MarioSabino

Dor de escola

23.10.20

Entre as minhas lembranças de infância e juventude, guardo as de raros bons professores. A maioria parecia ser simplesmente desinteressada. Havia também alguns perversos. Professor batia em aluno quando eu era criança. Na segunda série, quase apanhei da minha professora porque ousei sugerir o título de um tema de redação. A da quarta série dava com a régua de madeira na cabeça de quem conversava com colegas durante a aula. Ela ainda puxava a orelha de alunos desobedientes e gritava muito. Quase todos gritavam, na verdade. Na sexta série, fui humilhado pela professora de Português porque havia respondido com impaciência a uma pergunta de um colega durante a apresentação de um trabalho. A humilhação foi tanta que uma colega pegou a minha mão enquanto eu chorava. A professora poderia ter chamado a atenção do menino de 11 anos no momento da sua impaciência, mas preferiu esperar até os longos minutos finais da aula para rebaixá-lo. Na sétima série, a aula da professora de Inglês se resumia a tocar uma fita cassete num pequeno gravador que ficava na mesa dela — e exigir que 45 alunos ouvissem os diálogos que mal chegavam aos ouvidos da terceira fila. No final do primeiro bimestre, ela perguntou quem era o melhor aluno de matemática da classe. Apontaram para mim. “Parabéns, você ganhou um prêmio: vá para a lousa”, mandou. A partir de então, era sempre eu a calcular no giz as médias bimestrais de cada aluno, porque ela não se dava ao trabalho de fazer isso. Em vez de dar aula, a dona do gravador ditava cada nota e eu fazia as contas na frente de todo mundo. Era praticamente a única vez que se ouvia a voz dela em classe, além de quando fazia a chamada. A professora de Francês não usava gravador, mas me expulsou da aula porque, no meio do seu relato deslumbrado de uma viagem a Paris, coisa especial naquele 1973, perguntei se ela falava a língua com sotaque (eu acabara de aprender o significado de sotaque).

Na minha lousa mental, calculo que, apesar de tudo, a média da qualidade do ensino era relativamente boa, mas os serviços de hospitalidade nunca foram grande coisa. Hoje, o ensino é geralmente muito ruim, mas se tenta melhorar  a hospitalidade com o politicamente fofinho. Entendo: agora uma das prioridades é evitar que aluno bata em professor.

As minhas reminiscências têm nexo causal com a homenagem nacional ao professor francês Samuel Paty, decapitado por um terrorista islâmico na frente da escola na qual ensinava. Para falar de liberdade de expressão numa aula — as suas disciplinas eram História e Geografia —, ele usou uma caricatura de Maomé do jornal satírico Charlie Hebdo, cuja redação foi exterminada em 2015, igualmente por agentes do Islã. O pai fundamentalista de uma aluna muçulmana que ofendeu o professor e foi suspensa pela direção da escola (ofendeu ao simples anúncio de que a caricatura seria mostrada na aula seguinte e quem quisesse poderia faltar) começou a fazer campanha violenta contra Samuel Paty nas redes sociais. O horror desenhado adquiriu feição concreta: um extremista islâmico de origem tchetchena nascido na Rússia, e acolhido pela França como refugiado, atacou Samuel Paty e o decapitou com uma faca de açougueiro. Um dos detalhes sórdidos recém-noticiados é que, para chegar a Paty, o terrorista pagou 300 euros a dois alunos da escola, menores de idade, para que identificassem o professor.

A homenagem a Samuel Paty, de corpo presente, foi no pátio da Universidade Sorbonne, no que foi um manifesto em defesa da laicidade contra a intolerância religiosa, do conhecimento contra a ignorância, da liberdade de expressão contra a censura. O caixão chegou ao pátio carregado solenemente por soldados vestidos em uniforme de gala, ao som da canção One, do U2. Até um coração endurecido como o meu sangrou (ninguém bate os franceses em matéria de cerimônias fúnebres). Mas a parte mais bonita da homenagem foi a leitura de uma carta enviada por Albert Camus ao seu professor dos primeiros anos escolares, Louis Germain, poucos dias depois de o escritor receber a notícia de que havia ganhado o Prêmio Nobel de Literatura, em 1957. Graças ao professor, Camus conseguiu uma bolsa de estudos para fazer o ensino médio num bom liceu. “Eu tinha vergonha da minha pobreza e da minha família. Antes, todo mundo era como eu e a pobreza parecia ser o ar deste mundo. No liceu, conheci a comparação”, registrou o escritor certa vez. De qualquer forma, ele ganhou uma escola de primeira, graças a Louis Germain.

Eis a transcrição da carta:

19 de novembro de 1957

Caro Senhor Germain, 

Eu deixei que diminuísse um pouco o barulho que me cercou durante todos esses dias antes de vir lhe falar de coração aberto. Acabaram de me conceder uma honra grande demais, que nem procurei nem pedi. Mas, quando tive a notícia, o meu primeiro pensamento, depois da minha mãe, foi para o senhor. Sem o senhor, sem essa mão afetuosa que o senhor estendeu ao pequeno menino pobre que eu era, sem os seus ensinamentos e o seu exemplo, nada disso aconteceria. Eu não dou muita importância a esse tipo de honra, mas esta é pelo menos uma oportunidade de lhe dizer o que senhor foi e sempre será para mim, e para lhe assegurar que os seus esforços, o seu trabalho e o coração generoso que o senhor nele colocou permanecem vivos em um dos seus pequenos estudantes que, apesar da idade, nunca deixou de ser um aluno que lhe é grato.”

Eu o abraço fortemente.

Albert Camus

Na sua resposta caudalosa, o professor Louis Germain diz que um professor que exerce com consciência a sua profissão “não negligencia nenhuma ocasião para conhecer os seus alunos, as suas crianças (…) Uma resposta, um gesto, uma atitude, são amplamente reveladores”. E, como um menino já contém a semente do adulto que ele se tornará, o escritor jamais se deixara levar pela fama: “Você permaneceu Camus: bravo”. O menino que “sempre mostrou um pudor instintivo para descobrir a natureza e os sentimentos” foi pai do homem. Num trecho que me tocou profundamente, o professor escreve que, apesar da pobreza de Camus na infância, “como o seu irmão, você estava sempre bem vestido. Acredito que eu não poderia fazer mais belo elogio à sua mãe”. Germain relembra, por fim, como evitara a doutrinação religiosa na Argel dos pieds-noirs, como Camus, onde o catolicismo era identidade político-cultural em oposição ao islamismo da população nativa. Ele ensinava aos seus alunos que todos tinham a escolha de crer ou não crer, em respeito ao que “há de mais sagrado numa criança: o direito de procurar a sua própria verdade”.

A minha inveja literária de Camus foi acrescida de inveja pessoal. Além de ser um escritor insignificante, eu jamais tive um professor a quem pudesse escrever uma carta de agradecimento como a dele. Talvez você tenha. Se assim for, escreva algumas linhas a quem lhe foi tão importante, mesmo que já tenha morrido. Será também uma bela homenagem ao professor decapitado. Quanto a mim, continuarei a me apropriar das boas lembranças alheias para prestar tributo a quem mereça.

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