Fábio Motta/Estadão conteúdo"Cada ministro, em seu comportamento, tem que ser independente e tem que dar evidências disso à sociedade"

O verdadeiro risco para o STF

Um dos maiores especialistas em Judiciário do país, o jurista Joaquim Falcão diz que a liturgia da Suprema Corte brasileira está sendo atacada
16.10.20

A aposentadoria do ministro Celso de Mello após 31 anos de atuação no Supremo Tribunal Federal e a posse de Luiz Fux na presidência da corte alteraram o jogo de forças na cúpula do Poder Judiciário. A chegada iminente do primeiro ministro escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro também elevou a expectativa sobre mudanças de comportamento e guinadas jurisprudenciais. Há, ainda, outros elementos no horizonte. Se confirmada a nomeação, o desembargador Kassio Marques vestirá a toga do STF desgastado por inconsistências vexaminosas em seu currículo e pelo apoio de padrinhos políticos para lá de enrolados. Para o jurista Joaquim Falcão, fundador da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, no Rio, e um dos maiores especialistas nos tribunais do país, a necessária liturgia da Suprema Corte brasileira está sendo atacada.

O professor, também imortal da Academia Brasileira de Letras desde novembro de 2018, critica a proximidade excessiva de ministros da corte com integrantes dos outros poderes. “Já existe dentro do Supremo o entendimento de que o tribunal foi longe demais na exposição pública”, diz. Sobre Kassio Marques, Falcão defende que ele revele detalhes de suas tratativas políticas para chegar ao cargo e deixe claro, desde já, se cogita declarar-se suspeito em eventuais julgamentos envolvendo assuntos pessoais do presidente Jair Bolsonaro e de seus familiares. E mais: cobra uma sabatina crítica para o desembargador no Senado: “Ele tem que mostrar, menos pelas palavras e mais pelos comportamentos, quais são os critérios dele”. Na ponta oposta, Joaquim Falcão elogia a postura de Celso de Mello em suas três décadas na corte. “Ele se comportava sempre dentro dos padrões e parâmetros da instituição. Não confraternizava com as partes, com réus, não ia a encontros com presidentes da República, nem com parlamentares, e era muito recolhido.” Eis a entrevista.

O ministro Celso de Mello deixou o Supremo nesta semana, após 31 anos. Qual será o impacto da saída dele no dia a dia da corte?
Eu gosto de chamá-lo de ministro institucional. O Celso de Mello se comportava sempre dentro dos padrões e parâmetros da instituição. Ele não confraternizava com as partes, com réus, não ia a encontros com presidentes da República, nem com parlamentares, e era muito recolhido, inclusive junto aos próprios colegas. Não era das festas, das reuniões de Brasília. E isso foi desde o começo — ele sempre foi cerimonioso. Um ministro tem que ser raro, não pode ser alguém para quem você liga e ele atende o telefone na esquina. Esse exemplo de comportamento é muito importante. Alguns já seguem essa rotina, como Rosa Weber, Fachin. Para os ministros do Supremo, quanto menos, mais. É como a Bauhaus (refere-se à escola alemã que revolucionou o design moderno com formas e linhas simplificadas). Quanto mais dentro dos autos e dos ritos, melhor. Essa postura é um legado importante do Celso de Mello.

Essa liturgia do cargo está em falta no Supremo?
Essa liturgia está sendo atacada por vários ministros. Não é só o Supremo que tem que ser independente. Cada ministro, em seu comportamento, tem que ser independente e tem que dar evidências disso à sociedade. Tem que sinalizar essa independência aos cidadãos. Já existe dentro do Supremo esse entendimento de que o tribunal foi longe demais na exposição pública. A mídia gosta de um off, gosta, como agora, de intrigas, como o problema entre Fux e Marco Aurélio. Mas o Supremo tem que ser imune a isso.

Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para a vaga de Celso de Mello, o desembargador Kassio Marques participou de encontros como os que o sr. criticou, como almoços com parlamentares investigados.
Sim, e justo nesse processo da indicação, que é um momento muito sensível. Agora ele tem que mostrar, menos pelas palavras e mais pelos comportamentos, quais são os critérios dele. Até o momento, não foi explicada de forma suficiente a questão da titulação dele. Em princípio, se aceita que ele tenha as qualidades necessárias. A questão é: por que o currículo diz o que não é comprovável? E esse é o grande ponto. O caso deixou de ser uma questão sobre o currículo e passou a ser uma questão sobre valores. Há um vácuo de transparência que ele deveria preencher. Deveria chamar a imprensa, entidades, pessoas do mundo jurídico, e responder a todas as perguntas que estão no ar e que a sociedade faz. Ele não vai ter que ser transparente apenas na sabatina.

Um dos critérios para ser nomeado para o STF é ter reputação ilibada. Se comprovados os fortes indícios de que o desembargador Kassio Marques cometeu plágio em sua dissertação de mestrado, isso representaria uma quebra desse critério?
Como disse a orientadora dele, esse assunto está na comissão de ética da Universidade Autônoma de Lisboa. Temos agora indícios, mas não temos evidências. Espero que essas evidências estejam disponíveis antes da sabatina.

DivulgaçãoDivulgação“Sinto que uma grande parte dos ministros está constrangida com essa intimidade entre os poderes”
Representantes do Centrão, como o senador Ciro Nogueira, e outros investigados participaram do processo de escolha de Kassio. Somado a suspeitas de ingerência do presidente da República na PF e na PGR, esse fato compromete a credibilidade das instituições?
Duas perguntas precisariam ser feitas a ele. A primeira é: com quem o senhor tratou antes da indicação para conseguir ser nomeado? Essa pergunta em geral é feita nos Estados Unidos. Agora mesmo, na sabatina da indicada por Donald Trump (Amy Barrett), eles quiseram saber quem está financiando a campanha dela para Suprema Corte. Aqui, é preciso perguntar ao desembargador com quem ele esteve, com quem conversou antes da indicação. É uma transparência necessária. Também é preciso questioná-lo: em quais casos o senhor se declarará suspeito para julgar? Os casos do governo, evidentemente, são questões do Executivo, mas e os casos que envolvem questões pessoais sobre o presidente e seus familiares, o senhor vai se julgar suspeito para julgar? Não são os casos de interesse do Executivo, porque isso é legítimo, mas são casos de interesse individual. Isso tem que ficar claro.

Alguns ministros, como o ex-presidente Dias Toffoli, se aproximaram muito do Planalto e do presidente da República. Qual o impacto disso para a imagem da corte?
Quando o presidente (Jair Bolsonaro) faz uma visita pessoal à casa do ministro Toffoli, ao lado do desembargador Kassio, isso não passa uma mensagem de independência. Se eles tivessem que fazer uma visita, tinha que ser uma visita institucional ao ministro Luiz Fux, que é o presidente do Supremo. E o Fux sentiu o golpe. É bom não esquecer que o ministro Fux é lutador de jiu-jítsu. Na mesma hora, o candidato procurou o Fux para se justificar. O presidente do Supremo está reagindo, como reagiu agora no caso da soltura do traficante. O Fux tem um estilo diferente do Toffoli na questão de que o Supremo não deve negociar com o Executivo nem com o Congresso.

Quando assumiu a presidência do Supremo, o ministro Toffoli prometeu um “pacto entre os poderes”. É papel do Supremo fazer acordos com os outros poderes?
Essa questão do pacto entre os poderes foi uma leitura equivocada do ministro Toffoli a respeito do que ocorreu durante a gestão do ministro (Nelson) Jobim. Ele propôs a Lula, como presidente da República, e a (José) Sarney, como presidente do Congresso, um pacto pela Justiça. Era um pacto que envolvia apenas questões do Judiciário. Fazer pactos de atuação política é algo que está fora da competência do presidente do Supremo. Eu sinto que uma grande parte dos ministros está constrangida com essa intimidade entre os poderes. Eles não têm voz para falar, mas têm insatisfações para indicar. Interferir e propor políticas públicas de administração não é função do Supremo.

A chegada do ministro Fux à presidência do STF pode reverter uma sequência de derrotas impostas à Lava Jato?
Falam muito que a Lava Jato está sendo atacada e em perigo. Mas, se você vir os grandes casos dos últimos dois meses, são casos que se originaram na Lava Jato, como por exemplo os ligados a questões do (ex-governador do Rio Sergio) Cabral. Lava Jato agora é um estilo de juízes mais jovens para se fazerem ouvidos. São juízes que não dependeram de indicações políticas para exercerem seu ofício. Creio que isso (o fim da Lava Jato) é mais uma hashtag do que propriamente uma realidade. O que está ocorrendo é uma despersonalização da Lava Jato e uma descentralização saudável, mas não uma mudança de atitude.

DivulgaçãoDivulgação“Celso de Mello se comportava sempre dentro dos padrões e parâmetros da instituição”
Mas não tem havido retrocessos na legislação anticorrupção? Com apoio do Planalto, parlamentares têm se articulado para promover alterações na Lei de Improbidade Administrativa, por exemplo.
A Constituição diz que as relações entre os três poderes são de harmonia. Eu acho que não são. São relações de tensões permanentes. A democracia é um sistema que vive de conflitos. Mas considera que tem modos pacíficos de resolver problemas. As tensões têm que ser permanentes porque, se um dos poderes ganhar, acabou a democracia.

Entre as grandes críticas ao Supremo nos últimos anos está a instauração do inquérito do fim do mundo, que investiga ataques à corte e censurou Crusoé. Acha que, com o fim da gestão Toffoli, esse inquérito deve ser usado novamente para novas ações do Supremo?
A solidariedade que Crusoé teve na mídia, na intelectualidade, foi uma reação muito forte. O ministro Alexandre de Moraes é muito atento a essas reações. Por ele, acredito que não haverá novidades ou eventos nessa linha, nem pelo ministro Fux. Não temos que menosprezar a reação social, sobretudo nessa época de plena comunicação. Foi um episódio até agora não completamente justificado e isso cria uma insegurança, uma instabilidade.

O presidente Jair Bolsonaro anunciou que escolherá um ministro “terrivelmente evangélico”, possivelmente um pastor, para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello. Qual a sua avaliação sobre esse critério religioso?
Acho que isso é direito dele. O ministro Fux é israelita. O desembargador Kassio é católico. Então, garantir essa diversidade religiosa está no direito dele. Não vejo problema, não vejo ilegalidade nesse pré-requisito de natureza religiosa. Está dentro da discricionariedade do presidente.

A atuação do Supremo tem sido criticada em vários casos como um “ativismo judicial”, sobretudo em decisões que anulam atos do governo, como a suspensão da posse de Alexandre Ramagem na PF. Há uma interferência excessiva?
Se for para entrar em questões de política pública, nem precisa chamar de ativismo. Isso é ilegal. Mas, às vezes, há questões de direito constitucional envolvidas, como na decisão sobre a responsabilidade de estados e municípios com relação às medidas de combate à Covid-19. Essa não foi uma interferência em políticas públicas, mas em relação a um tema pertinente, que é a Federação.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO