Adriano Machado/CrusoéGilmar Mendes ainda é o ministro predileto dos advogados e dos réus da Lava Jato

Os caminhos que levam a Gilmar

Por que, afinal, muitos dos habeas corpus de investigados na Lava Jato vão parar nas mãos do ministro Gilmar Mendes
23.10.20

Na véspera da posse do ministro Luiz Fux como novo comandante do Supremo Tribunal Federal, há pouco mais de um mês, aportou no gabinete da presidência um daqueles pleitos que os magistrados costumam repelir para não criar animosidade com os colegas de toga. Após serem alvo de uma reclamação no STF, procuradores da Lava Jato do Rio de Janeiro encaminharam à corte um pedido para que o ministro Gilmar Mendes fosse declarado impedido de julgar ações relacionadas à investigação que apurou desvios milionários de verba pública por meio de contratos fraudulentos da Fecomércio fluminense com bancas de advocacia ligadas a políticos e juízes. Entre os fatos apontados pela força-tarefa que tornariam Gilmar suspeito para decidir sobre o caso, do qual ele é relator, dois saltam aos olhos: o instituto fundado pelo ministro recebeu patrocínio da entidade investigada durante a gestão do delator Orlando Diniz, como Crusoé revelou ainda em 2018, e um dos advogados acusados de lavagem de dinheiro é casado com uma sobrinha da mulher de Gilmar e fez transações financeiras com o cunhado do ministro nos últimos anos.

Até hoje, Fux ainda não decidiu se engaveta o pedido de suspeição ou se o leva para análise do plenário, algo raro na corte. Gilmar, por sua vez, não se inibiu mesmo diante da exposição dos seus vínculos pessoais com os envolvidos. No primeiro sábado de outubro, em uma canetada, o ministro suspendeu tudo, incluindo a ação penal já aberta na Justiça Federal do Rio contra 26 réus, entre os quais os advogados do ex-presidente Lula, e as denúncias em curso, como a que envolve Frederick Wassef, ex-advogado da família Bolsonaro.

O caso da Fecomércio se assemelha em gênero, número e grau a outra controversa decisão de Gilmar de três anos atrás contra a Lava Jato fluminense. Em agosto de 2017, o ministro concedeu um habeas corpus soltando o empresário Jacob Barata Filho, dono de um conglomerado de empresas de ônibus que havia sido preso sob a acusação de pagar propina a políticos do Rio. Na ocasião, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, concordou com os investigadores e pediu a suspeição de Gilmar no caso porque o ministro foi padrinho de casamento da filha de Barata com um sobrinho de Guiomar Mendes, a mulher do ministro — o contato dela estava registrado na agenda telefônica do empresário, que também mantinha negócios com mesmo cunhado de Gilmar. Pelo Código de Processo Penal, o juiz não pode atuar em um processo no qual ele próprio, seu cônjuge ou parente até o terceiro grau seja parte ou diretamente interessado no feito. A queixa ficou parada no gabinete da então presidente do STF, Carmen Lúcia, que solicitou uma nova manifestação da PGR assim que Raquel Dodge substituiu Janot. À diferença do antecessor, Raquel ficou em cima do muro e a solicitação acabou nos arquivos do Supremo. No caso da Fecomércio, o procurador-geral Augusto Aras discordou do pedido de impedimento de Gilmar feito pela força-tarefa, por falta de “pressuposto processual subjetivo”. O recurso que chegou ao ministro para travar a investigação alegava que a Lava Jato vinha investigando autoridades com foro privilegiado sem a devida autorização. Gilmar acolheu a tese e travou tudo.

STFSTFFux baixou normas para dar mais transparência à distribuição de processos
A decisão, mais uma de uma série que soltou políticos e empresários presos e paralisou apurações, suscitou uma questão pertinente: como os recursos contra a Lava Jato vão parar na mesa do ministro que se arvora como o protagonista do movimento contra a maior operação de combate à corrupção já feita no país? Crusoé revisitou todos os principais processos distribuídos a Gilmar para saber como o ministro virou o relator prevento — aquele que recebe automaticamente todos os recursos que guardam conexão com casos decididos por ele anteriormente – de muitos processos relacionados à operação.

No caso do Rio, onde os advogados direcionam há três anos os pedidos de habeas corpus de seus clientes diretamente para Gilmar, a fim de anular decisões do juiz federal Marcelo Bretas, o titular da Lava Jato na primeira instância, a prevenção do ministro remonta a um habeas de março de 2017, que tirou o empresário Flávio Godinho da cadeia. Braço-direito de Eike Batista, Godinho foi preso em janeiro daquele ano na Operação Eficiência, um desdobramento da Lava Jato fluminense, acusado de pagar 16,5 milhões de dólares de propina ao ex-governador Sergio Cabral. O curioso é que esse HC, que inaugurou a prevenção de Gilmar como relator de todos os recursos contra as decisões de Bretas, foi distribuído por meio do sistema eletrônico de sorteio de processos do STF para o ministro Luiz Fux, entusiasta da Lava Jato. O magistrado, nascido e criado no Rio, contudo, se declarou impedido para analisar o caso, sem explicar o motivo. Na redistribuição, o caso caiu com Gilmar. Nas palavras de um advogado de réus da operação, esse foi um “efeito borboleta” que alterou sensivelmente o destino da Lava Jato fluminense: “Imagine se o Fux fosse o prevento da Lava Jato do Rio: muita gente ainda estaria na cadeia”.

Foi com base nesse HC concedido a Flávio Godinho em 2017 e em outras decisões posteriores de Gilmar que a defesa de Alexandre Baldy recorreu diretamente ao ministro do STF para soltar o ex-ministro e secretário do governo de João Doria em São Paulo da cadeia, em agosto deste ano, após o alvará de soltura ter sido recusado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região. A reclamação feita a Gilmar dizia que a prisão decretada por Bretas a pedido do Ministério Público Federal não tinha fundamento porque os crimes imputados a ele enquanto atuou como secretário estadual e deputado federal por Goiás e depois como ministro das Cidades no governo de Michel Temer eram antigos e que seriam uma forma de burlar um entendimento de 2018 do Supremo que havia proibido a condução coercitiva de investigados — essa decisão, aliás, foi tomada após o episódio envolvendo a condução do ex-presidente Lula, em 2017, para prestar depoimento na Polícia Federal por decisão do ex-juiz Sergio Moro. Ou seja, a defesa sustentou que a Lava Jato trocou a condução de Baldy, que passou a ser proibida, pela prisão. Gilmar mandou soltar Baldy no mesmo dia. Depois, suspendeu a ação penal por corrupção e lavagem de dinheiro contra o ex-ministro e determinou o envio do processo para a Justiça Eleitoral de Goiás. Todas decisões monocráticas, ou seja, sem passar pelo crivo dos demais ministros da corte.

Lucas Tavares/Zimel Press/FolhapressLucas Tavares/Zimel Press/FolhapressInvestigadores da Lava Jato do Rio: pedido de suspeição do ministro do STF
Nem sempre os caminhos usados para chegar até Gilmar já estão devidamente “pavimentados” pela prevenção dele como relator por causa de processos conexos já julgados por ele. Em setembro de 2018, a defesa do ex-governador Beto Richa, do Paraná, usou uma artimanha jurídica para conseguir com que o ministro “garantista” tirasse o tucano da prisão pela primeira vez, acusado de corrupção pelo Ministério Público estadual. Em vez de entrar com um habeas corpus no STF que deveria ser distribuído aleatoriamente entre os dez ministros da corte — o presidente não participa dos sorteios de processos –, os advogados de Richa peticionaram dentro dos autos da ADPF 444, aquela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental mencionada pela defesa de Baldy dois anos depois que questionava a legalidade da condução coercitiva e estava sob a relatoria de Gilmar. O ministro decidiu como de hábito: soltou Richa. A decisão, classificada como “teratológica” pela então PGR Raquel Dodge causou enorme desconforto dentro do Supremo por causa do subterfúgio usado para fugir da livre distribuição de processos e escolher o juiz notoriamente mais alinhado ao réu. Em 2019, após Richa ter sido preso novamente e solto pelo STJ, Gilmar deu um salvo-conduto ao ex-governador tucano, proibindo que ele e seus parentes fossem presos pelos mesmos crimes.

A distribuição de processos para os ministros do Supremo é feita de forma aleatória, por meio de sorteio eletrônico feito por um sistema de computador, conforme previsto em lei e no próprio regimento interno da corte. O objetivo é garantir que os recursos sejam distribuídos de forma isenta e equânime entre os magistrados, para evitar direcionamento de ações e que um gabinete acumule muito mais processos do que outros. Os casos só não são levados para a distribuição comum, pelo sorteio eletrônico, quando há a chamada prevenção de um determinado ministro para julgar um recurso, por guardar relação com outro caso já analisado por ele. Nesse momento da tramitação do processo, há intervenção humana. Quem avalia se um determinado caso tem relação com outro que já tramitou na corte sob relatoria de um determinado ministro são os analistas judiciários da Coordenadoria de Processamento Inicial, um departamento que conta atualmente com 26 servidores. Entre eles, há, inclusive, um funcionário que já passou pelo gabinete de Gilmar. Servidores do STF disseram a Crusoé, sob a condição do anonimato, que na maioria das vezes os recursos são encaminhados diretamente para o gabinete do ministro que os próprios advogados citam como prevento, sem uma análise mais criteriosa. Se o magistrado não devolve o processo, fica confirmada a prevenção, a não ser que outro ministro questione a distribuição, o que também é raro dentro da corte.

Os registros no sistema de acompanhamento processual sugerem que foi isso ocorreu, por exemplo, com uma reclamação feita pelo ex-ministro Guido Mantega contra a tramitação do inquérito no qual ele é acusado de ter recebido propina da JBS junto à 13ª Vara Federal de Curitiba, onde correm os processos da Lava Jato no Paraná. A petição foi autuada na Coordenadoria de Processamento Inicial às 14h03 do dia 26 de agosto de 2019. Às 15h14, ela já dava entrada no gabinete de Gilmar, por prevenção. Na ocasião, a defesa de Mantega alegou que cabia ao ministro analisar o recurso porque ele guarda conexão com outro processo do qual Gilmar assumiu a relatoria após o relator original, o ministro Edson Fachin, ter sido voto vencido na 2ª Turma do STF. Relator da Lava Jato no Supremo, Fachin era contra o envio do processo de Curitiba para a Justiça do Distrito Federal. Perdeu por três a um. No julgamento que garantiu a prevenção de Gilmar, em agosto de 2017, o próprio ministro disse que quase faltou à sessão porque chegou atrasado de uma viagem internacional, mas que correu para participar do debate “diante da relevância do caso”. Foi no curso dessa reclamação de Mantega que Gilmar anulou parcialmente a operação envolvendo o ex-ministro, em 2019, e as buscas feitas pela PF no prédio do antigo escritório do advogado José Roberto Batochio, onde Mantega teria recebido pagamentos ilícitos da Odebrecht, segundo delação de Antonio Palocci.

Geraldo Magela/Agência SenadoGeraldo Magela/Agência SenadoO senador José Serra está entre os beneficiários das decisões de Gilmar
Uma pesquisa feita por Crusoé no acervo do Supremo constatou que Gilmar é o campeão em decisões monocráticas entre os atuais ministros da corte, com mais de 2 mil reclamações e 3.800 habeas corpus julgados sob sua relatoria desde 2017. As coincidências na distribuição de processos a Gilmar envolvendo investigados que são reconhecidamente amigos do magistrado, como o senador José Serra e o ex-ministro Aloysio Nunes, especialmente após as megadelações da Lava Jato, chegou a levantar suspeitas sobre o grau de confiabilidade do sistema eletrônico do STF, que deve distribuir os feitos de forma aleatória. Os dois tucanos já foram beneficiados por uma série de decisões de Gilmar, com quem trabalharam no governo de Fernando Henrique Cardoso.

As suspeitas causaram barulho a ponto de a ex-presidente da corte Cármen Lúcia encomendar em 2018 uma auditoria no programa de distribuição a pesquisadores da Universidade de Brasília. Por mais que os técnicos não tenham apontado falhas no sistema, o parecer divulgado em setembro daquele ano fazia recomendações importantes para aumentar a transparência do procedimento e diminuir a chance de fraudes. Uma das providências seria tornar público o código-fonte que assegura a aleatoriedade do sistema, assim como um relatório detalhado sobre o processo de distribuição, incluindo os nomes dos ministros eventualmente excluídos do sorteio. Mais importante ainda, na visão dos pesquisadores, seria que o STF passasse a seguir uma lei de 2015 que determina que o juiz sorteado pela primeira vez fica como o prevento para todos os casos relacionados a ele mesmo se o requerente desistir da ação. Isso evitaria, por exemplo, o que ocorreu com o HC do traficante André do Rap, solto por decisão do ministro Marco Aurélio depois que a defesa dele, formada por ex-funcionários do ministro, desistiram de recursos que caíram com outros magistrados.

Na semana passada, após a polêmica envolvendo o caso do traficante, o presidente Luiz Fux publicou uma resolução para “aprimorar a segurança e a transparência” da distribuição de processos no Supremo, estabelecendo normas como a proibição de que estagiários e empregados terceirizados distribuam processos – a função fica restrita aos servidores efetivos – e a validação formal da distribuição por prevenção pelo chefe do setor, pelo secretário judiciário e pelo presidente da corte. O despacho também limita o horário para a distribuição de processos e determina o cumprimento de um artigo do Código de Processo Civil que define como prevento o primeiro juiz sorteado para o processo, mesmo naqueles casos em que os advogados das partes desistem – uma medida que limita a estratégia de ingressar com vários recursos até que o caso caia para o ministro que a defesa quer. As mudanças devem inibir possíveis tentativas de burla ao sistema ou de artimanhas jurídicas para o direcionamento de processos. É possível que as alterações pelo menos dificultem a abertura de novos picadas que levam a Gilmar.

Com reportagem de Luiz Vassallo

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