MarioSabino

O sonho de uma entrevista

30.10.20

Não sei se ocorre com você, mas de vez em quando me pego imaginando ser outra pessoa. Entre as minhas fantasias, está a de ser para sempre o sujeito que conversou com Jean-Bertrand Pontalis, ou J.B Pontalis. Nesse caso, fui apenas por um breve momento. Durou uma hora e rendeu uma entrevista de páginas amarelas na Veja. Depois da conversa, incluí no meu rol de imaginações ser o próprio J.B. Pontalis, psicanalista, filósofo e escritor francês que foi discípulo de Maurice Merleau-Ponty, aluno e colega de revista de Jean-Paul Sartre, paciente de Jacques Lacan, em análise didática — e que conseguiu romper intelectualmente com todos eles, para ganhar uma voz original. 

Eu o entrevistei em dezembro de 2012; ele morreu em janeiro de 2013, aos 89 anos, no mesmo dia em que nasceu, 15 de janeiro. Foi um círculo perfeito até nisso. Tendo a crer que fui o último jornalista a entrevistá-lo (a entrevista foi publicada no dia 2 do seu mês fatídico). A nossa conversa ocorreu na sua sala na editora Gallimard (quase no Bouvelard Saint-Germain, cujas cercanias são o habitat natural dos intelectuais parisienses), onde ele trabalhava. Para chegar até J.B. Pontalis, atravessava-se um corredor estreito, com degraus. “É como se fosse um caminho para o inconsciente”, pensei, adepto que sou do Charlatão de Viena — ajudou-me nesse vício intolerável a muitos o Dicionário de Psicanálise, projeto ambicioso e bem-sucedido levado a cabo por J.B. Pontalis e Jean Laplanche na década de 1960.

Era uma sala pequena, despida de estantes que podem ostentar conhecimentos falsos. A sua mesa ficava ao lado de uma janela que dava para um jardim acanhado, mas mesmo assim suficiente para cultivar grandes reflexões (acho que os pequenos jardins são melhores para esse fim, ao contrário dos extensos, que nos tiram de nós mesmos e nos jogam na amplidão). Ele me recebeu dentro da moldura da formalidade francesa, mas simpaticamente. O assunto da nossa conversa foi a amizade, tema do livro O Sonho de Monomotapa. Nem biografia, crônica, ensaio ou ficção, trata-se de uma “autografia”, gênero que J.B Pontalis assim definiu: “Um livro no qual não se escreve sobre si mesmo, mas se escreve”. O jardim acanhado das grandes reflexões.

Uma entrevista fascinante, para mim, é aquela na qual o entrevistador também descobre algo para si próprio. Eu vinha de tempos turbulentos, cheio de falsas amizades, e Pontalis mostrou-me como nunca mais cair em certas armadilhas.

Reproduzo um trecho da conversa:

O que é um amigo?

O título do meu livro sobre esse tema é sugestivo sobre a dificuldade de definir a amizade: Le Songe de Monomotapa (“O sonho de Monomotapa”). Trata-se de uma alusão a uma fábula de Jean de La Fontaine (escritor francês do século XVII). Na fábula, dois amigos vivem nesse país de nome estranho, e um não possui nada que não pertença ao outro. Não haveria amizade mais verdadeira, portanto, nem mais doce, como diz La Fontaine. Mas ela talvez só seja possível na literatura. Por isso, entre as reflexões que faço sobre a amizade, acho que a melhor síntese em resposta à sua pergunta é que um amigo de verdade é aquele que nos protege dos tormentos do amor, nos afasta da fúria raivosa, faz recuar a morte. 

Mas a procura da amizade pode ser vã.

Pode, é claro, mas seria uma lacuna bem triste no meu caso — embora haja quem conviva bem apenas com colegas ou camaradas. Coleguismo e camaradagem são formas de amizade que, se não nos fazem sentir mais fortes, mais vivos — é isso que quero dizer com “recuar a morte”—, ao menos afastam um pouco a solidão amarga. Nunca deixei de ter muitos amigos, é algo vital para mim. Evidentemente, mesmo a amizade mais verdadeira não é feliz durante todo o tempo. Às vezes, podemos nos afastar, até por razões geográficas, ou ter disputas que superam a simples discordância a respeito deste ou daquele assunto. A distância e as fricções, no entanto, jamais significaram um rompimento definitivo com meus amigos. Há quem faça o elogio da amizade sem conseguir cultivá-la. É o caso de Proust (Marcel Proust, o maior dos escritores modernos franceses). Ele teve uma profusão de amigos, mas no monumental Em Busca do Tempo Perdido há um julgamento severo sobre a amizade. Ele diz, em resumo, que ela requer um “eu superficial” — que a profundidade do “eu” passa longe da relação com um amigo. Está claro que sofreu uma decepção com a amizade. Tanto que terminou seus anos fechado num quarto, isolado, escrevendo a obra que considerava ser sua “verdadeira vida”.

A amizade é mais vital do que o amor?

Não é mais vital, faz parte de outra esfera. Como eu disse, o amor traz tormentos, porque é impulsionado pela paixão. O amor é, ainda, menos durável, não se consegue mantê- lo continuamente no nível do ardor inicial. Já se falou bastante sobre qual seria a diferença entre amor e amizade. A meu ver, o amor visa à satisfação plena, um objetivo tão vago quanto inalcançável. Ocorre, então, um paradoxo: a partir de determinado momento, ele passa a alimentar-se da insatisfação absoluta. Como escrevo no meu livro, talvez só o amor místico seja a exceção. A amizade, por seu turno, nunca almeja a plenitude. Você não pode esperar tudo de um amigo, muito menos a perfeição, mas só uma amizade verdadeira é capaz de nos proteger das oscilações tumultuosas, da ambivalência intrínseca à relação amorosa — e também do fim do amor, quando é comum que sobre apenas o ódio de quem você amou e por quem você foi amado. O ódio, aliás, dura mais do que o amor. 

O senhor diz em seu livro que a amizade entre uma mulher e um homem só é possível se não há desejo amoroso entre ambos. Isso significa que o amor não inclui a amizade?

O amor pode incluir a amizade, mas como extensão dele próprio. Raramente como um sentimento independente da relação amorosa. Ou seja, “eu sou amigo porque amo”, e não o contrário. Por esse motivo, acho difícil que, ao fim de uma relação amorosa, mesmo que ele seja pacífico, a amizade entre um casal sobreviva.  

Pode-se dizer tudo a um amigo?

Não podemos dizer tudo nem mesmo ao nosso psicanalista, imagine só a um amigo… Dizer tudo a um amigo é um lugar-comum que não tem correspondência na realidade, por mais que a transparência completa seja um ideal da modernidade. Eu já passei por situações em que me senti traído e traidor por não criticar um amigo que se comportava de um jeito contraditório à imagem que ele projetava de si próprio para mim. Mas dizer tudo também pode soar como traição. A transparência absoluta me faz pensar num episódio com Sartre (o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre). Ele e Simone de Beauvoir (escritora, mulher de Sartre) gostavam de demonstrar que não havia segredos entre eles. Em certa ocasião, perguntei a Sartre se ele contaria determinado fato ao “Castor”, apelido de Simone. Sartre respondeu que não. Espantado, indaguei: “Você é capaz de mentir ao Castor?”. Ele disse: “Sim, sobretudo ao Castor!” (risos).

Eu gostaria de ser para sempre o sujeito que conversou com J.B Pontalis. Eu gostaria de ser J.B. Pontalis. Mas me condenei a ser o jornalista que fala dos amigos dos amigos de meu pai.

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  1. e certamente o que houver de impossível caberá nos livros. Escrever é o destino dos antagonistas amantes de psicanálise e lê los é uma particular diversão para esta minha alma polimórfica.

  2. agora entendi porque o "Castor" resolveu inventar o feminismo moderno...kkkkk e tudo veio do tal do charlatão de Viena kkkkk, e diga-se de passagem: aquele charlatão que escrevia em alemão faz parte de meu sonho também; se pudesse eu gostaria de ter umas consultas meio(diúnicas) com ele kkkkk na verdade tenho que admitir que mesmo sem ter o teu primor literário, também tenho feito minhas tentativas místicas para realizar coisas incabíveis nesta realidade. Um dia vou escrever muitos livros.

  3. Como o Antagonista não tem espaço para comentários dos leitores, aproveito este aqui para agradecer ao Mario a didática explicação que nos deu no artigo sobre o sistema eleitoral dos EEUU. Depois de 50 anos sem entender a razão da existência daquele sistema, finalmente aprendi: é simplesmente porque lá o sistema federativo existe de verdade. Há 50 eleições presidenciais - uma em cada estado, e cada estado tem sua escolha respeitada. Simples, mas só com a clara lição do Mario aprendi.

  4. Muito bom artigo! Você tem uma experiência rica que, felizmente, é inversamente proporcional ao orgulho ou prepotência. Parabéns.

  5. Sabino, você sonhou como o poeta que também o é " que estava sonhandonum sonho sonhado" e confabulou com Lobato pra suas felizes pátinas sobre a realidade.

  6. Mário Sabino, publique um livro com todos esses textos maravilhosos. Publique. É muito bom ler o que você escreve. Parabéns!

  7. apesar do trocadilho esperto no final do texto acredito q você desempenha de forma extraordinária o papel do jornalista e não só o do amigo do amigo daqueles pilantras

  8. Não se condene a falar do “amigo do amigo de meu pai”. Ele vai passar como tudo. Virão outros, talvez piores. Mas não deixe temas mais importantes para a natureza humana de lado. Senão realidades tóxicas acabarão com suas fantasias.

  9. Esse artigo-narrativo, Sabino, bateu lá dentro. Pior é que não sei pontuar trechos ou colocações que bateram. O enredo veio descendo, descendo, ladeira abaixo. Nem devagar, nem veloz. E de repente... o FINAL impactante. Gostei muito.

  10. Falar do amigo do amigo de meu pai pode significar salvar um país, promover reflexões sobre o comportamento correto, o respeito a regras, princípios e a coisa pública. Pode salvar vidas. Pode ser bastante benéfico e louvável.Que bom q está aí p nos alertar. A seu tempo todos colheremos os frutos desse trabalho q, imagino, terrivelmente estressante.

  11. Esses amigos são os verdadeiros amigos de raiz, os quais nos acodem em nossos momentos dramáticos da existência. Ao falar de existência não me à vida orgânica nem física, mas à psicológica, aquela nos permite aqui comparecer e exarar nosso pensamento sem medo de censura nem de apertura. É melhor remédio para dores de cabeça de jornalista é externar a liberdade de expressão por fatos que podem importunar o seu sono numa sociedade onde muitos se sentem guiados e obedientes à ideologias retrógradas

  12. Mario, acredito na força do caráter como princípio que rege todos os aspectos das nossas vidas. É algo que sempre estará em nós (em uns mais e em outros menos) mas é algo que depende pouco do rumo que damos as nossas vidas. Profissão e carreira são circunstâncias. Nem sempre conseguimos exercer no dia-a-dia o que idealizamos em algum momento. Mas hoje acredito que o mais importante seja a nossa relevância naquilo que fazemos. Sob este aspecto lhe parabenizo por seus artigos. Parabéns!

  13. Nesses tempos estamos tendo que nos questionar sobre até, se a gente gosta mais de tomar um café com açúcar, adoçante ou puro. Parabéns SEMPRE pela Crusoé e pelo Antagonista, e uma vez ouvi de um amigo que eu chamava de irmão postiço, que eu briguei muito e fiz muitas pazes, porque o adorava; aprendi com ele, que ser amigo é entender o limite do amigo; e até hoje tenho saudades e penso que não soube ser a amiga que ele merecia.

  14. Mto bom..!! Em busca do charlatão de viena. (Sabia nem pq cê tava chamando assim.. corri pro gg). Netflix virou uma assinatura parasita q jamais uso.. Tenho q rever e, agora, sob a luz dessa série.. kkkk piorou.. Amizade é realmente o pior de todos.. não entendo, acho impossível. Mas sei q alguns conhecem. Algo q tem q dar tudo, não objetiva nada específico.. mas pode tudo.. bláblá... não existe. Acho q é puro uso do outro para projeções, fugas.. e crescimento.

    1. Com certeza Mary, Leitora de revista ti ti ti, Ilha de Caras e Contigo não consegue alcançar esse tipo de texto. Revista errada moça.

    2. Espero que sua assinatura não esteja sendo paga por nós, contribuintes...

    3. Você de novo??? Você está lendo a revista errada querida! Abraços!!!

  15. Além da crucial importância de escrever sobre aqueles amigos do amigo do pai dele, tenho fundadas dúvidas a respeito de qualquer condenação. Especialmente depois de ler esse texto um tanto histórico, um tanto biográfico, mas definitivamente divertido. 😊

  16. Muito bom. Pontalis tem livros ótimos e a sua coluna com o pedaço da entrevista mostra o homem por trás do mito. O Charlatão de Viena ainda tem vários adeptos.

  17. Após ler a coluna e os tão brilhantes comentários, vou me recolher à minha insignificância. Mas que inveja, viu. Calma, é boa, é boa, das melhores.

  18. continuando, apertei enviar sem querer... enfim, Ponde era meu escolhido até um ano atrás. Conheci essa mesma característica de pensador genial no Sabino, tal qual Luiz Felipe e acho que fiquei a agora na dúvida sobre a ilha. rsrsrs livre pensar é só pensar.

  19. Eu sempre que pensava com quem eu queria estar sozinha numa ilha, a resposta era Ponde, Luiz Felipe. Um grande filósofo, mente aberta, ótimo escritor, fala sobre Nietzsche como poucos,

  20. As colunas do Mario Sabino são impagáveis, literalmente, não há preço suficiente a ser pago para sorver deste tipo de escrita. Parabéns.

  21. Ou o sr. Mario Sabino explica, se tiver competência para tanto, por que chama Freud de "o charlatão de Viena", ou precisará submeter-se a longas sessões de psicanálise freudiana. Não, Lacan não vale... não serve para ele, que é escancaradamente lacaniano... Sabino precisará, caso não se explique, enfrentar os seus próprios demônios... Freud à frente de todos eles...

  22. Fechou com as abotuaduras mais sofisticadas a camisa de algodão egípcio. Perfeito! Segue o baile? Claro, o amigo do amigo do meu pai tem que dançar!

  23. O país precisa, no presente, mais de Mários Sabinos do que de Pontalis, pois os amigos dos amigos “ do meu pai” precisam ser denunciados e combatidos. Gratíssima, Mário

  24. Pô Xará!!! Cada um tem uma missão! Você, além de ser uma enciclopédia, tem também a missão de trazer um pouco de verdade aos seus leitores, num país onde impera a mentira e desonestidade! E isso é uma put... missão!

  25. Eu gostaria de ser seu amigo, mas me condenei - com o maior prazer - a ser apenas o seu leitor. Grande crônica, Mario.

  26. Fantástico!!! Parabéns Sabino!!! Tenha a certeza que sua intelectualidade não se resume a falar de canalhas. Vc muda a realidade das pessoas.

  27. Um "breve momento" precioso se "resignifica" em um "ser para sempre". Que inveja de você Mário poder eternizar (projetar) esse momento de entrevista com Jean Pontalis. Apenas discordo que ao fim de um relacionamento amoroso a amizade de um casal não sobreviva. Creio que em psicanálise não se admite determinações tão pontuais. Bem, acho que me é permitido discordar do grande Pontalis...rsrs. Tudo isso renderia um grande debate que não cabe aqui! Parabéns pela reflexão!

    1. É verdade Agnaldo. Sem amor não há amizade, contudo, em Psicanálise isso é complexo, segundo Freud, "não somos donos da nossa própria casa (mente/consciência)". Amor e ódio caminham lado a lado e quanto mais se afirmam mais se negam e vice e versa. Muitas amizades iniciam após uma relação odiosa e rompimentos a partir de relações de amor extremo (esse é o problema: sentimentos extremos). Nda é fixo ou permanente. Adoro falar disso. Abraço.

    2. Scully, veja que ele "acha difícil", mas não impossível, que a amizade permaneça depois de um relacionamento amoroso. Mas não dá para discordar de que é impossível ser amigo de quem não se ama, logo, deixando de lado o relacionamento mais íntimo, sem amor não há amizade.

  28. Acho bem bacana quando você viaja para fora da nossa política rasteira e nos apresenta as peripécias do sujeito que conversou com o Pontalis. Sempre é muito bom viajar contigo pelos recantos de algum jardim acanhado perdido em sua memória. Obrigado!

  29. Mário Sabino Suas crônicas são deliciosas Só tenho uma reclamação, hoje não tive problema porque a li e escuto sua voz quando faço a leitura. Mas quando escuto a crônica no carro, dirigindo, sai aquela voz computadorizada que estraga o prazer de seu escrito, você poderia gravar como no podcast a crônica que escreve na Crusoe

  30. Mário Sabino você iluminou minha sexta feira . Fantástico . Mais um presente maravilhoso que nos dá. Que venha sempre outros rsss.Grata

  31. PQP. Sorry. Foi só o que me ocorreu dizer sobre o final. A surpresa imposta pelo final é de gargalhar e se afogar num soluço ao tomar fôlego. Eu li muito do Pontalis e gosto muito mais dele que do que do Laplanche. Mas nada do que li dele supera o prazer de te ler na Crusoé. Tu estás vivo e tua palavra faz mais bem e traz mais paz a minha alma que tudo que leio agora. É o jardim da Crusoé. Palavras tem casca e tem gema. A tua gema é a verdade e a coragem. Abraço

  32. Coluna para guardar, para a ela voltar de tempos em tempos. Talvez ir à fonte seja uma ideia melhor mas aqui, pelo menos, está condensado, satisfaz e economiza o tempo.

    1. Sabino, é maravilhoso ler sua coluna, enriquece muito. Obrigada!

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