SergioMoro

O campeão voltou?

23.10.20

Recordo-me do cântico “o campeão voltou”, que se tornou comum nos estádios de futebol quando um time, depois de atravessar uma fase ruim, retorna vitorioso aos gramados. Aconteceu, por exemplo, com a seleção brasileira de futebol na marcante vitória nas Olimpíadas de 2016 após a triste derrota na Copa do Mundo de Futebol de 2014.

Já sem motivos para comemorar, leio, nos jornais da semana, sobre os dados consolidados da segurança pública no primeiro semestre de 2020 que revelam um aumento de cerca de 7,1% no número de assassinatos, em relação ao mesmo período do ano passado.

O aumento da violência destoa das quedas expressivas havidas nos anos de 2018, 13,5%, e de 2019, 19%, e que inverteram a curva crescente até 2017.

É cedo para dizer se esse crescimento será agora uma constante ou se foi algo apenas episódico. Ele parece estar associado, em parte, às turbulências decorrentes dos movimentos de paralisação das forças de segurança havidos no início do ano, como, por exemplo, no Ceará. A paralisação levou ao óbvio incremento dos crimes no período de suspensão das atividades policiais. O mal estar decorrente do movimento, especialmente o estremecimento entre as forças de segurança e o governo, pode durar meses e afetar a qualidade dos serviços policiais.

Em contrapartida, alguns estados apresentaram decréscimo, entre eles o Pará. Desde meados do ano passado, o governo federal tem auxiliado substancialmente o Pará na redução da criminalidade, com o programa Em Frente Brasil e com o envio de força de intervenção penitenciária do Depen. Inegável também é o mérito das forças de segurança do próprio estado e dos municípios.

A ilustrar como a ação conjunta das forças de segurança pode fazer a diferença, Ananindeua, cidade da região metropolitana de Belém, na qual os governos federal, estadual e municipal estão juntos no Em Frente Brasil, vem apresentando sucessivas quedas nos indicadores de criminalidade desde o ano passado. Foram 371 homicídios em 2018, 151 em 2019 e 48 no primeiro semestre de 2020. Em junho de 2018, houve 31 homicídios, praticamente um por dia; em 2019, 16, a metade; em 2020, apenas 6. São bons resultados. Lembro que, ano passado, quando visitei a cidade, um morador me disse orgulhoso que já estavam havia dez dias sem um homicídio, o que era um cenário bem diferente do verificado no passado.

Apesar dos bons resultados do Em Frente Brasil em Ananindeua, a grande dificuldade sempre foi universalizar o programa para todos os grandes municípios brasileiros, já que, em princípio, a ação integrada demanda a presença da Força Nacional de Segurança Pública.

Nesse cenário, é importante não vacilar em relação a medidas de cunho geral que são importantes para prevenir e diminuir a criminalidade.

Infelizmente, desde 2019, foram tomadas algumas medidas contraproducentes para o setor. A aprovação da nova lei de abuso de autoridade, a 13.869/2019, foi um marco negativo. Claro, ninguém é a favor de abuso de autoridade. Mas vários dispositivos da nova lei, querendo ou não o legislador, têm um efeito de intimidação contra magistrados, promotores e policiais. A lei contém algumas garantias contra o crime de hermenêutica, mas ela permanece pairando como uma ameaça de aplicação arbitrária contra aqueles profissionais que não se acomodam diante do desafio do enfrentamento do crime.

Dispositivos inseridos pela Câmara dos Deputados no projeto de lei anticrime, que resultou na lei número 13.964/2019, também não tiveram um efeito positivo. O recente episódio envolvendo a soltura e a fuga da liderança criminosa André do Rap é ilustrativo. Os dispositivos inseridos – e que poderiam ter sido vetados, mas não o foram – tornaram mais difícil a decretação da prisão preventiva, tanto para crimes de colarinho branco como para crimes de outra natureza, bem como dificultaram o emprego da colaboração premiada, método de investigação tão valioso, como se demonstrou na Operação Lava Jato, para desmantelar grupos criminosos encastelados ou não no aparelho estatal.

Mas talvez o pior tenha sido a mudança jurisprudencial no Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do mérito das ADCs 43 e 44, em 7 de novembro de 2019, que passou a entender que a condenação criminal só pode ser executada após o trânsito em julgado, revertendo o precedente do HC 126.292, de 17 de fevereiro de 2016. Claro que a interpretação que levou à mudança é razoável e ninguém acusa os ministros de agirem mal. O efeito da mudança de entendimento é, não obstante, inegável: a perda substancial de eficiência do sistema de justiça criminal, não só para crimes de colarinho branco, mas também para outros delitos, o que infelizmente também foi ilustrado pela soltura e pela fuga do referido André do Rap, já que ele havia sido condenado na segunda instância.

Para alguns crimes, como os de colarinho branco, será improvável ter prisões antes do julgamento, em vista das restrições decorrentes das leis 13.869/2019 e 13.694/2019, e agora também depois do julgamento, já que o trânsito em julgado é uma possibilidade remota em nosso sistema de justiça criminal. Não é por acaso que as operações mais recentes da Polícia Federal contra corrupção envolvem, na maioria das vezes, somente buscas e apreensões e não mais prisões cautelares. Há um risco não desprezível de que isso possa se estender para crimes de outra natureza praticados por poderosos, aprofundando a seletividade arbitrária do sistema de justiça criminal.

Mais recentemente, todos foram surpreendidos com uma operação da Polícia Federal na qual foram descobertos milhares de reais ocultados nas vestes íntimas de um senador da República. O episódio ainda está em apuração, mas contribuiu para o aumento do ceticismo quanto ao fim ou mesmo à redução da corrupção desde a Operação Lava Jato.

As causas da criminalidade são as mais diversas e nem todas são controláveis. O próprio envelhecimento da população, por exemplo, contribui para a queda do número de crimes violentos. Mas é inegável que o cometimento de um crime, salvo os passionais, envolve um juízo racional de risco e de oportunidade. Se o risco é maior, há uma tendência de diminuição da criminalidade. Se as oportunidades decrescem, idem. Entendo, particularmente, que estamos brincando com a sorte já há algum tempo, ao tomarmos tantas decisões equivocadas e que mandam mensagens contraditórias para o mundo do crime.

Com as condenações no mensalão e na Operação Lava Jato, o Brasil vinha fortalecendo sua imagem mundial de combate à corrupção, assim como sendo reconhecido pelas vigorosas iniciativas, a partir do início de 2019, contra o crime organizado, como, por exemplo, o isolamento das lideranças de organizações criminosas em presídios federais. Não podemos permitir que retrocessos ou mensagens em sentido contrário possam mudar essa trajetória anticrime do país. Haverá um preço decorrente a pagar e ele poderá vir na forma de aumento dos crimes de corrupção e da criminalidade em geral.

Claro, espero que essa possibilidade não se concretize, mas andaríamos melhor se retomássemos uma forte agenda contra a corrupção, o crime organizado e a criminalidade violenta. O crime não pode voltar como campeão.

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