U.Dettmar/SCO/STFO ministro e sua mulher, Roberta Rangel, na cerimônia de posse em 2009: prosperidade suspeita

A mesada de Toffoli

O próximo presidente do Supremo Tribunal Federal recebe 100 mil reais todo mês em uma conta mantida no Banco Mercantil. O dinheiro é repassado pela mulher dele. Roberta Rangel é dona de um escritório de advocacia que alcançou o sucesso em Brasília depois que Dias Toffoli ascendeu na carreira. As transações foram consideradas suspeitas por técnicos do próprio banco
27.07.18

José Antonio Dias Toffoli tinha um currículo tímido quando, de advogado do PT, começou a ascender na estrutura do governo Lula até ser nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal pelo então presidente petista. De bon vivant, passou a ter um cotidiano discreto. Casou-se com Roberta Maria Rangel, sua ex-sócia na advocacia eleitoral. A vida sossegada de homem casado se transformou em prosperidade. Com um salário de 33 mil reais no Supremo, o ministro que no próximo mês de setembro assume a cadeira de presidente da corte recebe da mulher uma mesada na casa dos 100 mil reais por mês. De um lado, Roberta Rangel atua em causas multimilionárias e, de outro, banca o marido com um valor mensal que equivale a mais que o triplo do salário que ele recebe no serviço público. O ministro tem a conta bancária de um advogado de sucesso. A história que Crusoé conta nesta reportagem mostra indícios de irregularidades nas transações do casal e a omissão de um banco onde tudo acontece sem que as autoridades financeiras tomem conhecimento. A conta em que os depósitos são feitos mês a mês é administrada por um funcionário do gabinete do ministro – um bancário que, lotado na assessoria de Toffoli, recebe salário dos cofres públicos para cuidar de suas finanças pessoais.

A sociedade de Toffoli e Roberta Rangel em um modesto escritório de Brasília que estava bem longe da ribalta antes de ele subir na carreira virou casamento em 2013. Os dois se uniram em regime de comunhão parcial de bens. O matrimônio, formalizado por um cartório de Taguatinga, cidade-satélite do Distrito Federal, logo se transformaria em uma sólida relação financeira cujas movimentações passam por uma conta no pouco conhecido Banco Mercantil do Brasil. Sediado em Belo Horizonte, o Mercantil do Brasil mantém uma discretíssima agência em Brasília, escondida no segundo andar de um prédio comercial da região central da cidade, para atender clientes como Toffoli. Pelo menos desde 2015, a conta aberta cinco anos antes na agência 0092 do banco mineiro recebe, mensalmente, 100 mil reais. Na ponta do lápis, os créditos somam mais de 4,5 milhões de reais desde então. Os detalhes das transações tornam a história ainda mais interessante.

CrusoéCrusoéA agência do Mercantil em Brasília: escondida no segundo andar de um prédio comercial da região central da cidade
A conta é conjunta. Está em nome de Toffoli e Roberta. Mas as transferências realizadas todo mês vêm sempre de uma conta da mulher do ministro no banco Itaú. Ou seja: Roberta transfere os valores de uma conta pessoal sua para uma conta conjunta que divide com o marido. Em tese, poderia ser apenas questão de organização financeira do casal. Mas há elementos que mostram que a conta no Mercantil serve, na verdade, ao ministro Toffoli. O primeiro sinal é que a conta tem um procurador autorizado a movimentá-la, e esse procurador é ninguém menos que um assessor do gabinete de Toffoli no Supremo. O segundo sinal, ainda mais eloquente, é que o dinheiro que entra na conta sai para bancar despesas que são, claramente, do próprio ministro. Como, por exemplo, a transferência também mensal de 50 mil reais para Mônica Ortega, ex-mulher de Toffoli. Explicando em miúdos: dos 100 mil que entram na conta, vindos da atual esposa do ministro, dona de uma banca de advocacia que foi alcançando o sucesso à medida que o próprio Toffoli ascendia na carreira, metade sai para pagar uma espécie de pensão do ministro à sua ex-mulher. E o restante do valor é usado para bancar despesas também atribuídas a ele. Ou seja: todos os caminhos levam a crer que os 100 mil transferidos todo mês por Roberta Rangel servem para que Toffoli cubra despesas próprias.

Mônica Ortega, a ex-mulher do ministro que acaba recebendo a metade da mesada, foi funcionária da Casa Civil do Palácio do Planalto no governo Lula, quando Toffoli também trabalhava por lá. Eles se casaram em 1997, mas romperam em uma situação incomum. Em 2003, Toffoli costumava dizer que já estava separado. Mas a formalização da separação só se deu três anos depois, quando a Justiça homologou um acordo entre os dois. Estava efetivada a separação consensual, portanto. Mas as coisas não deram certo e, um ano depois, o casal voltou à Justiça para desfazer o acordo por meio de uma ação de divórcio. O que era consensual virou, por razões que são mantidas em segredo no processo, motivo de litígio. Oito anos depois de sair a sentença no processo de divórcio e dois anos após Toffoli casar com sua nova esposa, a advogada Roberta Rangel, a ex começou a receber os repasses mensais. A pensão, curiosamente, é maior do que o próprio salário do ministro. Mas essa ainda não é a parte mais estranha da história.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO prédio onde a mulher do ministro trabalha e, no detalhe, a entrada do escritório: nome só no tapete
Crusoé descobriu que, ao menos em 2015, a área técnica do Banco Mercantil do Brasil viu indícios de lavagem de dinheiro nas transações envolvendo a conta do ministro. A conclusão dos técnicos do banco, por si só, não é um atestado de ilegalidade. A regra manda que, nessas situações, as transações tidas como suspeitas sejam reportadas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, o órgão de inteligência do Ministério da Fazenda que registra as operações num banco de dados e, a depender do caso, encaminha os indícios para as autoridades competentes, como a polícia ou o Ministério Público. Todos os dias, os bancos em geral reportam milhares de transações ao Coaf, desde grandes transferências a saques vultosos em dinheiro vivo. Em casos como o de Toffoli, as normas do Banco Central mandam que sejam consideradas atípicas movimentações habituais de valores sem justificativa clara e, ao mesmo tempo, incompatíveis com a renda do cliente. Para não falar, obviamente, do fato de o ministro se enquadrar no perfil de “pessoa exposta politicamente”, o que ao menos no papel obriga os bancos a acenderem o sinal amarelo sempre que houver qualquer indicação de movimentação fora dos padrões. Acontece que, apesar da sugestão da área técnica de encaminhar os dados ao Coaf em 2015, houve uma ordem explícita da diretoria do Mercantil para que a comunicação não seguisse adiante. O caso, que deveria ser despachado para a sede do Coaf, em Brasília, foi simplesmente engavetado. Os diretores do banco disseram que a renda do casal estava desatualizada e que, por isso, o alerta não deveria ser disparado. Tudo ficou como estava. E as transações seguiram ocorrendo.

As outras encrencas do ministro

 

No pente-fino que fizeram sobre as operações financeiras de Toffoli, os técnicos do Banco Mercantil levantaram todos os sinais atípicos em torno da conta do ministro. Inclusive o fato de ela ser movimentada por um procurador, o tal funcionário do gabinete. Ricardo Newman de Oliveira, servidor de carreira do Banco do Brasil, trabalha com Toffoli há pelo menos dez anos. Antes, ele era gerente de agências em Brasília. Quando Toffoli foi nomeado advogado-geral da União, Newman recebeu o convite para ser seu “assessor externo”. Deu liga. Já no Supremo, primeiro o ministro o nomeou como assistente de gabinete. Depois, o promoveu para assessor direto, um dos cargos mais cobiçados na burocracia da corte. Newman aparece nos registros da área técnica do Banco Mercantil justamente por acumular o papel de assessor no STF com o de administrador da conta de Toffoli. Na prática, é ele quem cuida pessoalmente das despesas custeadas com a mesada repassada por Roberta Rangel. O bancário que Toffoli mantém no gabinete aparece ainda nos registros por outra razão: ele próprio figurou, por vezes, como destinatário de parte do dinheiro que entra na conta do ministro. Ao todo, Newman recebeu mais de 150 mil reais em transferências feitas com autorização de Toffoli.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéNewman, o gerente que virou assessor de Toffoli, chega à casa do ministro na manhã da última quarta-feira: autorização para movimentar a conta
O Banco Mercantil foi criado em Curvelo, cidade do interior mineiro, a 160 km de Belo Horizonte. Desde a década de 1950, é controlado pela família Araújo, tradicional no estado. O foco principal de suas operações está em Minas e no interior de São Paulo. Atualmente, o Mercantil diz ter cerca de um milhão de correntistas. A relação do ministro Toffoli com o banco é um capítulo à parte. Além de figurar como relator de processos de interesse do Mercantil no Supremo, o ministro aparece como beneficiário de generosas operações autorizadas pela cúpula do banco. Desde 2009, quando Toffoli passou a integrar a corte, chegaram por lá cerca de 270 processos que tinham o Mercantil como uma das partes – seja no polo passivo ou ativo. Toffoli foi relator de 13 dessas ações e não se declarou impedido. Em outra frente, na relação banco-cliente, os caminhos de Toffoli e do Mercantil também se cruzaram. Documentos internos do banco obtidos por Crusoé mostram que, em 2011, Toffoli pediu um empréstimo de 900 mil reais ao Mercantil. As parcelas ficaram em 13.806 reais, a serem pagas ao longo de 15 anos. A prestação representava quase 75% dos 18 mil reais líquidos que Toffoli recebia oficialmente àquela altura. Mesmo assim, o banco considerou que a prestação era compatível com os seus rendimentos e liberou o financiamento. E a taxa de juros foi generosa: 1,35% ao mês. Naquela época, o setor de financiamentos do Mercantil operava com uma média de 2,6% de juros ao mês para o crédito pessoal. Ou seja, Toffoli teve uma taxa de praticamente a metade da que era oferecida aos demais clientes.

O documento que registra o empréstimo do Mercantil para Toffoli a uma taxa camarada
Graças ao Mercantil, o ministro também apareceu em uma investigação do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro. Os procuradores descobriram que o banco foi usado para repassar 350 mil reais para Toffoli dar aulas na Universidade Gama Filho. Em uma decisão temerária e repleta de suspeitas, o enrolado Postalis, o fundo de pensão dos funcionários dos Correios, havia escolhido a instituição para investir parte de seu dinheiro. Enquanto não recebia os aportes, era com dinheiro do Banco Mercantil que a Gama Filho pagava alguns de seus prestadores de serviço. Um deles era Toffoli, que dava aulas na universidade. O dinheiro era repassado pelo Mercantil e, em seguida, transferido para o ministro. Quando a Gama Filho recebia os recursos do Postalis, ressarcia o banco. Ocorria uma espécie de triangulação. Um dos citados na investigação do Ministério Público é Ronald Guimarães. Empresário, ele tinha um processo que chegou ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, em 2014, envolvendo uma imobiliária registrada em seu nome. Era uma causa de incríveis 250 milhões de reais e o empresário já tinha uma estrela em sua defesa. Era Cezar Peluso, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal. Mesmo assim, Ronaldo Guimarães não titubeou e contratou uma advogada de Brasília: Roberta Maria Rangel. O caso segue em aberto, agora no Supremo e com outros advogados, no gabinete da ministra Cármen Lúcia.

Roberta Rangel, a mulher do ministro que é responsável por repassar a mesada de 100 mil reais para a conta no Mercantil, é um daqueles exemplos raros de sucesso repentino nas bancas de Brasília. Discreta, ela despacha em um escritório localizado em um prédio moderno conhecido por abrigar os famosos lobistas que circulam pela capital. A sala é tão discreta como ela. À diferença das grandes bancas que gostam de exibir suas marcas, o nome do escritório de Roberta aparece apenas no tapete. Sua carteira de processos salta aos olhos. São centenas deles, que tramitam ou tramitaram principalmente no Superior Tribunal de Justiça e no Tribunal Superior Eleitoral. Algumas das causas são milionárias. Entre seus clientes há uma infinidade de políticos desconhecidos (muitos prefeitos de cidades pequenas e médias, por exemplo), um “banqueiro” de jogo de bicho e empresas. No STJ, por sinal, ela atuou recentemente em um caso interessante. Era um processo vindo do estado de Mato Grosso e envolvia disputa de terras. O que estava em jogo não eram as propriedades em si, mas o que havia nelas: plantações de soja. Ao chegar em Brasília, uma das partes contratou o escritório do advogado Sérgio Bermudes, que tem como sócia Guiomar Mendes, mulher do ministro Gilmar Mendes. A outra parte não ficou atrás e contratou a mulher de Toffoli. Quem ganhou a ação? Os dois escritórios. O embate foi encerrado porque, no fim do ano passado, as partes fizeram um acordo. Os honorários não são discriminados. Mas o documento, obtido por Crusoé, deixa claro que Roberta Rangel se deu bem com o acerto.

Escritórios de sucesso: mulheres de Toffoli e Gilmar fazem acordo em processo milionário
A prosperidade de Roberta no STJ não se reproduz com a mesma ênfase no Supremo, onde ela evita atuar. Mas um caso, em especial, ajuda a entender como funciona a engrenagem dos tribunais superiores em Brasília nessas situações em que é preciso lidar com os impedimentos. Era dezembro de 2014. Roberta deixou de atuar em um processo sob a relatoria do marido, mas repassou a tarefa para o colega Daniane Mangia Furtado. Daniane trabalhou com o próprio Toffoli nos tempos em que o ministro ainda estava na advocacia. Toffoli acabou não decidindo. Declarou-se impedido. Mas a relação com Daniane segue firme e forte. Hoje ele é sócio de Roberta Rangel. O sócio da mulher do Toffoli, portanto, é um ex-parceiro do próprio ministro. Por sinal, logo no início do governo Lula, Toffoli foi indagado sobre a razão pela qual ele, mesmo estando no governo, seguia como advogado em um processo do PT contra a Petrobras. Respondeu que não havia problemas formais em seguir no caso. Quem tocava o processo diretamente era Daniane. Sobre ele, Toffoli admitiu na ocasião: “É a pessoa que cuida do escritório para mim”.

Roberta Rangel evita processos no STF, mas coloca seu sócio, que já foi funcionário de Toffoli, para atuar
Não faz muito tempo, uma causa de Roberta deu dor de cabeça ao ministro. Uma reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que o escritório dela recebeu 300 mil reais entre 2008 e 2011 do consórcio Queiroz Galvão-Iesa, que tinha contratos com a Petrobras e foi citado no esquema de propinas que assaltou a estatal. Eles negaram qualquer irregularidade. Além da advocacia, Roberta Rangel acumula outros dois empregos. É procuradora da Câmara Legislativa do Distrito Federal, um cargo público que lhe rende salário com a flexibilidade de poder advogar, e é dona do Instituto Brasiliense de Estudos Tributários. Esse instituto foi criado em março deste ano e tem como sede o próprio escritório de advocacia que Roberta mantém em Brasília. Procurado por Crusoé, Toffoli não quis falar. “O ministro não irá se manifestar”, respondeu sua chefe de gabinete. Roberta Rangel também não quis se pronunciar.

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