, foi patrocinado pelo escritório de um ex-assessor do ministro Marco Aurélio Mello, autor da decisão, apimentou um enredo que se transformou em crise no Supremo Tribunal Federal, mas que tem como pano de fundo a conhecida vontade de boa parte dos parlamentares federais em asfixiar cada vez mais o combate à corrupção. A fuga do traficante também é reflexo da aliança entre o governo de Jair Bolsonaro e o Centrão. Ao deixar de vetar a alteração na lei que acabou  beneficiando o traficante, para não desagradar parte do Congresso, o presidente foi contra suas principais bandeiras de campanha e, na mesma tacada, conseguiu atrapalhar o intenso trabalho que a Polícia Federal vem fazendo para evitar que o PCC se transforme em uma máfia.

A suspensão da decisão de Marco Aurélio Mello pelo ministro Luiz Fux não conseguiu evitar a fuga de André do Rap, mas impediu um efeito cascata que poderia beneficiar centenas de traficantes e criminosos por todo o país. O preço audível foi uma intensa troca de farpas. Marco Aurélio Mello condenou os que “fazem política” e jogam “para a turba, para a plateia”, em alusão ao presidente do STF, e disse que a decisão de Luiz Fux representava uma espécie de autofagia na corte. A resposta veio na quarta-feira,14, quando o plenário começou a julgar o caso. Segundo Luiz Fux, o traficante “debochou” da Justiça e se valeu da decisão de Marco Aurélio para fugir da lei. O resultado em plenário, que decidiu pela nova prisão do traficante foragido, reforça a posição do presidente da corte.

O caso que desaguou no STF começou ainda em 2013, quando, a partir de uma denúncia, a PF começou a investigar uma célula do PCC no Porto de Santos que seria responsável pelo envio de drogas para o exterior. No ano seguinte, após meses de interceptações telefônicas e diligências contra os investigados, a PF colocou na rua a Operação Oversea. André do Rap era um dos alvos de mandado de prisão por ser considerado um dos cabeças do grupo criminoso. O traficante seguiu foragido pelos cinco anos seguintes, mas, em 2019, foi preso em uma mansão em Angra dos Reis, no litoral do Rio de Janeiro. Desde então, André do Rap se cercou de advogados para tentar reverter a prisão. Recorreu na primeira instância, depois no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em seguida  ao Superior Tribunal de Justiça e, diante de sucessivas negativas, acionou o STF por meio de vários habeas corpus.

Rosinei Coutinho/SCO/STFRosinei Coutinho/SCO/STFLuiz Fux suspendeu a decisão de Marco Aurélio, que o acusou de autoritarismo
As tentativas no Supremo mostram como criminosos com dinheiro para gastar com advogados conseguem, ao menos, terem seus casos analisados com rapidez pela corte. Desde maio deste ano, vários advogados entraram com ao menos nove pedidos de soltura em nome do chefe de André do Rap. Em 26 de maio, por exemplo, o advogado Roberto Delmanto, de uma cara e conhecida banca de São Paulo, entrou com dois pedidos. O primeiro para tentar estender a André do Rap a decisão de Marco Aurélio Mello que havia libertado um comparsa do traficante também preso na Operação Oversea e outro com a alegação de que a prisão preventiva não havia sido reavaliada na decisão do STJ que negou um dos pedidos de soltura. A extensão foi negada e o segundo habeas corpus foi concedido, em 1º de outubro, mas o traficante não pôde ser solto porque havia contra ele outra ordem de prisão.

Em 1º de julho, foi a vez de outro advogado, Anderson Domingues, protocolar um HC. Entretanto, após o caso ir parar com a ministra Rosa Weber, o defensor de André do Rap desistiu do pedido. Tiveram o mesmo caminho outros dois pedidos de Domingues registrados em 5 e 25 de agosto. Após Marco Aurélio Mello enviar os casos para a turma, o advogado desistiu de ambas as petições – era melhor não correr o risco de Rosa decidir contra o que eles queriam. Em setembro, os defensores de André do Rap voltaram à carga. No dia 24, Domingues entrou com mais um HC. Nesse ponto, há um dado interessante: embora tenha caído com Marco Aurélio Mello, o advogado desistiu de ir adiante. No dia anterior, a advogada Ana Luísa Gonçalves Rocha havia impetrado o habeas corpus que resultou, dias depois, em 2 de outubro, na soltura do traficante.

Com apenas 24 anos, Ana Luísa é sócia de Eduardo Ubaldo Barbosa, ex-assessor de Marco Aurélio, no escritório Ubaldo Barbosa Advogados. A banca é sediada em um prédio comercial da Asa Norte, em Brasília, e começou a funcionar recentemente, depois de Barbosa deixar o emprego no Supremo, em fevereiro. A dupla de advogados atua em duas dezenas de casos na corte. Desses processos, ao menos um, um mandado de segurança, está sob análise no gabinete de Marco Aurélio. Entre os clientes dos advogados estão outros traficantes, um ex-presidente do Tribunal de Contas do Amapá e parlamentares como o senador Alessandro Vieira e a deputada Tábata Amaral. Eles também aparecem em uma ação do partido Cidadania.

A inexperiência da advogada que conseguiu libertar André do Rap chama ainda mais atenção pelo fato de o seu cliente ser uma das principais lideranças do PCC, com patrimônio estimado em mais de 20 milhões de reais e que poderia contratar as bancas advocatícias mais caras do país, como comprovam os pedidos feitos anteriormente por Roberto Delmanto. A Operação Oversea é considerada é um marco, desde sua deflagração, em 2014, por ter conseguido não só desarticular uma importante célula da facção no Porto de Santos, mas também alcançar o elo entre a facção e os maiores compradores de cocaína da Europa. André do Rap fazia a ponte com grupos criminosos como a ‘Ndrangheta, máfia italiana considerada como uma das maiores do mundo e responsável por comandar a entrada de droga no Velho Continente. A importância do traficante de 43 anos se reflete na vida de luxo que ele levava até ser preso. André do Rap foi encontrado em uma mansão em Angra dos Reis graças aos rastros deixados na compra de uma lancha de 6 milhões de reais. Tinha dois helicópteros à disposição.

Mateus Bonomi/CrusoéMateus Bonomi/CrusoéMarco Aurélio despachou o HC impetrado por sócia de um ex-assessor de seu gabinete
Embora o caso tenha origem há seis anos, com a Operação Oversea, foi em 30 de outubro de 2019, quando André do Rap já estava preso, condenado em segunda instância, que seu futuro começou a mudar. Naquele dia, o deputado federal Lafayette de Andrada, do Republicanos de Minas Gerais, um parlamentar do Centrão cuja família está na política desde o século retrasado, sugeriu no grupo de trabalho que discutia o projeto anticrime do então ministro Sergio Moro uma alteração no código de processo penal. Segundo a mudança, a cada 90 dias a Justiça seria obrigada a reavaliar a situação dos presos preventivos. A medida tinha, obviamente, como alvo a Lava Jato e suas prisões. Pego de surpresa na reunião, o relator do projeto, Capitão Augusto, disse que iria incluir a proposta, mas que ela seria revisada quando chegasse no Plenário. Não foi o que aconteceu. A proposta foi aprovada e restou a Moro tentar evitar a sanção por Jair Bolsonaro.

À época, em dezembro de 2019, o presidente já flertava com o Centrão e afins, enquanto seu filho senador, Flávio Bolsonaro, se enrolava no caso Queiroz. “Não se apresenta razoável imputar ao magistrado tamanha responsabilidade, especialmente, quando se tem noção da realidade judicial brasileira, marcada por uma infinidade de processos”, tentou argumentar Moro em despacho enviado a Bolsonaro. A tentativa do ex-juiz da Lava Jato deu em nada. Oito dias depois, Bolsonaro sancionou o projeto e não vetou a mudança no artigo 316, aquele que beneficiou André do Rap. A regra contrabandeada pelo Congresso para soltar corruptos acabou, assim, por beneficiar um dos maiores traficantes do Brasil. No julgamento sobre o habeas corpus concedido por Marco Aurélio Mello, além de validar a nova prisão do traficante, o STF decidiu que, se o juiz de um processo deixar de reavaliar a prisão preventiva no prazo de 90 dias, isso não implicará a soltura automática do réu.

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